"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/02/2025

Jurisprudência constitucional (234)


Recurso ordinário;
ónus do recorrente

-- TC 18/2/2025 (148/2025) decidiu

[...] Não julgar inconstitucional o artigo 640.°, n.º 1, do Código de Processo Civil, quando interpretado no sentido de que ao recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto se impõe o ónus suplementar de, no tocante à especificação dos pontos de facto que considera mal julgados, referenciar cada um com o correspondente meio de prova que se indica para o evidenciar [...].

 

Jurisprudência 2024 (116)


Citação edital;
dupla conforme


1. O sumário de STJ 29/5/2024 (9192/18.1T8LSB-A.L1.S1) é o seguinte:

A fundamentação do acórdão que confirma, por unanimidade, a sentença do tribunal de 1ª instância, apenas tem fundamentação essencialmente diferente, para efeitos do disposto no artigo 671º n.º 3 do CPC, quando a fundamentação da Relação tenha assentado, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam fundamentado e justificado a sentença da 1ª instância, sendo irrelevantes para esse efeito, discrepâncias marginais e secundárias e o reforço argumentativo levado a cabo pela Relação para fundamentar a mesma solução alcançada na sentença apelada.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A questão a decidir [na reclamação apresentada para a conferência] é apenas a de saber se a fundamentação do acórdão recorrido é (ou não) essencialmente diferente da sentença confirmada, sem voto de vencido.

I) O despacho reclamado, na sua parte decisória, apresenta o seguinte teor:

"Considerando ser entendimento pacífico que a fundamentação do acórdão que confirma, por unanimidade, a sentença do tribunal de 1ª instância, apenas tem fundamentação essencialmente diferente, quando a fundamentação da Relação tenha assentado, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam fundamentado e justificado a sentença da 1ª instância, sendo irrelevantes para esse efeito, discrepâncias marginais e secundárias e o mero reforço argumentativo levado a cabo pela Relação para fundamentar a mesma solução alcançada na sentença apelada, entende-se que, no caso presente, se verifica a dupla conforme ( cf. neste sentido, a título exemplificativo, o recente acórdão do STJ de 10.04.2024, processo n.º 476/10.9TJCBR-AE.C1-A.S1, relator Luís Espírito Santo e os vários nele citados).

Na verdade, as decisões da 1ª e 2ª instância, decidiram a questão da regularidade ou não da citação do Embargante, para os termos da ação declarativa onde foi proferida a sentença exequenda, especificamente se na ação declarativa se fez uso indevido da citação edital, tendo ambas decidido, em síntese, que da factualidade julgada provada que foram observadas as diligências previstas no artigo 236º do CPC e consequentemente não ter sido ilegalmente ordenada a citação edital, e ainda que a citação edital respeitou as formalidades legais, nos termos dos artigos 240º e 241º do CPC. concretamente na afixação do edital na porta da residência conhecida do Embargante.

A circunstância do acórdão recorrido ter aprofundado a fundamentação e aditado argumentos não considerados na sentença da 1ª instância, designadamente rebatendo a argumentação do Apelante quanto a ter havido incumprimento do artigo 240 n.º 2 do CPC, na fixação do edital, por alegadamente ser errada a identificação da residência do Embargante, tendo argumentado que, “em sentido comum, uma fração autónoma situada no «5º Esq.» ou no «5º E» de um prédio são a mesma e única fração autónoma” Diferente seria se, por absurdo, existissem de facto duas frações autónomas no mesmo prédio e andar, uma com a indicação de «Esq.» outra com a indicação de «E». Não é o caso, nem tal foi alegado,” não afasta estar-se perante fundamentação essencialmente coincidente nas duas instâncias.

Há, pois, dupla conforme (artigo 671 nº 3, do CPC) e tendo sido o acórdão proferido, sem voto de vencido, não é admissível, revista ordinária.

No entanto, verificando-se os requisitos gerais de admissibilidade da presente revista, quais sejam, a legitimidade de quem recorre (artigo 631º do CPC), ser a decisão proferida recorrível (artigos 671º n.º 1 e 854º do CPC ), ter sido o recurso interposto dentro do prazo legalmente estabelecido para o efeito (artigo 638º do CPC), ser admissível em função do valor da causa e da sucumbência (artigo 629º nº 1 do CPC), os autos serão remetidos à Formação, para apreciação da admissibilidade da revista excecional, como requer o Recorrente, nos termos e para os efeitos do artigo 672º nº 3 do CPC.”

II -O acórdão recorrido manteve a factualidade julgada provada na 1ª instância.

A fundamentação de direito da sentença da 1ª instância é a seguinte (extratos relevantes):

“A presente oposição tem como fundamento o disposto na alínea d) do art. 729.º do Código de Processo Civil, na redacção anterior à Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, isto é, a “falta ou nulidade da citação para a acção declarativa quando o réu não tenha intervindo no processo.” (…)

A omissão dos deveres de informação e entrega estabelecidos no art. 227.º do Código de Processo Civil, determina, em regra, a nulidade da citação, nos termos do art. 191.º, n.º 1 do mesmo código. (….)

Há, pois, nulidade da citação quando – apesar do conhecimento ou, pelo menos, da cognoscibilidade do acto pelo citando que actue com a diligência devida – não foram integralmente respeitadas, na sua realização, as formalidades prescritas na lei, designadamente, as estabelecidas no art. 227.º do Código de Processo Civil. (…)

Nos termos do n.º 1 do art. 188.º do Código de Processo Civil, há falta de citação: (…)

c) Quando se tenha empregado indevidamente a citação edital;

Como se sustenta no acórdão da RL de 02.07.2013, proferido no âmbito do processo n.º 9838/08.0YYLSB.L1-A, “As causas de falta de citação, na prática, reconduzem-se a um único fundamento, isto é, à demonstração que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável, impendendo, sobre o citando o ónus de o invocar e demonstrar.”.

Como se viu, o uso indevido da citação edital integra umas das situações que a lei comina como falta de citação (art. 188.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil).

E compreende-se que assim seja, dado que a “citação edital é um meio precário e contingente de chamar o réu a juízo para se defender” (Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, p.422). Sendo um meio menos garantístico de interpelação judicial do que a citação pessoal, foi intenção do legislador reduzir o mais possível a sua utilização, dada a elevada probabilidade de o réu não vir a ter conhecimento da citação, ou não ter conhecimento dela em tempo útil.

Daí que previamente à opção pela citação edital, se tenham de observar as diligências previstas no art. 236.º do Código de Processo Civil. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, p. 226) indicam algumas das situações em que ocorre uso indevido da citação edital: a) (…)d) Citação determinada sem que tenham sido efectuadas as diligências previstas no art. 236.º Acrescentam aqueles autores que “quando a citação edital tenha sido determinada pela verificação judicial de uma situação formal de ausência ou de incerteza justificada a partir dos elementos que foram recolhidos, não parece que possa considerar-se que tenha sido indevidamente seguida a citação edital. Quando o autor tenha prestado todas as informações por si detidas e quando o tribunal tenha cumprido todos os preceitos formais exigíveis perante o circunstancialismo concreto e, apesar disso, seja induzido a adquirir a errada convicção sobre a efetiva ausência ou incerteza dos citandos, não deve afirmar-se a nulidade correspondente à falta de citação.” (ob. e loc. cit.) (…)

Prescreve o art. 236.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Ausência do citando em parte incerta”, que: (…)

Conforme decorre do n.º 1, in fine do citado preceito, a obtenção de informação acerca do paradeiro do citando através de diligências a realizar pelas autoridades policiais, apenas deve ocorrer quando o juiz o considere absolutamente indispensável para decidir da citação edital (o mesmo regime já resultava do art. 244.º, n.º 1 do Código de Processo Civil de 1961).

