"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/09/2024

Jurisprudência 2024 (3)

 
Factos complementares; aquisição na audiência final;
audição das partes*
 
 
1. O sumário de RG 11/1/2024 (684/16.8T8BRG.G2) é o seguinte:

I - Sem prejuízo de às partes caber a formação da matéria de facto, mediante a alegação, nos articulados, dos factos principais que integram a causa de pedir, cabe ao Tribunal a assunção de uma posição activa na aquisição da factualidade que importa à boa decisão da causa, por forma a aproximar-se da verdade material e alcançar uma posição mais justa do processo.

II - Ao Juiz, para além da atendibilidade dos factos que não carecem de alegação e de prova, reconhece-se a possibilidade de considerar, mesmo oficiosamente, os factos instrumentais, bem como os essenciais à procedência da pretensão formulada, que sejam complemento ou concretização de outros que a parte haja oportunamente alegado e de os utilizar quando resultem da instrução e da discussão da causa e desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório.

III- Os factos complementares são aqueles que especificam e densificam os elementos da previsão normativa em que se funda a pretensão do autor - a causa de pedir - ou do reconvinte ou a excepção deduzida pelo réu como fundamento da sua defesa, e, nessa qualidade, são decisivos para a viabilidade ou procedência da acção/reconvenção/defesa por excepção.

IV- Para poderem ser tomados em consideração pelo tribunal na sentença, tem que ser dado conhecimento às partes antes do encerramento da discussão de factos, que o tribunal os pretende acrescentar à matéria de facto, ou seja, cumprir o contraditório quanto ao próprio aproveitamento dos factos pelo tribunal.

V- A não observância de tal necessário pressuposto para a sua aquisição oficiosa imporá a anulação da decisão, nos termos do art. 662º, nº 2, c) do CPC – pressupondo tal anulação que a factualidade em causa haja emergido da discussão da causa com a consistência suficiente e necessária para a sua demonstração em juízo.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A consideração dos factos complementares ou concretizadores em resultado da instrução tem agora, segundo entendemos, natureza oficiosa; isto é, não obstante a parte interessada continuar a poder ter a iniciativa de deles se querer aproveitar, agora não é necessário requerimento nesse sentido da parte interessada e nem a sua concordância para que o tribunal os possa considerar.
 
Neste sentido consagrou-se na al. b) do nº 2 do art.º 5º do NCPC que além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar.
 
Poderá dizer-se que a inobservância do estabelecido nesta disposição legal ocorrerá quando na sentença o juiz não atendeu a factos complementares ou concretizadores, que se revelaram aquando da produção de prova, ou resultaram da prova carreada para os autos, ou quando o juiz atendeu a tais factos, mas sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre os mesmos se pronunciar.
 
Quanto à forma como deve se facultada às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre os factos complementares ou concretizadores não alegados não existe total consenso.
 
Assim, Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro (Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, p. 41 e 521) sustentam que “para que a parte tenha a possibilidade de se pronunciar, não é necessário que o juiz despache no sentido de lhe ser dada a palavra para o efeito”, uma vez que o nosso sistema processual assegura ao mandatário a possibilidade de formular requerimentos a qualquer momento.
 
Em sentido contrário, afirmam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (ob. cit. p. 29) ser “(…) mais consentânea com os princípios processuais e designadamente com a proibição de decisões-surpresa a posição que defende que o juiz deve anunciar às partes, antes do encerramento da audiência, que está a equacionar utilizar este mecanismo de ampliação da matéria de facto”.
 
Entendemos ser esta a posição mais consentânea com os princípios que regem o processo civil, em particular com o princípio do contraditório e da proibição de decisões-surpresa.
 
