"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/02/2025

Jurisprudência 2024 (109)


Providência de arresto;
perda da garantia patrimonial*


1. O sumário de RG 16/5/2024 (2111/24.8T8BRG.G1) é o seguinte:

I. A causa de pedir do procedimento cautelar nominado de arresto é complexa, integrada por factos (concretos e positivos) que revelem como provável a existência do crédito invocado pelo respectivo requerente e como justificado o seu receio de perda da garantia patrimonial respectiva.

II. A garantia patrimonial do crédito que se pretende preservar terá necessariamente que ser aquela que existia à data da constituição respectiva, ou como tal era conhecida pelo credor, precisamente por só essa ter o próprio considerado suficiente e idónea para assumir os riscos inerentes ao negócio celebrado; e apenas caber na tutela do arresto uma sua actuação cautelosa e prudente.

III. O carácter «justificado» do receio de perda da garantia patrimonial do crédito do requerente de arresto não se satisfaz com um mero juízo de probabilidade, correspondente a um estado de espírito que derivou de uma apreciação ligeira da realidade, de simples ou meras dúvidas, de desconfianças subjectivas e precipitadas (sendo, por isso, um receio porventura conjecturado ou exagerado); exige, sim, um receio assente em factos objectivos (concretos e positivos) e avaliados num juízo distanciado (de prudente apreciação), tornando-se por isso convincente.

IV. A mera afirmação de que o devedor recusa o cumprimento (sem que se discrimine a diminuição do património que possuía à data da constituição do crédito), de que procede à reiterada constituição de sociedades, transmitindo para as novas o património das prévias e deixando estas oneradas com dívidas (sem que se discrimine que concretas sociedades constituiu e que concreto património - do antes existente - foi afectado a essa constituição), e que utiliza incessantemente a mesma e única sociedade para garantir as suas dívidas, como igualmente sucedeu no caso concreto (sem que se discrimine que activos possuía a dita sociedade à data em que se constituiu garante do concreto crédito em causa e que activos tem neste momento, e que responsabilidades garantia então e que outras assumiu desde então), não é idónea a fundar um juízo objectivo (factual) de risco de perda de garantia patrimonial.

V. Face ao momento precoce em que o julgamento antecipado do mérito da causa é realizado, o despacho de indeferimento liminar por manifesta improcedência da pretensão do autor deve ser reservado para situações em que seja evidente e inequívoco que a acção nunca poderá proceder, qualquer que seja a interpretação jurídica que se faça da lei em vigor (tendo, nomeadamente, em conta os diferentes contributos da doutrina e da jurisprudência), ou a sua concreta aplicação ao caso sub judice.

VI. Só pode ser mandado aperfeiçoar aquilo que seja pré-existente, isto é, uma prévia alegação de factos essenciais, ainda que insuficiente ou imprecisa; e, por isso, se essa perfunctória ou ambígua alegação não chegou sequer a existir, a petição inicial é inepta, com a consequente nulidade de todo o processo.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

4.3.1.2. «Justificado receio de perda da garantia patrimonial»

[...] verifica-se que o Requerente (AA) alegou, como factos concretizadores do justo receio da perda da garantia patrimonial do seu crédito:

. recusar-se o 1.º Requerido (BB) a cumprir o acordado, furtando-se inclusivamente a qualquer contacto seu para o efeito;

. ter o 1.º Requerido (BB) constituído EMP04... - Unipessoal, Limitada com um objecto social parcialmente coincidente com a Sociedade cuja quota lhe transmitiu, desviando o património desta para aquela, renunciando depois formalmente à gerência de EMP04... - Unipessoal, Limitada e simulando a transmissão da sua participação social, pese embora a continue a gerir de facto como negócio seu;

. constituir sociedades a torto e a direito, com a intenção de dissipar o seu património, deixando as prévias oneradas com dívidas, transferindo o seu património para as novas e prosseguindo nelas o inalterável objecto social das que abandona;

. ter sido condenado por insolvências culposas, uma delas com base na transmissão de bens de uma sociedade para a outra, fazendo-o uma e outra vez;

. e utilizar incessantemente a 2.ª Requerida (EMP01... - Unipessoal, Limitada) para credibilizar as dívidas que vai acumulando, fazendo-a garante das mesmas, tal como sucedeu no caso dos autos.

Dir-se-á, e salvo sempre o devido respeito por opinião contrária, que a recusa de cumprimento, ainda que expressa e/ou reiterada, não contende necessariamente com a perda da pré-existente garantia patrimonial que assistia o crédito cuja satisfação assim se nega (isto é, não obstante o dito incumprimento, poderá o devedor manter nos seus exactos termos o património que possuía à data da sua vinculação).