E compreende-se tal restrição ao auxílio das autoridades policiais para obtenção de informação acerca do paradeiro do citando, dada a delicadeza desse género de intervenção, por estarmos no âmbito de direitos, liberdades e garantias constitucionalmente protegidos. Com efeito, tal intervenção só deve ocorrer quando o juiz o considere absolutamente indispensável, dependendo tal ponderação, portanto, de um juízo de absoluta necessidade de intervenção policial, perante as circunstâncias do caso concreto.

A realização de diligências junto da entidade policial depende da formulação de um juízo prévio de absoluta indispensabilidade, tendo em vista decidir se é caso de ordenar ou não a realização da citação edital.

Desta forma, não parece que a lei permita o pedido de auxílio às autoridades policiais de forma arbitrária, dado que tais entidades não têm no seu escopo a realização de investigações em que apenas se discutem interesses privados.

Quer isto dizer que se o juiz concluir pela desnecessidade do recurso às autoridades policiais para decidir da citação edital, tal como aconteceu no caso em apreço, essa decisão não pode acarretar a nulidade do acto.

Por outro lado, compulsados os autos declarativos, verifica-se que a citação edital respeitou integralmente a tramitação prevista no art. 236.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, porquanto, para além de se terem realizado as pesquisas nas bases de dados a que alude o citado preceito, a afixação dos editais decorreu com observância da tramitação prevista nos artigos 240.º e 241.º do mesmo código, pelo que não se verifica qualquer irregularidade na tramitação da citação edital.

No que concerne aos resultados obtidos nas bases de dados, ponderou-se no ac. da RE de 06.10.2016 (www.dgsi.pt), “Se nas autoridades e serviços indicados no art.º 236.º, n.º 1, Cód. Proc. Civil, não existe morada actualizada do réu, porque este nunca a actualizou nos diversos serviços, não é necessária a obtenção de informações junto da autoridade policial para se realizar a citação edital.”

Na verdade, repare-se que na data em que se procederam às pesquisas nas bases de dados do tribunal (em 2015), em três delas ainda constava como morada o réu a “Rua ...”, quando o próprio executado admite que residiu naquela morada até 1999.

Perante o exposto, não se pode concluir pela irregularidade da citação edital concretizada nos autos declarativos, o que determina a improcedência da presente oposição à execução, determinando-se o prosseguimento da execução.”

Por outro lado, a fundamentação do acórdão recorrido é, no essencial, a seguinte:

“Não vemos razão para discordar do acerto da decisão recorrida; senão, vejamos: ( …)

Invoca, em primeiro lugar, o embargante que no âmbito dos autos de acção declarativa, não foi ordenada a citação por funcionário judicial na sede da entidade patronal do réu, “P..., Lda”.

27. O embargante trabalha na firma “P..., Lda”, sita na Quinta de ..., desde 1993 até à presente data.

Apurou-se, a este respeito, que:

7. Na base de dados da Segurança Social foi ainda apurada que a entidade patronal do réu, “P..., Lda”, tem a sua sede na “Quinta de ...”.

14. Por requerimento datado de 18.11.2015, o autor Fundo de Garantia Automóvel requereu que se procedesse à citação do réu, na sociedade “P..., Lda, sita na Quinta ...”.

15. Em 23.11.2015 a secção de processos remeteu carta registada com aviso de recepção para citação do réu AA, para a morada sita em “P..., Lda, sita na Quinta ...”, carta que veio devolvida com a indicação de "Não reclamado".

16. Por requerimento datado de 15.12.2015, o autor Fundo de Garantia Automóvel requereu que se procedesse à citação do réu, na sociedade “P..., Lda, sita na Quinta ...”.

17. Em 16.12.2015 a secção de processos remeteu carta registada com aviso de recepção para citação do réu AA, para a morada sita em “P..., Lda, sita na Quinta ...”, carta que veio devolvida com a indicação de "Objecto não reclamado".

Do exposto, resulta que, apesar de se terem obtido duas moradas para a entidade patronal do executado, as cartas enviadas com vista à citação postal no local de trabalho, vieram ambas devolvidas, com a indicação de «objecto não reclamado».

Acresce que a morada constante da base de dados da Segurança Social não corresponde à morada que agora se apurou ser a do seu local de trabalho (os números de polícia são distintos), pelo que a diligência de citação por funcionário judicial ou agente de execução, sempre seria infrutífera.

Improcede, pois, esta argumentação."

[MTS]


27/02/2025

Bibliografia (Índices de revistas) (241)


Qf

Qf 8 (2025)


Jurisprudência 2024 (115)


Petição deficiente;
factos supervenientes*


1. O sumário de RC 21/5/2024 (176/23.9T8PBL-B.C1) é o seguinte:

I - Petição factualmente insuficiente, desajeitada ou obscura não a fulmina, em termos apriorísticos e desde logo formais, de inepta, apenas podendo contender, em termos substanciais, com a atendibilidade do pedido.

II - Assim, só existe falta de causa de pedir que implica a ineptidão quando o autor não indica o facto genético ou matricial, a causa geradora do núcleo essencial do direito, ie., seja impossível, ou, pelo menos, razoavelmente inexigível, determinar, qual a causa de pedir e o pedido que aspira fazer valer.

III – Em abono da justiça material, da celeridade e da economia de meios, devem ser tidos em consideração até à audiência final, os factos supervenientes atempadamente invocados, sem que tal constitua ilegal alteração da causa de pedir, máxime quando tais factos sejam uma concretização, desenvolvimento ou completude dos liminarmente alegados – artºs 588º e 611º do CPC.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"5.

Apreciando.

5.1.

O nosso direito adjetivo, e quanto à causa de pedir, adota a teoria da substanciação perante ou em função da qual pode definir-se causa de pedir como sendo o ato ou facto jurídico, simples ou complexo, de que deriva ou no qual assenta o direito invocado pelo autor e que este se propõe fazer valer – cfr. artº 581º nº4 do CPC.

Tem-se em vista não o facto jurídico abstrato, tal como a lei o configura, mas um certo facto jurídico material concreto, conciso e preciso, cujos contornos se enquadram na definição legal.

A causa de pedir é, pois, o facto material apontado pelo autor e produtor de efeitos jurídicos e não a qualificação jurídica que este lhe emprestou ou a valoração que o mesmo entendeu dar-lhe.

A ideia geral e primordial - desde logo na perspetiva do julgador - no que concerne à figura da ineptidão da petição inicial, é a de impedir o prosseguimento duma ação viciada por falta ou contradição interna da matéria ou objeto do processo, que mostre desde logo não ser possível um correto, coerente e unitário ato de julgamento, “judicium”- Cfr. Prof. Castro Mendes, Direito Processual Civil, ed. AAFDL, 1978, 3º, p.47.

O fito secundário – na perspetiva das partes – é permitir o cabal conhecimento por banda do réu das razões fácticas que alicerçam o pedido do autor para, assim, poder exercer cabalmente o contraditório.

Por isso o estatuído no nº 3 do artº 186º.

A dificuldade reside em manter uma linha de separação entre a ineptidão da petição, vício formal, e a inviabilidade ou improcedência, questão de mérito ou substancial.

Nesta matéria urge ter presente que os factos que podem enformar os articulados se podem integrar em três espécies, a saber:

- Factos essenciais ou estruturantes, aqueles que integram a causa de pedir ou o fundamento da exceção.

- Factos complementares, que concretizam a causa de pedir ou a exceção complexa.

- Factos instrumentais, probatórios ou acessórios, que indiciam os factos essenciais e/ou complementares.

Ora apenas a falta na pi dos factos essenciais determina a inviabilidade da ação por ineptidão daquela.

Já os factos complementares são indispensáveis à sua procedência, não contendendo a sua falta com aquele vício, mas com a questão de mérito a dilucidar a final – Neste sentido, cfr. Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed pág. 70.

