"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/09/2024

Jurisprudência 2023 (231)

 
Procedimento cautelar;
prova pericial*
 
 
I. O sumário de RC 13/12/2023 (1462/23.3T8VIS-B.C1) é o seguinte:

1. - Em procedimento cautelar, é admissível a produção de prova pericial, ainda que oficiosamente determinada, desde que se trate de prova necessária/imprescindível, designadamente por os factos probandos essenciais demandarem especiais conhecimentos técnicos ou científicos, não ao alcance do comum das pessoas.

2. - Justifica-se a produção de prova pericial quando esteja em causa pedido de imediato encerramento de estabelecimento de restauração, instalado em fração autónoma de prédio constituído em propriedade horizontal, ou a imediata proibição de qualquer atividade nesse estabelecimento – com os inerentes prejuízos económicos –, com fundamento em perigo para a saúde e a vida de pessoas/famílias residentes em frações autónomas habitacionais do mesmo edifício, por via da emissão de fumos, cheiros, gases e ruídos, razão pela qual também foi pedida a inversão do contencioso.

3. - As exigências probatórias inerentes aos procedimentos cautelares e o caráter urgente do respetivo procedimento não são de molde a afastar, de
per si, a possibilidade de produção de prova pericial, dependendo a decisão sobre a admissão/produção desse meio de prova da natureza dos factos probandos e das particularidades do caso.

4. - A prova técnica assim obtida – sempre sujeita à urgência de que se reveste o procedimento cautelar – pode ser usada no julgamento da causa principal, desde que nesta o tribunal o deixe transparecer claramente, mormente na justificação da decisão da matéria de facto.
 

II. Na decisão sumária sobre as qual incidiu o acórdão afirma-se o seguinte:

"Da (in)admissibilidade e (des)necessidade de realização de prova pericial em procedimento cautelar

Como visto, sem invocação de uma específica norma legal habilitante (apenas aludiu ao disposto no art.º 365.º, n.º 1, do NCPCiv., que se reporta a «prova sumária»), segundo a interpretação que adotou, o Tribunal recorrido entendeu admissível e necessária/justificada a realização de prova pericial, no âmbito de procedimento cautelar, para determinação quanto a níveis (exatos) de ruídos, fumos, cheiros e gases, alegadamente invasores de frações habitacionais autónomas e, bem assim, partes comuns do prédio onde se integram, provenientes de uma fração não habitacional, onde se encontra instalado um estabelecimento de restauração, existindo fugas nas condutas de extração dos fumos e cheiros do restaurante ou não tendo o sistema ali instalado capacidade para conduzir tais fumos e cheiros do interior do restaurante para o exterior – sem incómodos e perturbações da qualidade de vida dos restantes condóminos, em especial dos aqui requerentes –, chegando os ruídos, por seu lado, a ser ensurdecedores.

Os Recorrentes, em primeira linha argumentativa, defendem que, neste tipo de processos, por apenas se exigir prova sumária e pela patente natureza urgente, não é admissível a produção de prova pericial, esta de conformação/obtenção demorada pela sua própria natureza.

A contraparte esgrime, por sua vez, no sentido da admissão dessa prova técnica.

Quem tem razão?

Vejamos.

É certo que no procedimento cautelar comum começa por se exigir prova sumária, com vista ao preenchimento do primeiro de dois requisitos, legalmente previstos, de procedência da providência que haja sido requerida.

Assim é que dispõe o art.º 362.º n.º 1, do NCPCiv. que:

«Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado.».

Enquanto, no mesmo sentido, estabelece o art.º 368.º, n.º 1, do mesmo Cód. que a «providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão.».

Esses dois requisitos legais, são, pois, como é consabido:

a) A provável existência do direito; e

b) O fundado receio da sua lesão (perigo de lesão grave e dificilmente reparável).