Neste sentido podemos citar o ac. da RP de 30.04.2015 (relatado por Aristides Rodrigues de Almeida, processo nº 5800/13.9TBMTS.P1), onde se afirma que “[T]rata-se no fundo de salvaguardar a confiança que é necessário ter quanto ao conteúdo dos atos do processo e de não impor aos mandatários graus de diligência e atenção absolutos, exigindo-lhes que a todo o momento prevejam todas as hipóteses e levem o esforço probatório aos limites apenas para evitar que se o tribunal vier a considerar relevantes outros factos os mesmos resultem provados ou não provados. Só perante esse alerta se poderão imputar às partes as consequências do esforço probatório que entenderam produzir e a responsabilidade por não terem levado esse esforço ao ponto que seria eventualmente necessário”; o ac. da RL de 29.05.2018 (relatado por Luís Filipe Sousa, processo nº 19516/17.3YIPRT.L1-7); o ac. da RC de 09.01.2018 (relatado por Moreira Carmo, processo nº 825/15.2T8LRA.C1); o ac. da RE de 7.06.2018 (relatado por Sílvia Rato, processo nº 3205/15.6T8LLE.E1) e o recentíssimo ac. desta Relação de Guimarães de 7.12.2023 (relatado por Maria Amália Santos, processo nº 455/18.7T8EPS.G1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
 
É também este o entendimento do ac. do STJ de 07.02.2017 (relatado por Pinto de Almeida, processo nº 1758/10.4TBPRD.P1.S1, disponível em www.direitoemdia.pt) onde  se pode ler que “[A]dmitir-se que o juiz possa, sem mais (isto é, apenas com a exigência de audiência contraditória na produção do meio de prova), considerar o facto novo, essencial (complementar ou concretizador), corresponderia a exigir ao mandatário da parte interessada um grau de atenção e diligência incomum, dirigida não só à produção e valoração da prova que fosse sendo realizada, mas também, antecipando o juízo valorativo do tribunal, à possibilidade de vir a ser retirado desse meio de prova e considerado provado um novo facto nele mencionado.
 
Crê-se que a disciplina prevista no art. 5º, nº 2, al. b), do CPC exige que o tribunal se pronuncie expressamente sobre a possibilidade de ampliar a matéria de facto com os factos referidos, disso dando conhecimento às partes antes do encerramento da discussão. Só depois poderá considerar esses factos (mesmo que sem requerimento das partes nesse sentido).
 
Só assim é conferida à parte "a possibilidade de se pronunciar" sobre o facto que o tribunal se propõe aditar. E só assim se assegurará um processo equitativo (art. 547º do CPC), facultando-se às partes o exercício pleno do contraditório, requerendo – como é admitido por qualquer das teses –, se for caso disso, novos meios de prova em relação aos factos novos, quer para reafirmar a realidade desses factos, no sentido da sua prova, quer para opor contraprova a respeito dos mesmos, infirmando a realidade que aparentam”.
 
Ver ainda a este propósito o também recente ac. do STJ de 7.12.2023, (relatado por João Cura Mariano no processo nº 2017/11.0TVLSB.L1.S1 e acessível in www.dgsi.pt). 
 
De facto, importa ainda ter em atenção que, na eventualidade do tribunal considerar factos complementares resultantes da instrução da causa, nos termos previstos na referida al. b) do nº 2 do art.º 5º, assistirá quer à parte beneficiada pelo facto, quer à contraparte a faculdade de poder requerer a produção de novos meios de prova (ou a reinquirição das testemunhas) para, consoante o caso, fazer prova ou contraprova desses factos (neste sentido, Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, ob. cit., p. 41 e 521; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit. p. 29 e também Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 4ª Edição, p. 40, ainda que entendendo que se mantém a necessidade da parte interessada manifestar vontade de se aproveitar do facto, consideram que a “introdução de novo facto no processo, postula, a menos que haja confissão, a possibilidade de contraprova pela parte contrária àquela a que o facto aproveita”).
 
Como se afirma no ac. da RP de 15.09.2014 (relatado por Manuel Domingos Fernandes, processo nº 3596/12.0TJVNF.P1, disponível em www.dgsi.pt) a consideração oficiosa dos factos que sejam complemento ou concretização dos alegados “não pode ser feita sem que as partes se pronunciem sobre ela, ou seja, o juiz, ante a possibilidade de tomar em consideração tais factos, tem que alertar as partes sobre essa sua intenção operando o exercício do contraditório e dando-lhe a possibilidade de arrolar novos meios de prova sobre eles”.
 
O juiz, se pretender considerar na sentença um facto complementar ou concretizador que resulte da instrução da causa, não o pode fazer sem que as partes se pronunciem e deve convidá-las a, querendo, oferecerem prova quanto ao novo facto.
 