Destarte, pode dizer-se que, por via de regra, se se formula um pedido com fundamento em facto aduzido e inteligível, mas que não pode ser subsumido no normativo invocado, o caso é de improcedência e não de ineptidão.

O que interessa, do ponto de vista da apreciação da causa de pedir, é que o ato ou o facto de que o autor quer fazer derivar o direito em litígio esteja suficientemente individualizado na petição.

Na verdade e na lição sempre atual do Mestre Alberto dos Reis, há que ter presente que:

«Se o autor exprimiu o seu pensamento em termos inadequados, serviu-se de linguagem tecnicamente defeituosa, mas deu a conhecer suficientemente qual o efeito jurídico que pretendia obter, a petição será uma peça desajeitada e infeliz, mas não pode qualificar-se de inepta.

Importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente…quando…sendo clara quanto ao pedido e à causa de pedir, omite facto ou circunstancias necessárias para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta: o que então sucede é que a acção naufraga» - Comentário, 2º, 364 e 371.

No seguimento destes ensinamentos a jurisprudência tem, desde sempre, vindo a defender, em uníssono, que a insuficiência ou incompletude do concreto factualismo consubstanciador da causa petendi, não fulmina, em termos apriorísticos e desde logo formais, a petição de inepta, apenas podendo contender, em termos substanciais, com a atendibilidade do pedido.

Efetivamente, reitera-se, petição prolixa não é o mesmo que petição inepta e causa de pedir obscura, imprecisa ou inadequada não é o mesmo que causa de pedir inexistente ou ininteligível.

No fundo só existe falta de causa de pedir quando o autor não indica o facto genético ou matricial, a causa geradora do núcleo essencial do direito ou da pretensão que aspira a fazer valer. – cfr. entre outros Acs. do STJ de 12.03.1974, BMJ, 235º, 310, de 26.02.1992, dgsi.pt, p.082001 e Acs. da RC de 25.06.1985 e de 01.10.1991, BMJ, 348º, 479 e 410º, 893.

Nesta conformidade, verdadeiramente só haverá falta de indicação da causa de pedir determinante da ineptidão quando, de todo em todo, falte a indicação dos factos invocados para sustentar a pretensão submetida a juízo, ou tais factos sejam expostos de modo tal que, seja impossível, ou, pelo menos, razoavelmente inexigível, determinar, qual o pedido e a causa de pedir – cfr. Acs. do STJ de 30.04.2003, 31.01.2007 e 26.03.2015, p.03B560, 06A4150 e 6500/07.4TBBRG.G2,S2, in dgsi.pt,.

Neste entendimento se enquadra o estatuído no citado nº 3 do artº 186º.

Pois que, mesmo que o réu, na contestação, invoque a falta ou ininteligibilidade do pedido, tal invocação não é atendível se se concluir que ele, não obstante as deficiências invocadas, inteligiu o feito que o demandante introduziu em juízo e está cônscio das consequências que dele pretende retirar.

Efetivamente:

«A petição inicial constitui um ato processual da parte, dirigido ao tribunal, que encerra declarações de vontade do respetivo autor.

Não estando, ao menos quanto à narração, sujeita a fórmulas especificamente fixadas, as declarações em causa estão, como quaisquer outras, sujeitas a interpretação…tendo sempre presente a sua natureza e fins em razão do processo» – Ac. do STJ. de 16.12.2010, p. 942/04.4TBMGR.C1.S1 in dgsi.pt. [...]

Por conseguinte, é exigível um esforço interpretativo no sentido de se alcançar qual a pretensão do autor/reconvinte e as razões/fundamentos em que a alicerça.

E se esta interpretação, que, até certo ponto, se pode considerar restritiva no sentido da verificação do vício em dilucidação, já assim era maioritária antes da reforma processual de 1995, maior pertinência e acuidade ganhou com esta reforma, atento o fito primordial por ela propugnado, qual seja, privilegiar a obtenção de uma decisão de fundo, que aprecie o mérito da pretensão deduzida, em detrimento de procedimentos que condicionam o normal prosseguimento da instância.

Na verdade, e conforme se alcança do relatório do DL 329-A/95 de 12/12, consagrou-se como regra, que «a falta de pressupostos processuais é sanável».

Tudo de sorte a «obviar-se a que regras rígidas, de natureza estritamente procedimental, possam impedir a efectivação em juízo dos direitos e a plena discussão acerca da matéria relevante para propiciar a justa composição do litígio».

Sendo que o processo civil - rectius as respectivas normas - não pode ser perspetivado, interpretado e aplicado como um fim em si mesmo, mas antes como: «um instrumento ou …mesmo uma alavanca no sentido de forçar a análise, discussão e decisão dos factos…»

A reforma de 2013 acentuou ainda mais este fito, impondo ao juiz uma atuação pro ativa no sentido de, se entender existir deficiência alegatória, diligenciar pelo suprimento da mesma – cfr. artºs 6º e 590º nºs 3 e 4 do CPC.

Nesta senda citem-se alguns arestos mais recentes. Assim:

Ac. RP de 21.10.2019, p. 4138/18.0T8MTS-A.P1, in dgsi.pt, como os restantes:

«I - A ineptidão da petição inicial, apenas, ocorre quando esta contém deficiências que comprometem irremediavelmente a sua finalidade...

II - Ainda, que os factos essenciais alegados sejam insuficientes, se a ré contestar, decorrendo da contestação que interpretou convenientemente a petição inicial e os pedidos, impugnando expressamente o que foi alegado pela autora e, em consequência, requerendo a sua absolvição daqueles, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a), do nº 2, do art. 186º, do CPC seja, com fundamento na falta ou ininteligibilidade de causa de pedir ou do pedido, a arguição não é julgada procedente quando, conforme estipula o nº 3, daquele mesmo artigo.

IV - O juiz deve, oficiosamente, determinar que a autora aperfeiçoe a petição inicial, suprindo as omissões detectadas, no prazo fixado e só depois é que poderá extrair as consequências daquela omissão, caso não sejam supridas as insuficiências.»

Ac. RE de 09.09.2021, p. 1884/19.4T8EVR-B.E1

«V – Sobre as partes recai o ónus de alegarem os factos essenciais em sentido estrito e os factos complementares, sendo que quando faltem os primeiros estamos perante uma nulidade do processo por ineptidão da petição inicial; e quando faltem os segundos, deverá o tribunal a quo convidar a parte a aperfeiçoar o seu articulado, nos termos do artigo 590.º, n.ºs 2, alínea b) e 4, do Código de Processo Civil.»

Ac. RG de 13.07.2022, p. nº 2561/20.9T8VCT.G1

«A ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir pressupõe que, do ponto de vista lógico e racional, o pedido se oponha e brigue com a causa de pedir.

Não há ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir se o acervo fáctico que serve de base à pretensão deduzida for compreensível, pese embora, eventualmente, não conduza à procedência da ação.»

Ac. RL de 10.11.2022, p. 118395/21.4YIPRT.L1-2

«II) A petição inicial é inepta por ininteligibilidade quando os factos e a conclusão são nela expostos em termos de tal modo confusos, obscuros ou ambíguos que não possa apreender-se qual é o pedido ou a causa de pedir.

III) A falta ou a ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir não são passíveis de suprimento, pelo que, também não terá lugar a prolação de despacho de aperfeiçoamento.

IV) Contudo, só haverá falta de indicação da causa de pedir determinante da ineptidão quando, de todo em todo, falte a indicação dos factos invocados para sustentar a pretensão submetida a juízo, ou tais factos sejam expostos de modo tal que, seja impossível, ou, pelo menos, razoavelmente inexigível, determinar, qual o pedido e a causa de pedir.» [...].

5.2.

In casu.

É obvio que a petição inicial não é um modelo a seguir no que tange ao cumprimento do aludido dever de substanciação, através da alegação de factos concretos, concisos e incisos, ie, ocorrências materiais da vida.