A exigência de (simples) «prova sumária» resulta da “provisoriedade da medida cautelar e sua instrumentalidade perante a ação de que é dependência”, reportando-se, então (e apenas), à «existência do direito ameaçado» – basta aqui «uma simples justificação», um «juízo de verosimilhança», que «não se compadece com as indagações probatórias próprias do processo principal» –, uma vez que, diversamente, se exige algo mais quanto ao periculum in mora, o dito fundado receio de lesão, a dever «revelar-se excessivo»/acentuado/intenso (por comparação à comum «pendência de qualquer ação»), já que nesta parte a prova dos factos concludentes de suporte haverá de ser correspondente a um «juízo de certeza sobre a sua realidade», aquele mesmo que «é exigível em qualquer demonstração probatória feita em juízo», embora com o tempero da «urgência do procedimento cautelar», em função do que «o juiz deve evitar o risco de demasiada exigência na investigação» (Cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, ps. 7, 8 e 40.).

Do exposto já pode inferir-se que a prova do periculum in mora não se basta com uma prova sumária, um mero juízo de verosimilhança ou uma simples justificação, exigindo-se, de forma mais clara, um juízo de certeza sobre os factos.

Quanto às concretas provas admissíveis nos incidentes da instância – de que os procedimentos cautelas são um exemplo –, referem Abrantes Geraldes e outros (Veja-se a obra Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, p. 340.) que, relativamente à prova testemunhal, «existe uma limitação quantitativa», por a parte não poder produzir mais de cinco testemunhas (como resulta do n.º 1 do art.º 294.º do NCPCiv.), sempre salientando que, quanto a outros meios de prova, «serão admitidos aqueles que a matéria de facto justificar», sem, pois, qualquer abstrata exclusão de determinados meios de prova (pela sua natureza).

E acrescentam os mesmos Autores que o «pressuposto da probabilidade séria supera os meros indícios, mas fica aquém do nível de convicção necessário para decretar a inversão do contencioso» (Vide op. cit., p. 429.).

Assim, poderá dizer-se que, à partida, e em abstrato, nada parece impedir a produção de prova pericial em procedimento cautelar, desde que produzida de forma célere, atenta a natureza urgente do processo, e se mostre ser necessária/justificada. Poderá até recorrer-se às provas produzidas no âmbito da providência cautelar, incluindo a prova pericial, para o julgamento da respetiva ação principal, contanto que o juiz, se fundar nessas provas a sua convicção, assim o explicite (de antemão) às partes e o declare na motivação da decisão da matéria de facto, observando as necessárias exigências de transparência e boa-fé (Neste sentido, Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III vol., Almedina, Coimbra, 1998, ps. 131 a 134.).

Pode assentar-se, assim, em que, em matéria de procedimentos cautelares como o dos autos, são admissíveis, em abstrato, «todos os meios de prova legítimos», com a restrição imposta, apenas, «pelas necessidades do caso concreto», havendo o juiz de «orientar-se pelos critérios legais ajustados ao caso e sindicáveis em via de recurso», nada obstando a que «o tribunal faça todas as averiguações complementares que se justificarem para a correcta e justa composição da lide», no uso do seu poder/dever de «inquisitoriedade», «o poder de averiguação oficiosa, para além daquilo que as partes entendam trazer ao processo» (Cfr. Abrantes Geraldes, Temas, cit., ps. 196 e 197, acrescentando ainda o mesmo Autor que, sem «prejuízo da necessária celeridade, o objectivo da adequada segurança jurídica, que também deve estar presente no decretamento de uma medida cautelar, impõe ao juiz um maior poder de averiguação e uma maior dose de empenhamento na detecção da real situação de facto de onde emerge a pretensão do requerente».) (Salientando também esta caraterística da oficiosidade na determinação de diligências probatórias indispensáveis, veja-se José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., p. 35.).

Líquida, pois, a admissibilidade, em abstrato, da prova pericial em procedimento cautelar, importa verificar, agora, se no caso tal prova era necessária/adequada/justificada, ao ponto de ter sido oficiosamente determinada pelo Tribunal.

A questão é, então, a de saber se os factos essenciais probandos, de que depende o decretamento da providência requerida, impõem o recurso à prova pericial, apesar – e para além – das provas indicadas pelas partes.