Com efeito, “[a] consideração dos novos (novos no sentido de não alegados nos articulados) factos complementares ou concretizadores exige, face ao disposto na parte final do art. 5º, nº 2, b) do CPC, que o ‘tribunal se pronuncie expressamente sobre a possibilidade de ampliar a matéria de facto’ com o facto em causa, ‘disso dando conhecimento às partes antes do encerramento da discussão’: não basta que o facto novo aflore na discussão da causa, onde o contraditório é observado, para que se possa concluir que às partes foi dada a possibilidade de sobre os mesmos se pronunciarem – a exigência de observância do princípio da audiência contraditória na produção do meio de prova (donde emerge o facto novo a considerar) vale, em geral, para a produção de qualquer meio prova e, ‘portanto, é pressuposto que se coloca a montante do aproveitamento do facto’ que resulte do meio de prova, seja tal facto instrumental, complementar ou concretizador; admitir-se que o ‘juiz possa, sem mais (isto é, apenas com a exigência de audiência contraditória na produção do meio de prova), considerar o facto novo, essencial (complementar ou concretizador), corresponderia a exigir ao mandatário da parte interessada um grau de atenção e diligência incomum, dirigida não só à produção e valoração da prova que fosse sendo realizada, mas também, antecipando o juízo valorativo do tribunal, à possibilidade de vir a ser retirado desse meio de prova e considerado provado um novo facto nele mencionado’, sendo por isso de entender que a disciplina prevista no art. 5º, nº 2, b) do CPC exige para que tais factos sejam considerados (independentemente de requerimento das partes nesse sentido) que o tribunal expressamente advirta as partes, antes do encerramento da discussão de facto, sobre a possibilidade de tais factos serem considerados, pois importa cumprir o contraditório quanto ao próprio aproveitamento do facto pelo tribunal (sendo sempre possível às partes, então, além de se pronunciarem sobre a admissibilidade da aquisição do facto novo à luz do preceito, requerer ‘novos meios de prova em relação aos factos novos, quer para reafirmar a realidade desses factos, no sentido da sua prova, quer para opor contraprova a respeito dos mesmos, infirmando a realidade que aparentam’). É esta a solução que se nos afigura respeitadora do processo justo e equitativo e a que resulta da ponderação do princípio da cooperação na obtenção da justa composição do litígio (art. 7º do CPC), sendo a mais consentânea com a proibição de decisões-surpresa.
 
Sendo a factualidade que a parte pretende ver incluída na decisão, a coberto da alínea b) do nº 2 do art. 5º do CPC, relevante à decisão da causa, a não observância de tal necessário pressuposto para a sua aquisição oficiosa imporá a anulação da decisão, nos termos do art. 662º, nº 2, c) do CPC – pressupondo tal anulação que a factualidade em causa haja emergido da discussão da causa com a consistência suficiente e necessária para a sua demonstração em juízo (ou seja, que a discussão da causa os tenha tornado patentes).” (vide, ac. da RP de 13.07.2022, relatado por João Ramos Lopes, processo nº 1836/12.5TBMCN-A.P1, consultável in www.dgsi.pt).
 
Voltando ao caso que nos ocupa, está em causa a seguinte factualidade: a celebração do contrato promessa em 16.02.2017 – ou seja, na mesma data da celebração da escritura pública de dação em pagamento cuja invalidade, por simulação, está em discussão nos presentes autos -, bem como os supostos acordos paralelos efectuados pelos intervenientes nos aludidos negócios jurídicos.
 
Tal factualidade, não obstante ter sido aludida na motivação da decisão da matéria de facto levada a cabo pelo tribunal a quo, não foi alegada pelos autores/recorrentes, conforme os próprios admitem.
 
Por outro lado, afigura-se-nos evidente que não estão em causa factos essenciais que constituam a causa de pedir, pois a procedência da pretensão dos autores de obterem a declaração de nulidade do negócio jurídico de dação em pagamento não depende da demonstração daqueles factos.
 
Mas também não se tratam [sic] de factos meramente instrumentais que possam ser livremente averiguados e discutidos na audiência final, em resultado da instrução da causa.
 
Estão em causa factos complementares dos essenciais (nucleares) alegados pelos autores e, por isso, essenciais para a procedência da pretensão dos autores quanto ao pedido baseado no instituto da simulação.
 