Antes atendo-se, essencialmente, à alegação de factos genéricos, conclusivos e opinativos: «ausência de ideia de família, discussões e ameaças» – cfr. artºs 16º, 20º e 24º.

No entanto alguns factos são alegados.

É o caso do vertido nos artºs 12º e 14º da pi, pois que a autora ao plasmar que ela arcou «sozinha com as lides domésticas», está a querer dizer que o réu delas se alheou, o que viola o dever de cooperação.

Bem como o alegado no artº 15º, pois que, não contribuindo o réu atempadamente com a anuída entrega de um certo valor – 1.400,00 euros - para as despesas familiares, está ele a violar o dever de assistência.

Acresce que o réu, não obstante as deficiências invocadas, inteligiu o feito que a demandante introduziu em juízo e está cônscio das consequências que ela dele pretende retirar.

Assim sendo, parece-nos que o vício da petição não é tanto o da ineptidão, mas mais é o da deficiência.

Nesta conformidade, a Julgadora, em vez de ordenar a notificação das partes, no sentido de evitar decisões surpresa, no entendimento de que a petição era inepta, melhor teria decidido se convidasse a autora a concretizar factualmente, em termos de modo, tempo e lugar, as alegadas ausências, discussões e ameaças por banda do réu.

Sendo que a ação prosseguiria e seria julgada perante os parcos factos alegados e outros que eventualmente a autora viesse a alegar em face do convite aludido, e o pedido procederia ou improcederia em função dos factos que viessem a ser dados como provados ou não provados.

Tendo entendido que a petição seria inepta, certo é que a autora veio a alegar factos mais concretos.

E estes factos foram alegados como objetivamente supervenientes, ie. ocorridos já após a instauração da ação.

O réu não coloca em crise esta natureza de tais factos.

E a tempestividade de alegação dos mesmos também se verifica.

Como bem se expende na decisão, eles poderiam ainda ser alegados em sede de audiência prévia, nos termos do artº 588º nº 3 al. a) do CPC, diligência que o processo admite, pelo que tendo sido alegados antes desta fase, a sua tempestividade é patente.

Dito isto, e nesta conformidade, emerge o disposto no artº 611º do CPC, o qual estatui:

«Atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes

1 - Sem prejuízo das restrições estabelecidas noutras disposições legais, nomeadamente quanto às condições em que pode ser alterada a causa de pedir, deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da ação, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão.»

Certo é que nos termos do artº 265º nº 1 do CPC:

«1 - Na falta de acordo, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor, devendo a alteração ou ampliação ser feita no prazo de 10 dias a contar da aceitação.»

Porém, a mais adequada exegese para a compatibilização dos dois preceitos aponta no sentido de que o artº 265º apenas proíbe a alteração da causa petendi se ela for alicerçada em factos já ocorridos ao tempo da instauração da ação.

Se forem supervenientes, objetiva ou subjetivamente, podem e devem eles ser tomados em consideração na decisão final – Cfr. Ac. da R Évora de 14.01.2021, p. 168/05.0TBVVC-N.E1, e Ac. R Lisboa de 28.03.2023, p. 915/14.9TVLSB-B.L1-7, in dgsi.pt.

Isto sob pena de se retirar efeito útil ao artº 611º.

E, acima de tudo, em abono do magno princípio da prevalência da substância sobre a forma, sucessivamente reiterado nas últimas reformas processuais, ou seja, da realização da justiça material; e, inclusive, em defesa dos princípios da celeridade e da economia de meios.

Esta ideia de que a estabilização da causa de pedir e a sua imutabilidade não são sacramentais, resulta ainda do nº6 do artº 265º, o qual permite, sem a restrição do nº 1, a modificação da causa de pedir, desde que acompanhada da modificação do pedido e tal não implique convolação para relação jurídica diversa da controvertida.

Efetivamente:

«A circunstância de o legislador de 2013 (não obstante ter prescindido da possibilidade da alteração conjunta, e à partida inteiramente livre, do pedido e da causa de pedir, na réplica, por já não admitir esse articulado com essa função) ter mantido a norma do nº 6 do anterior art. 273º (que corresponde à do nº 6 do atual art. 265º), permitindo, assim, a modificação simultânea do pedido e da causa de pedir, desde que tal não implique convolação para relação jurídica diversa da controvertida, parece que implicará a sua adesão, pelo menos nesta matéria, ao conceito amplo de causa de pedir.

Segundo este conceito, só haverá alteração da causa de pedir se nenhum dos factos constitutivos das normas invocadas quanto ao pedido inicial for comum ao pedido ampliado.» - Ac. R Coimbra de 26.01.2021, p. 5362/18.0T8CBR-B.C1, in dgsi.pt. [---]

Ora no caso sub judice, e como se viu, na pi. a autora invoca alguns factos que alicerçam, comumente com os factos supervenientemente alegados, o seu pedido, o qual nem sequer é ampliado, mas se mantém inalterado: o decretamento do divórcio.

E assim, summo rigore, inexistindo uma verdadeira alteração da causa de pedir, mas antes uma concretização, desenvolvimento ou completude da liminarmente invocada.

E tal ideia dimana ainda do facto de, tal como bem decido, que o prazo de um ano da separação de facto a que alude a al. a) do artº 1782º do CCivil, pode não estar completado no momento da instauração da ação, relevando para o efeito deste preceito se se completar até à prolação da decisão final.

Neste sentido se tem inclinado a doutrina e a jurisprudência mais recentes, como sejam o Ac.do STJ de 23.02.2021, p. 3069/19.0T8VNG.P1.S1, citado na decisão, o voto de vencido proferido no Ac. R Évora de 21.03.2013, p. 292/10.7T2SNS.E1. e o Ac. R Lisboa de 23.02.2021, p. 1942/19.5T8CSC-D.L1-7, todos in dgsi.pt.

No caso vertente esta possibilidade é tanto mais de admitir quanto é certo que a autora já tinha invocado factos que apontavam para tal fundamento – artº 21º da pi.

Destarte, se atingindo a final conclusão que os vícios/ilegalidades apontados à decisão, inexistem; antes esta melhor se compaginando com a realização mais célere da justiça material."

*3. [Comentário] Não é fácil descortinar nos factos que foram alegados pela autora da acção de divórcio como factos supervenientes o que é realmente posterior à entrega da petição inicial. Em todo o caso, parece haver nestes factos alguns que podem ser considerados "factos continuados" ou "reiterados", o que é suficiente para que possam ser qualificados como factos (objectivamente) supervenientes para efeitos do disposto no art. 588.º, n.º 2, CPC.

MTS


26/02/2025

Jurisprudência uniformizada (72)


Deserção da instância;
contraditório; decisão-surpresa


-- Ac. STJ 2/2025, de 26/2, uniformizou jurisprudência no seguinte sentido:

I - A decisão judicial que declara a deserção da instância nos termos do artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil pressupõe a inércia no impulso processual, com a paragem dos autos por mais de seis meses consecutivos, exclusivamente imputável à parte a quem compete esse ónus, não se integrando o acto em falta no âmbito dos poderes/deveres oficiosos do tribunal. 

II - Quando o juiz decida julgar deserta a instância haverá lugar ao cumprimento do contraditório, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, com inerente audiência prévia da parte, a menos que fosse, ou devesse ser, seguramente do seu conhecimento, por força do regime jurídico aplicável ou de adequada notificação, que o processo aguardaria o impulso processual que lhe competia sob a cominação prevista no artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.