Refere a parte recorrida (na sua contra-alegação):

«Os Requerentes, aqui Recorrentes não tiveram em consideração que a prova pericial se mostra imprescindível à boa decisão da causa, por respeitar a perícia a factos que não são suscetíveis de serem apurados através de outros meios de prova, sendo pois a sua realização relevante, revestindo-se utilidade para dirimir a controvérsia em apreço nos autos, o que determinou a respetiva admissão.

De facto, andou bem o Tribunal a quo em admitir a perícia, uma vez que as questões em discussão assumem carácter técnico e os factos que constituem o respetivo objeto integram o fundamento do procedimento cautelar e da oposição deduzida, encontrando-se controvertidos.».

Já se viu que o Tribunal a quo se perfilou no sentido de haver factos alegados, de si relevantes, que exigem conhecimentos especializados e que são essenciais para a demonstração do direito invocado pelos Requerentes, tornando necessária a realização de prova pericial, sinalizando que, se a realidade, ainda que indiciária, de certos factos só é alcançável por determinados meios de prova, é inútil tentar fazer essa prova indiciária por meios probatórios sucedâneos.

Considerou, por isso, indispensável a perícia quanto aos factos referentes à alegada produção de ruídos, fumos, cheiros e gases, sua origem e propagação (provenientes do interior da fração onde funciona o estabelecimento de restauração, seguindo por uma conduta que circula pelo interior do edifício, passando nas partes comuns do mesmo e pelo interior de algumas das frações); à existência de fugas nas condutas de extração dos fumos e cheiros da fração onde funciona o restaurante; à incapacidade do sistema ali instalado para conduzir tais fumos e cheiros para o exterior, sem incómodos e perturbações para os restantes condóminos; aos ruídos produzidos à saída da chaminé, de si ensurdecedores.

Ora, apreciando, cabe dizer que estes factos, pela sua natureza, demandam prova técnica/pericial, não se vendo, salvo o devido respeito, como afastar a determinada perícia, a qual, todavia, atenta a natureza dos autos, terá de ser obtida, inquestionavelmente, de forma célere/urgente.

Com efeito, sobre níveis de quantificação/intensidade de cheiros, fumos, gases e ruídos, sua proveniência, propagação e perigo para a saúde – ou até, como invocado, para a vida – das pessoas, no interior de frações autónomas habitacionais, onde residam famílias, não parece possível produzir uma prova testemunhal fiável, rigorosa e credível, por se tratar de matéria cujo esclarecimento/estabelecimento, com a segurança necessária, demanda especiais conhecimentos técnicos, que não estão ao alcance do comum das pessoas, mas somente de peritos habilitados.

A isto acresce o dano económico para a atividade do dito estabelecimento comercial de restauração decorrente da procedência da providência: foi pedido, lembre-se, o imediato encerramento do estabelecimento ou, caso assim não se entenda, a imediata proibição de qualquer atividade desenvolvida no mesmo, bem como a imediata reposição do telhado ou cobertura e da chaminé que serve o sistema de extração do fumos, cheiros e gases.

Por outro lado, foi pedida, também, a inversão do contencioso.

Assim sendo, afigura-se necessário, por mais seguro, obter níveis fiáveis de emissões de fumos, cheiros, gases e ruídos, sua origem e propagação, bem como decorrentes perigos alegados (---)

Tarefa probatória esta muito dificilmente alcançável através de prova testemunhal, antes sendo adequada e justificada a dita prova pericial, que se mostra, assim, necessária/imprescindível para o estabelecimento, com um mínimo de segurança, da respetiva factualidade alegada.

E não está afastada, como visto, a hipótese de a prova pericial em discussão – que terá de ser produzida/obtida com urgência – vir a poder ser apreciada/aproveitada no âmbito do processo principal.

De notar ainda que no Ac. TRE de 19-12-2006 invocado, a seu favor, pelos Recorrentes (roc. 2169/06-2 (Rel. Almeida Simões), em www.dgsi.pt.) havia duas questões a apreciar: «a admissibilidade da resposta à oposição e a verificação dos requisitos do procedimento cautelar».