Já relativamente à constituição de EMP04... - Unipessoal, Limitada, pelo 1.º Requerido (BB), parcialmente com o mesmo objecto social da Sociedade cuja quota o Requerente (AA) lhe transmitiu, desviando o património desta para aquela, renunciando depois formalmente à gerência de EMP04... - Unipessoal, Limitada e simulando a transmissão da sua participação social, pese embora a continue a gerir de facto como negócio seu, dir-se-á não se ver como essa actuação diminua aquele que era o património do 1.º Requerido (BB) à data da celebração do negócio de cessão de quotas em causa.

Com efeito, a garantia patrimonial do crédito que se pretende preservar terá necessariamente que ser aquela que existia à data da constituição deste, ou como tal era conhecida pelo credor, precisamente por só essa ter o próprio considerado suficiente e idónea para assumir os riscos inerentes ao negócio por si realizado. Ora, a constituição posterior de uma nova sociedade pelo 1.º Requerido (BB), ainda que parcialmente com o mesmo objecto daquela outra cujo capital social adquiriu, não afecta necessariamente o seu pré-existente património, uma vez que o Requerente (AA) não alegou que parte dele foi afectado a essa constituição.

Considerando agora a alegada e reiterada constituição de sociedades a torto e a direito, pelo 1.º Requerido (BB), com a intenção de dissipar o seu património, deixando as prévias oneradas com dívidas, transferindo os seus bens para as novas e prosseguindo nelas o inalterável objecto social das que abandona - tendo inclusivamente sido condenado por insolvências culposas (uma delas com base na transmissão de bens de uma sociedade para a outra) -, reiteram-se as considerações referidas antes.

Com efeito, se este era, e é, o perfil de empresário do 1.º Requerido (BB), o respectivo conhecimento por parte do Requerente (AA) não o impediu de contratar com ele, sendo que não alegou nos autos não o ter podido conhecer em momento anterior, ou só o ter descoberto mais tarde (e em que circunstâncias) [---]

Dir-se-á ainda que, não tendo oportunamente alegado que património conheceu ao 1.º Requerido (BB), onde firmou o risco de incumprimento do negócio que com ele celebrou, que concretas sociedades o mesmo constituiu depois e que concreto património (do antes existente ou, pelo menos, por si conhecido) para elas desviou, as suas alegações estão desprovidas da exigível concretização factual, enunciando apenas a sua subjectiva desconfiança, o seu mero receio conjectural, a sua conclusiva avaliação das actuações daquele.

Por fim, quanto à actuação do 1.º Requerido (BB), de utilizar incessantemente a 2.ª Requerida (EMP01... - Unipessoal, Limitada) para credibilizar as dívidas que vai acumulando, fazendo-a garante das mesmas, tal como sucedeu no caso dos autos, dir-se-á não ter novamente o Requerente (AA) discriminado que activos possuía a mesma à data em que se constituiu fiadora daquele, no cumprimento do seu crédito, e que activos tem neste momento; e igualmente não discriminou que responsabilidades garantia então e que outras assumiu desde então.

Sem essa prévia alegação, tendente a caracterizar a perda (ou o risco de perda) da garantia patrimonial desta 2.ª Requerida (EMP01... - Unipessoal, Limitada), nada de útil se retira daquela que o Requerente (AA) afirma ser mais uma forma habitual de proceder do 1.º Requerido (BB).   

Dir-se-á, assim, que o Requerente (AA) não alegou factos (concretos e positivos) cuja futura prova revelasse como justo o seu receio de perda da garantia patrimonial que considerou, de forma prudente e cautelosa, à data da constituição do seu crédito, já que só essa actuação poderá caber na tutela do arresto preventivo.

Desta forma não se afirma que ele próprio, neste superveniente momento, não desconfie, não receie, que tal possa vir a suceder; mas sim, e apenas, de que não forneceu ao Tribunal uma alegação susceptível de, num alter e distanciado juízo (que, não exigindo um grau de certeza ou de realidade, assegurasse, porém, um prudente convencimento), corroborar tais desconfiança e/ou receio, face ao que fora a sua inicial, prudente e cautelosa avaliação da futura capacidade de cumprimento dos Requeridos."

*3. [Comentário] Considerado o disposto no n.º III do sumário na sua totalidade, dele não decorre que, como por vezes se entende, "o carácter «justificado» do receio de perda da garantia patrimonial do crédito do requerente de arresto não se satisfaz com um mero juízo de probabilidade", mas antes que, segundo os elementos fornecidos pelo requerente, nem sequer se alcança a verosimilhança que é suficiente para a prova desse justo receio.

MTS