Bibliografia (1175)


-- Carriero, M. F., Causalità e imputazione / Le leggi scientifiche tra metodo e dogmi (Giappichelli: Torino 2025)


Jurisprudência 2024 (114)


Processo tutelar cível;
representação de menores; patrocínio judiciário

1. O sumário de RL 23/5/2024 (22446/18.8T8LSB-A.L1-2) é o seguinte: 

I – A nomeação de advogado à criança, nos quadros do nº. 2, do artº. 18º, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, tem fundamentalmente como ratio legis a tutela e salvaguarda dos interesses dos filhos menores, normalmente o vértice mais fragilizado nas querelas que os progenitores alimentam e sustentam, assim se justificando que aquela opere no quadro da lei do apoio judiciário, tal como prevê o nº. 3, do artº. 103º, da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, aplicável como princípio orientador ao processo tutelar cível de regulação do exercício das responsabilidades parentais, desde logo por força do nº. 1, do artº. 4º, do RGPTC;

II – tal solução garante total isenção e imparcialidade na representação dos menores, na concretização do critério orientador do superior interesse da criança (que não dos seus pais) e evita que a sua posição possa ser contaminada ou influenciada pelos interesses dos seus progenitores, salvaguardando e tutelando que os únicos interesses que venham a ser afirmados em tribunal, pelo competente técnico jurídico nomeado, correspondam, com efectividade, aos interesses dos menores representados;

III – tal nomeação oficiosa permite, assim, que a Assistência jurídica prestada aos menores se venha a concretizar de forma mais objectiva, serena, desinteressada e equidistante, afirmando-se imune a quaisquer pressões dos progenitores, assim garantindo plenamente a salvaguarda do estrito interesse daqueles;

IV – sendo, ainda, a mesma susceptível de evitar ou prevenir uma “eventual alienação parental”, ou servir de alavancagem de “fenómenos disfuncionais de apegamento emocional exagerado a uma das partes”, assim se evitando que a posição processual do menor acompanhado por técnico de direito competente possa ser rotulada como um simples prolongamento acrítico e encapotado da posição de qualquer um dos progenitores, funcionando manipuladamente nas mãos destes;

V - caso que assim não se entenda, e se admita que os próprios menores tivessem o direito de escolher o advogado que os representasse (o que não é admissível nos quadros da lei do apoio judiciário), sempre tal colidiria com a sua incapacidade para o exercício de direitos, suprível, in casu, pelo poder paternal – os artigos 123º e 124º, do Cód. Civil;

VI - efectivamente, não cabendo a outorga de mandato forense nas excepções à incapacidade dos menores elencadas no artº. 127º, do mesmo diploma, e não resultando que tal outorga se possa qualificar como uma mera questão ou acto administrativo, tal suprimento de incapacidade para o exercício de tal direito sempre teria que ser operada mediante a intervenção de ambos os progenitores, não bastando para tal a mera intervenção de um;

VII - com efeito, a outorga de mandato forense, tanto mais num processo em que se procede à regulação do exercício das responsabilidades parentais dos menores em equação, não constitui, claramente, uma mera questão da sua vida administrativa, antes se traduzindo numa questão de particular importância para a vida dos menores, cujo exercício, conforme resulta da sentença proferida, pertence a ambos os progenitores, excluída que está a exclusividade de exercício a solo, assim impondo que o suprimento da incapacidade dos menores mandantes tivesse que ser operada por ambos os progenitores;

VIII – o artº. 5º da Convenção Europeia Sobre o Exercício dos Direitos das Crianças, ao enunciar as medidas processuais promotoras do exercício dos direitos processuais das crianças, no que concerne ao direito de serem Assistidas por advogado, prevê o direito de pedirem a designação de advogado – a alínea b) -, e não propriamente um direito de escolha ou de concreta indicação do advogado que preste tal Assistência;

IX – tal normativo efectua uma clara distinção entre as situações em que a criança tem liberdade para escolher ou indicar a pessoa que lhe deva prestar Assistência para o auxiliar a exprimir as suas opiniões, bem como para representá-lo – as alíneas a) e c) -, daquela situação em que tem apenas o direito de pedir que lhe seja designado um advogado – a alínea b) -, em que tal direito de escolha/indicação não é legalmente estatuído;

X - solução legal que bem se entende, pois, prevendo-se tal direito para efectiva tutela e defesa da posição processual da criança, caso existisse aquele direito de escolha sempre esta ficaria sujeita à influência de um ou de ambos os progenitores, o que poderia contaminar a necessária equidistância e isenção do profissional de direito.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Em primeiro lugar, enunciemos o quadro legal geral no âmbito do qual se apreciará acerca do objecto recursório.

Prevendo acerca da constituição de advogado, estatui o artº. 18º, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível – aprovado pela Lei nº. 141/2015, de 08/09 -, que:

“1 - Nos processos previstos no RGPTC é obrigatória a constituição de advogado na fase de recurso.
2 - É obrigatória a nomeação de advogado à criança, quando os seus interesses e os dos seus pais, representante legal ou de quem tenha a guarda de facto, sejam conflituantes, e ainda quando a criança com maturidade adequada o solicitar ao tribunal [...]

O antecedente normativo – artº. 17º -, do mesmo diploma, no seu nº. 1, prevendo acerca da iniciativa processual, estatui que “salvo disposição expressa e sem prejuízo do disposto nos artigos 52.º e 58.º, a iniciativa processual cabe ao Ministério Público, à criança com idade superior a 12 anos, aos ascendentes, aos irmãos e ao representante legal da criança”.

Por sua vez, prescrevem os nºs. 1 a 3, do artº. 103º, da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo – aprovada pela Lei nº. 142/2015, de 08/09 -, cujos princípios orientadores são aplicáveis aos processos tutelares cíveis (o preâmbulo do nº. 1, do artº. 4º, do RGPTC), que:

“1 - Os pais, o representante legal ou quem tiver a guarda de facto podem, em qualquer fase do processo, constituir advogado ou requerer a nomeação de patrono que o represente, a si ou à criança ou ao jovem.
2 - É obrigatória a nomeação de patrono à criança ou jovem quando os seus interesses e os dos seus pais, representante legal ou de quem tenha a guarda de facto sejam conflituantes e ainda quando a criança ou jovem com a maturidade adequada o solicitar ao tribunal.
3 - A nomeação do patrono é efetuada nos termos da lei do apoio judiciário” (sublinhado nosso).

No âmbito da condição jurídica dos menores, e prevendo acerca da sua incapacidade, estatui o artº. 123º, do Código Civil, que “salvo disposição em contrário, os menores carecem de capacidade para o exercício de direitos”, aduzindo o artº. 122º, do mesmo diploma, serem menores os que ainda não tenham “completado dezoito anos de idade”.

O artº. 125º, ainda do Cód. Civil, estatui a propósito da anulabilidade dos actos dos menores, enquanto que o artº. 127º prevê acerca das excepções à incapacidade dos menores, considerando excepcionalmente válidos os actos aí elencados.

Convenção Europeia dobre o Exercício dos Direitos das Crianças, adoptada em Estrasburgo, em 25 de Janeiro de 1996 – aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº. 07/2014, de 27/01 -, enunciando acerca das medidas processuais para promover o exercício dos direitos das crianças, e dos direitos processuais desta, prescreve no artº. 5º que “nos processos perante uma autoridade judicial, que digam respeito a crianças, as Partes deverão considerar a possibilidade de lhes conceder direitos processuais adicionais, em especial:

a) O direito de pedirem para serem assistidas por uma pessoa adequada, da sua escolha, que as ajude a exprimir as suas opiniões;
b) O direito de pedirem, elas próprias ou outras pessoas ou entidades por elas, a designação de um representante distinto, nos casos apropriados, um advogado;
c) O direito de nomear o seu próprio representante;
d) O direito de exercer, no todo ou em parte, os direitos das partes em tais processos” [...]