Não estava, pois, em causa qualquer prova pericial e respetiva (in)admissibilidade, bem se compreendendo que, como consta do respetivo sumário, apenas se firmasse ali o entendimento no sentido de:

«I- Apesar de estar vedada a resposta em articulado, o requerente do procedimento cautelar pode responder à oposição do requerido na audiência que se segue à dedução da oposição, com a faculdade de discutir matéria de excepção que, eventualmente, tenha sido levantada na oposição.

II- Nos procedimentos cautelares toda a prova produzida é meramente indiciária, seja a produzida pelo requerente, seja a produzida pelo requerido, em sede de oposição, pelo que não se exige a prova segura do facto, como sucede no processo declarativo, bastando o juízo de mera probabilidade.

Por isso, os indícios trazidos pelo requerente do procedimento cautelar podem ser afastados por indícios de sinal contrário carreados pelo requerido. E é a ponderação do conjunto da prova indiciária que permite ao julgador manter a providência decretada, afastar os seus fundamentos ou determinar a sua redução, constituindo esta nova decisão complemento e parte integrante da inicialmente proferida, como vem estabelecido no artigo 388°, n° 2 do CPC.».

Nada, assim, se pode retirar deste aresto no sentido da proibição ou inviabilidade da prova pericial em procedimento cautelar.

Resta o argumento que se prende com a urgência do procedimento cautelar e a invocada ultrapassagem do prazo a que alude o art.º 363.º, n.º 2, do NCPCiv..

Com efeito, a parte requerente/recorrente discorda do decidido também por entender que, em obstrução à natureza urgente e sumária inerente ao procedimento cautelar, já há um ano os autos estão pendentes, sem produção de qualquer prova indicada, razão pela qual pede que se ordene a imediata produção das provas oferecidas.

Todavia, importa reconhecer que a decisão recorrida apenas se pronuncia sobre a prova pericial, determinando-a oficiosamente, pelo que é esse o âmbito/objeto do decidido, com que tem de conformar-se o decorrente recurso: apelação autónoma de decisão que admitiu/determinou o meio de prova pericial [art.º 644.º, n.º 2, al.ª d), do NCPCiv.].

E nem se sabe – nestes autos de recurso de apelação autónoma, com subida, por isso, em separado – quais os motivos da demora do processo cautelar, as razões pelas quais ainda não tenha sido produzida qualquer prova, se há, ou não, motivo justificado para a não correspondência ao prazo a que alude o art.º 363.º, n.º 2, do NCPCiv., embora seja essa uma matéria/problemática – a do eventual incumprimento de prazos processuais pelo juiz e seus motivos – que se reflete essencialmente no âmbito da eventual responsabilidade disciplinar, que caberia ao Conselho Superior da Magistratura considerar, e não, salvo o devido respeito, na ponderação quanto às provas admissíveis (Cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., p. 16.).

Aliás, não se vê que a questão da ultrapassagem desse prazo processual, tal como fixado no dito art.º 363.º, n.º 2, tenha sido, de antemão, colocada à 1.ª instância, sendo fora de dúvida que não foi objeto de decisão no despacho recorrido, pelo que sempre se trataria de questão nova, de que, por isso, é vedado à Relação conhecer neste recurso de apelação autónoma incidente sobre exclusiva questão de admissão de meio de prova.

Em suma, não se demonstrando violação de lei, improcede a apelação, cabendo à parte interessada suscitar, querendo, na 1.ª instância – ou junto do órgão disciplinar competente – a questão da ultrapassagem daquele prazo processual."


*[Comentário] Supõe-se que faltou apenas ao tribunal de 1.ª instância fazer uso do seu poder de gestão processual (art. 6.º, n.º 1, CPC) para que não se suscitassem nenhumas dúvidas sobre a adequada utilização da prova pericial.

Cabe apenas acrescentar que não se acompanha a orientação de que o periculum in mora exige mais do que uma prova sumária, orientação que, aliás, não tem apoio no disposto nos art. 365.º, n.º 1, e 368.º, n.º 1, CPC.

MTS