Na verdade, e conforme afirmam os próprios recorrentes, trata-se de factualidade que concretiza o alegado acordo simulatório e a sua execução ou que, pelo menos, contextualiza os termos em que foi celebrado o negócio cuja validade foi posta em causa nos autos (a dação em pagamento), sendo, portanto, inexorável concluir que se trata de factualidade de inegável interesse para a boa decisão da causa - quer na perspectiva da acção, quer até na perspectiva da reconvenção.
 
E tanto assim é que a ré, no decurso do respectivo depoimento de parte [depoimento cuja gravação ouvimos na íntegra], admitiu expressamente que o declarado por si e pelo seu falecido marido na escritura pública de dação em pagamento não corresponde inteiramente à verdade – tendo referido que aquele acto não visou o pagamento de serviços prestados por si aquele, mas antes “garantir” o pagamento de valores de rendas devidas à recorrida que o falecido FF se teria apropriado e não devolveu a esta.
 
Sendo certo ainda que a ré/recorrida não deixou de afirmar que a vontade inicial do falecido marido era dar os imóveis que constam da dação em pagamento à filha BB - visto que “os outros filhos já tinham recebido uma fortuna” – e que, por isso, foi celebrado o contrato promessa de compra em que a ré figura como promitente vendedora e aquela filha como promitente compradora, mas que depois ele terá desistido de dar tais bens à aludida filha por não ter meios para devolver à ré o valor das ditas rendas.
 
Por conseguinte, a factualidade que os autores pretendem ver considerada, nos termos do art.º 5º, nº 2 do NCPC, desenvolve-se no âmbito dos factos essenciais nucleares, integrando-os e mantendo-se nos seus limites – complementa a alegação de simulação, esclarecendo e concretizando os seus específicos termos e trâmites, relevando para a concludência da invocada causa de invalidade do negócio jurídico dação em pagamento.
 
Estamos, pois, perante factualidade complementar, relevante à decisão da causa, largamente discutida no decurso da produção da prova – como as alegações de recurso denunciam – e, nesta medida, susceptível de ser adquirida e considerada pelo tribunal a quo (quer como provada, quer como não provada, pelo menos parcialmente), não resultando dos autos, todavia, que as partes tenham sido expressamente advertidas, antes do encerramento da discussão de facto, sobre a possibilidade da mesma ser adquirida e considerada pelo tribunal (tal não foi feito constar das várias actas da audiência de discussão e julgamento e o tribunal a quo não se pronunciou sobre tal factualidade na decisão de facto, referindo, aliás, de forma expressa na motivação da decisão de facto que considerava não ser necessário julgá-la provada ou não provada, o que evidencia que a questão não foi apresentada a contraditório das partes, pelo menos, nos termos acima expostos).
 
Impõe-se, assim, anular a sentença, nos termos do art.º 662º, nº 2, c) e nº 3, c) do NCPC, pois que se mostra indispensável ampliar a matéria de facto – impõe-se decidir da factualidade que os autores pretende ver considerada, nos termos da alínea b) do nº 2 do art.º 5º do NCPC, e a que alude nas conclusões 2ª a 5ª das suas alegações, o que demanda o necessário prévio cumprimento do contraditório (nos termos que se deixam referidos – não só possibilitar pronúncia sobre a admissibilidade da aquisição dos factos novos à luz do preceito, como também sobre a realidade dos factos, facultando-se a possibilidade das partes requererem novos meios de prova em relação à factualidade em questão), estando a repetição do julgamento limitada a tal matéria nova [sem prejuízo de incidir sobre outros pontos em vista de evitar contradições – art.º 662º, nº 3, al. c) do NCPC]."

*3. [Comentário] Salvo o devido respeito, não se acompanha a orientação de que a falta de pronúncia das partes sobre factos adquiridos na audiência final se resolve pelo disposto no art. 662.º, n.º 2, al. c), e 3, al. c), CPC. O problema não é de falta de matéria de facto que devia ter sido considerada na sentença recorrida, mas antes de falta de audição das partes sobre matéria de facto que foi indevidamente considerada nessa sentença.

Tem-se defendido que a falta de audição prévia das partes implica o proferimento de uma decisão-surpresa (art. 3.º, n.º 3, CPC) e, por isso, de uma decisão nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC).

MTS