Ajuizando acerca da necessidade (e, mesmo da obrigatoriedade) de nomeação de advogado a menor, aduz-se no douto Acórdão da RL de 13/07/2017 – Relator: António Santos, Processo nº. 1201/14.0T8VFX.L1-6 -, que incumbindo “ao Advogado o dever de agir de forma a defender os interesses legítimos do cliente, sem prejuízo do cumprimento das normas legais e deontológicas ( cfr. artº 97º, do EOA ), sendo que, no exercício da profissão, mantém sempre e em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão ( cfr. artº 89º, do EOA ), ou de influências exteriores [ abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente , antes devendo utilizar todos os conhecimentos técnicos , saberes e procedimentos que a legis artis consigna e que se supõe estarem na sua posse ] , é manifesto que em última instância é ao Advogado nomeado que compete aferir de qual o meio adequado a lançar mão para melhor defender os interesses legítimos do menor.

Acrescenta, citando a possibilidade de nomeação já prevista no transcrito artº. 103º, da LPCJP, importar “não olvidar que, regendo-se os processos tutelares cíveis regulados no RGPTC pelos princípios orientadores de intervenção estabelecidos na lei de protecção de crianças e jovens em perigo , na respectiva tramitação deve outrossim ser assegurado o princípio da Audição e participação da criança , de forma a que, a criança, com capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade, seja sempre ouvida sobre as decisões que lhe digam respeito, preferencialmente com o apoio da assessoria técnica ao tribunal, sendo garantido, salvo recusa fundamentada do juiz, o acompanhamento por adulto da sua escolha sempre que nisso manifeste interesse [ cfr. artº 4º,nº1. Alínea c), do RGPTC].

E, precisamente em sede de regulação das responsabilidades parentais [cfr. art. 35º, n.º 3 e artº 5º (1) , ambos do RGPTC], é o legislador peremptório em estabelecer que “ A criança com idade superior a 12 anos ou com idade inferior, com capacidade para compreender os assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade, é ouvida pelo tribunal, nos termos previstos na alínea c) do artigo 4.º e no artigo 5.º, salvo se a defesa do seu superior interesse o desaconselhar “. [...]

Enunciados os critérios gerais, centremo-nos na matéria controvertida.

Nomeadamente a de aferir se a obrigatoriedade de nomeação de advogado à criança – na situação em que os seus interesses e os dos seus pais sejam conflituantes, ou quando revelar suficiente maturidade para o solicitar ao tribunal – pode ocorrer mediante procuração pela mesma outorgada a mandatário judicial, ou seja, constituindo, por si, advogado nos autos ; ou se, ao invés, tal nomeação deve ocorrer nos quadros da lei do apoio judiciário, nomeando-lhe patrono oficioso. [...]

Aqui chegados, é tempo de retornar ao caso concreto, aplicando as enunciadas directrizes ou princípios.

Conforme resulta dos pontos 2 e 3 do relatório, em 14/06/2023, foi junto aos autos requerimento, assinado pelo menor Al........., no qual era solicitada a nomeação de advogado que o defendesse, bem como aos demais 3 irmãos, contendo, em anexo, carta com a assinatura destes, bem como comprovativo de apoio judiciário entretanto formulado.

Logo em 16/06/2023, e independentemente da sorte do pedido formulado junto da Segurança Social, é proferido despacho a conceder o patrocínio judiciário às 4 crianças, diligenciando-se pela nomeação de Patrono Oficioso através do Sinoa, o que veio a ser concretizado no mesmo dia – pontos 4 e 5 do relatório -, inclusive mediante remessa de ofício de nomeação, por parte da Ordem dos Advogados, ao Patrono nomeado – ponto 6 do relatório.

Prolatada sentença de Regulação das Responsabilidades Parentais, datada de 22/08/2023, em 14/09/2023 os menores Al.  Af. , por intermédio de Advogada, vieram requerer aos autos a junção de procuração forense, no âmbito da qual “vêm constituir como sua procuradora e advogada, Dra. SS. (….), a quem conferem poderes forenses gerais para os representar no âmbito do processo nº. (…)/18.8T8LSB e apensos que correm termos no Juiz 7 do Tribunal de Família e Menores de Lisboa”.

Tal procuração foi assinada por ambos os menores, então com as idades, respetivamente, de 16 e 15 anos, após o que consta o seguinte:

M., mãe dos menores, titular das responsabilidades parentais dos mesmos, residente na Rua [...] pelo presente dá o seu consentimento ao acto praticado”, seguindo-se a assinatura de tal progenitora – pontos 7 e 8 do relatório.

Temos, então, uma situação em que dois menores, com as idades de 16 e 15 anos, a quem já havia sido nomeado, a seu pedido, advogado oficioso, vêm juntar aos autos, decorridos aproximadamente 3 meses daquela nomeação, procuração forense, na qual mandatam como sua procuradora determinada Advogada, sendo este acto objecto de expresso consentimento da progenitora mãe.

Vejamos.

Não se discute nos autos a obrigatoriedade de nomeação de advogado às crianças em equação, nos quadros do transcrito nº. 2, do artº. 18º do RGPTC. O que parece evidente no que concerne ao preenchimento da 2ª parte de tal normativo no que se reporta aos menores Al., Af. e As., então com 16, 15 e 12 anos, daí decorrendo presuntiva maturidade para o solicitarem junto do Tribunal.

E, por outro lado, indiscutível parece, ainda, o preenchimento do estatuído na 1ª parte do mesmo normativo, decorrendo com evidência dos autos a existência de conflituantes interesses entre os progenitores e os menores filhos, o que igualmente justifica a obrigatoriedade daquela nomeação.

Efectivamente, atento o clima de exacerbada litigância entre os progenitores, que emana com veemência dos autos, traduzido num litígio que subsiste há quase 7 anos, e em que a sentença reguladora do exercício das responsabilidades parentais é prolatada quase 6 anos após o início do processo tutelar, sem que se encontre ainda transitada, parece evidente e cristalino que os interesses daqueles são antagónicos, desde logo no que concerne à própria subsistência do litígio, que em nada beneficia o equilíbrio e saudável crescimento e desenvolvimento dos filhos.

Ora, atenta a ratio legis daquela nomeação, fundamentalmente prevista para tutela e salvaguarda dos interesses dos filhos menores, normalmente o vértice mais fragilizado nas querelas que os progenitores alimentam e sustentam, cremos justificar-se que aquela opere no quadro da lei do apoio judiciário, tal como prevê o transcrito nº. 3, do artº. 103º, da LPCJP, aplicável como princípio orientador ao presente processo tutelar cível, desde logo por força do nº. 1, do artº. 4º, do RGPTC.

Efectivamente, tal solução (que foi, em concreto, adoptada nos presentes autos) garante total isenção e imparcialidade na representação dos menores, na concretização do critério orientador do superior interesse da criança (que não dos seus pais) e evita que a sua posição possa ser contaminada ou influenciada pelos interesses dos seus progenitoressalvaguardando e tutelando que os únicos interesses que venham a ser afirmados em tribunal, pelo competente técnico jurídico nomeado, correspondam, com efectividade, aos interesses dos menores tutelados.

Tal nomeação oficiosa garante e permite, assim, que a assistência jurídica prestada aos menores se venha a concretizar de forma mais objectiva, serena, desinteressada e equidistante, afirmando-se imune a quaisquer pressões dos progenitores, assim garantindo plenamente a salvaguarda do estrito interesse daqueles.

Na terminologia supra referenciada, tal nomeação é ainda susceptível de evitar ou prevenir uma “eventual alienação parental”, ou servir de alavancagem de “fenómenos disfuncionais de apegamento emocional exagerado a uma das partes”, assim se evitando que a posição processual do menor acompanhado por técnico de direito competente possa ser rotulada como um simples prolongamento acrítico e encapotado da posição de qualquer um dos progenitores, funcionando manipuladamente nas mãos destes.

Todavia, ainda que assim não se entenda, e se admita que os próprios menores tivessem o direito de escolher o advogado que os representasse (o que não é admissível nos quadros da lei do apoio judiciário), sempre tal colidiria com a sua incapacidade para o exercício de direitos, suprível, in casu, pelo poder paternal – os artigos 123º e 124º, do Cód. Civil.

Efectivamente, não cabendo a outorga de mandato forense nas excepções à incapacidade dos menores elencadas no artº. 127º, do mesmo diploma, e não resultando que tal outorga se possa qualificar como uma mera questão ou acto administrativo, tal suprimento de incapacidade para o exercício de tal direito sempre teria que ser operada mediante a intervenção de ambos os progenitores, não bastando para tal a mera intervenção da progenitora mãe.

Com efeito, a outorga de mandato forense, tanto mais num processo em que se procede à regulação do exercício das responsabilidades parentais dos menores em equação, não constitui, claramente, uma mera questão da sua vida administrativa, antes se traduzindo numa questão de particular importância para a vida dos menores, cujo exercício, conforme resulta da sentença proferida, pertence a ambos os progenitores, excluída que está a exclusividade de exercício a solo. O que, deste modo, sempre impunha que o suprimento da incapacidade dos menores mandantes tivesse que ser operada por ambos os progenitores.

E, nem se afirme, em desabono do consignado, que a regulação efectuada nos autos ainda não transitou em julgado. Efectivamente, se é certo este não trânsito, também é certo que, neste momento, é o teor de tal decisão que prevalece, atento o efeito meramente devolutivo do recurso interposto.

Ora, o progenitor pai, não só não deu o seu assentimento à outorga do referenciado mandato forense, consentindo na outorga da procuração, como impugnou tal acto, deduzindo expressa oposição ao mesmo, conforme resulta do requerimento mencionado no ponto 9 do relatório, no qual pugna pela ineficácia ou nulidade quer da outorgada procuração, quer dos posteriores requerimentos subscritos pela procuradora forense, o que sempre preencheria a legitimidade para a anulabilidade de tal acto, nos termos enunciados no artº. 125º, do Cód. Civil.

Aliás, é na sequência de tal requerimento e da posterior posição assumida pelo Digno Magistrado de Ministério Público, que é proferida a decisão sob apelo que, corroborando-os, declara nulo e sem nenhum efeito o mandato conferido, bem como ineficazes os actos praticados sob a sua égide.

Por outro lado, não entendemos que o supra exposto seja contraditado pelo quadro legal transcrito, nomeadamente pelo enunciado no citado artº. 5º da Convenção Europeia Sobre o Exercício dos Direitos das Crianças.

Efectivamente, este normativo, ao enunciar as medidas processuais promotoras do exercício dos direitos processuais das crianças, no que concerne ao direito de serem assistidas por advogado, prevê o direito de pedirem a designação de advogado – a alínea b) -, e não propriamente um direito de escolha ou de concreta indicação do advogado que preste tal assistência.

Ou seja, tal como referenciado pelo progenitor pai em sede contra-alegacional, aquele normativo efectua uma clara distinção entre as situações em que a criança tem liberdade para escolher ou indicar a pessoa que lhe deva prestar assistência para o auxiliar a exprimir as suas opiniões, bem como para representá-lo – as alíneas a) e c) -, daquela situação em que tem apenas o direito de pedir que lhe seja designado um advogado – a alínea b) -, em que tal direito de escolha/indicação não é legalmente estatuído.

Solução legal que bem se entende, pois, prevendo-se tal direito para efectiva tutela e defesa da posição processual da criança, caso existisse aquele direito de escolha sempre esta ficaria sujeita à influência de um ou de ambos os progenitores (nos termos supra argumentados), o que poderia contaminar a necessária equidistância e isenção do profissional de direito. 

Desta forma, o que surge como direito fundamental da criança e, consequentemente, dos Recorrentes menores, no que concerne ao acesso ao direito e a tutela jurisdicional efectiva – o artº. 20º, da Constituição da República Portuguesa -, é a previsão de poder contar com o necessário acompanhamento de advogado em processo que corra termos perante autoridade judicial, nomeadamente em sede de patrocínio judiciário, e não propriamente que se deva reconhecer uma qualquer tutela constitucional de um alegado direito de escolha, sem que tal determine inconstitucionalidade interpretativa do disposto no citado artº. 18º, do RGPTC, em contravenção com o consignado no mencionado artº. 20º, da Constituição da República Portuguesa."

[MTS]


25/02/2025

Jurisprudência 2024 (113)


Providência cautelar;
causa de pedir; indeferimento liminar


1. O sumário de RL 23/4/2024 (810/24.3T8LRS.L1-2) é o seguinte:

I – Resultando do requerimento inicial apresentado no âmbito de procedimento cautelar comum que a requerente atribui à requerida a prática de um facto ilícito, consubstanciado na demolição de edifícios confinantes com o seu, causador de danos graves ao nível da sua empena oeste, colocando em causa a sua estabilidade estrutural e gerando elevados níveis de infiltração e humidades, com impacto na saúde dos seus arrendatários e na conservação das mercadorias acondicionadas nas frações arrendadas, deverão considerar-se alegados os factos essenciais da tutela cautelar que requereu.

II - Independentemente da procedência final da pretensão formulada, não pode deixar de considerar-se que o pedido deduzido (reparação do edifício ao nível da empena oeste) decorre da causa de pedir invocada (facto ilícito gerador de responsabilidade civil), não se verificando uma manifesta improcedência da providência cautelar.

III - A imediata decisão quanto à improcedência da causa, nos termos do disposto nos artigos 226º, nº 4, alínea b) e 590º, nº 1, CPC, coartou à requerente a possibilidade de obter uma decisão de mérito, na qual fossem ponderados os factos essenciais nucleares que alegou em conjunto com outros (complementares ou instrumentais) que resultassem da instrução da causa ou até de um convite ao aperfeiçoamento do articulado;

IV – O indeferimento liminar de providência cautelar deve ser reservado para situações de manifesta improcedência do pedido.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Na decisão recorrida considerou-se que se revelava ab initio inviável o presente procedimento cautelar, impondo-se, por isso, o seu indeferimento liminar, nos termos do disposto nos artigos 590º, nº 1 e 226º, nº 4, CPC.

O artigo 590º, sob a epígrafe “Gestão inicial do processo”, dispõe no seu nº 1:

1-Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis (…)”

In casu, a pretensão deduzida foi considerada manifestamente improcedente, considerando-se na decisão recorrida não terem sido alegados factos que permitissem aferir dos pressupostos da providência requerida.

Ora, por forma a indagar da verificação do mencionado vício, haverá que ter presente que da alegação contida na petição inicial extrai-se, no essencial, o seguinte:

- A requerente é proprietária de prédio urbano sito na Avenida ... Sacavém, Loures;

- Em maio de 2023, a requerida executou obras de demolição de prédios que confinam a oeste com o da requerente causando danos no interior e exterior da respetiva empena oeste;

- Tais danos necessitam de reparação urgente a e requerida recusou à mesma proceder;

- Por força da atuação da requerida nos trabalhos de demolição de prédios adjacentes, existe risco para a estabilidade estrutural da empena oeste do edifício e mostra-se degradada a qualidade das frações arrendadas pela requerente, pelas infiltrações e humidade que passaram a aí existir, com impacto na saúde dos arrendatários e na conservação da mercadoria ali acondicionada;

- Impõe-se a realização de várias obras com vista a suprimir a “corrosão das armaduras e destacamento de betão”, bem como a “deterioração de rebocos exteriores” e a “degradação de revestimentos em paredes interiores”, causados pela operação de demolição levada a cabo pela requerida.

A interpretação de tal articulado deverá ser efetuada de harmonia com os cânones interpretativos vigentes para a declaração negocial, atribuindo-lhe o sentido que um declaratário normal atribuiria, nos termos do disposto no artigo 236º do Código Civil, ex vi artigo 295º do mesmo código.

Ora, da leitura e interpretação da petição inicial, de harmonia com o princípio interpretativo exposto, conclui-se que a requerente atribui à requerida a prática de um facto ilícito, consubstanciado na demolição de edifícios confinantes com o seu, “sem a mínima competência e cautelas devidas”. Tal demolição, na perspetiva da requerente, provocou danos na empena oeste do seu edifício, que poderão colocar em causa a sua estabilidade estrutural e geram elevados níveis de infiltração e humidades, com impacto na saúde dos seus arrendatários e na conservação das mercadorias acondicionadas nas frações arrendadas.

Julgamos que a descrição factual operada pela requerente no requerimento inicial, atenta a sua imprecisão relativamente a alguns dos pontos alegados, suscita dúvidas e reservas. Tal sucede designadamente quando, apesar de referir, com pormenor, quais as obras que, na sua perspetiva, se mostram adequadas a remover o perigo causado pela requerida ao nível da empena oeste do seu edifício, não usa o mesmo grau de concretização para referir quais os danos que a demolição em concreto causou na referida empena oeste. Assim, como não concretiza por que forma a demolição foi efetuada e qual o procedimento omitido que teria evitado os danos que, na sua perspetiva, foram causados no seu edifício. Acresce que o próprio perigo para a estabilidade estrutural da empena oeste se mostra alegado de forma vaga e imprecisa, desconhecendo-se qual o risco concreto ali existente, designadamente se apresenta risco de ruína ou outro.

Ou seja, ao requerimento inicial é possível assacar insuficiências e imprecisões na alegação da matéria de facto.

Porém, daí não resulta que a tal requerimento deva ser apontado o vício da ineptidão, no sentido da falta ou da ininteligibilidade da causa de pedir, nos termos do disposto no artigo 186º, nº 2, alínea a) CPC. Efetivamente, consistindo a causa de pedir no facto constitutivo “da situação jurídica material que quer fazer valer” [
Código de Processo Civil anotado, Vol 1, 3ª edição, pag. 353.] é integrada “(…) pelo facto ou pelos factos concretos que preenchem a norma jurídica da qual o Autor faz derivar os direitos que, segundo ele, conduzirão à procedência do pedido” – Acórdão da Relação de Coimbra de 10-07-2019 [Proferido no processo nº 5149/19.3YIPRT.C1, disponível em www.dgsi.pt].  Tal entendimento decorre da teoria da substanciação, consagrada no nosso regime processual civil no artigo 581º, nº 4, CPC.

No entanto, sem olvidar que incumbe às partes a alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir que introduzem em juízo, como resulta do disposto no artigo 5º, nº 1, CPC, afigura-se que a requerente, não obstante as imprecisões supra mencionadas (e outras que possam ser apontadas), cumpriu suficientemente tal ónus.

Efetivamente, o requerimento inicial contém os “factos essenciais” em que a requerente fundamenta a sua pretensão cautelar, e que se reconduzem à alegação da prática pela requerida de um facto ilícito extracontratual (demolição realizada à margem das práticas regulamentares), com a consequente produção de danos na empena oeste do edifício da autora, afetando o seu direito de propriedade e, reflexamente, a saúde e o património dos seus arrendatários.

Mostra-se, pois, suficientemente indiciado o direito de propriedade que a requerente invoca (cuja titularidade sempre se deveria presumir, atenta a junção de certidão de registo predial junta que comprova a inscrição, a seu favor do referido direito, nos termos do artigo 7º do Código de Registo Predial). Mas também o periculum in mora se extrai do requerimento inicial, dada a alegação de que a demolição levada a cabo pela requerente deteriorou a empena oeste do prédio da requerente, colocando até em causa a sua estabilidade e originando infiltrações e humidades que se repercutem na saúde dos arrendatários das frações de tal prédio, e no respetivo património, por gerarem a deterioração das mercadorias aí armazenadas. Por fim, na tese da requerente, a execução das obras que peticiona, mostra-se adequada à remoção da lesão que invoca.

É ainda certo que, por via da providência requerida, poderá a requerente, como se refere na decisão recorrida, “esgotar o objeto da ação a intentar”. No entanto, tal “esgotamento” apenas poderá ocorrer se “a matéria adquirida no procedimento (…) permitir formar uma convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio” – cfr. artigo 369º, nº 1, CPC. Significa o acabado de expor que a pretensão de inversão do contencioso que foi deduzida pela requerente apenas no momento da decisão de mérito poderá ser ponderada, não podendo extrair-se de um eventual juízo de probabilidade do seu indeferimento (designadamente atenta a complexidade da matéria a apurar para o efeito) uma automática conclusão de desnecessidade da tutela cautelar.

Haverá ainda que salientar que caso os autos prosseguissem para a audiência final, com produção de prova, sempre haveria possibilidade de considerar factos instrumentais resultantes da instrução da causa (cfr. artigo 5º, nº 2, alínea a) e factos complementadores ou concretizadores dos alegados pela requerente, também resultantes da instrução da causa, desde que às partes fosse conferido o direito de sobre eles se pronunciarem (artigo 5º, nº 2. Alínea b), CPC). Porém, a imediata decisão quanto à improcedência da causa coartou à requerente tais possibilidades, inviabilizando a obtenção de uma decisão de mérito. E o certo é que a decisão recorrida se revela desadequada por o requerimento inicial conter factos essenciais nucleares que, em conjunto com outros (complementadores ou instrumentais) que resultassem da instrução da causa ou até de um convite ao aperfeiçoamento do articulado, poderiam viabilizar uma decisão de mérito da causa.

A este propósito, ainda com atualidade, refere Alberto dos Reis [
Comentário 2º, pág. 364 e 371]:

Se o autor exprimiu o seu pensamento em termos inadequados, serviu-se de linguagem tecnicamente defeituosa, mas deu a conhecer suficientemente qual o efeito jurídico que pretendia obter, a petição será uma peça desajeitada e infeliz, mas não pode qualificar-se de inepta. Importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente (…) quando (,….) sendo clara quanto ao pedido e à causa de pedir, omite facto ou circunstâncias necessárias para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta: o que então sucede é que a ação naufraga”.

 Ou seja, uma causa de pedir que foi exposta em termos obscuros ou imprecisos não se equipara a uma causa de pedir inexistente ou ininteligível.

Consequentemente, afigurando-se que o requerimento inicial padece de insuficiência na exposição da matéria de facto, será por via de convite ao seu aperfeiçoamento, nos termos do disposto no nº 4 do artigo 590º, CPC, que tal vício poderá ser suprido. Efetivamente, como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre [
Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª edição pág 634] “O aperfeiçoamento é, pois, o remédio para os casos em que os factos alegados por autor ou réu (os que integram a causa de pedir e os que fundam as exceções) são insuficientes ou não se apresentem suficientemente concretizados”.

Reitera-se, pois, que o requerimento inicial contém os “factos essenciais” em que a requerente fundamenta a sua pretensão cautelar, e que se reconduzem à alegação da prática pela requerida de um facto ilícito extracontratual (demolição realizada em moldes que afetaram o seu direito de propriedade), gerador de danos (na empena oeste do edifício da requerente), existindo a possibilidade do seu agravamento.

Afigura-se, por isso, que apenas depois de operada tal complementação factual (seja por via de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento inicial, seja por via da ponderação de factos instrumentais e complementares que resultem da instrução da causa, nos termos já expostos) e após análise crítica e objetiva da prova produzida, haverá que verificar dos pressupostos da providência requerida. Certo é que no atual estado dos autos, tendo por base a alegação da autora, não pode deixar de ser configurada a eventual existência de uma carência de tutela cautelar, revelando-se prematuro o indeferimento liminar da providência. Ao invés, independentemente da procedência final da pretensão formulada, não pode deixar de considerar-se que o pedido formulado (reparação do edifício ao nível da empena oeste) decorre da causa de pedir invocada (facto ilícito gerador de responsabilidade civil), não se verificando a apontada manifesta improcedência."

[MTS]