"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/02/2025

Jurisprudência 2024 (106)


Processo de inventário;
mapa da partilha; passivo da herança


I. O sumário de RC 7/5/2024 (583/20.9T8ACB.C1) é o seguinte: 

1 - Em processo de inventário judicial, havendo diversos bens a partilhar, tal como passivo determinado, e não tendo os interessados acordado no sentido de esse passivo ser suportado apenas por algum ou alguns deles, deve a decisão determinativa da partilha – e o mapa dela decorrente – mostrar como distribuir, não apenas o ativo, mas também aquele passivo, com o pagamento a constar relativamente a cada um dos interessados responsáveis.

2. - O mapa da partilha materializa a divisão, sujeita a homologação na sentença dos autos de inventário, contendo enunciação do ativo e do passivo, da quota de cada interessado e do preenchimento do respetivo quinhão com bens (ou lotes de bens), e sendo a peça processual que concretiza os direitos de cada interessado, quanto aos bens que lhe serão atribuídos e a tornas a prestar/receber.

3. - No âmbito das operações da partilha, a inicial subtração do passivo ao ativo, com vista à determinação da massa ativa líquida, a ser objeto de divisão pelos quinhões/quotas, não impede a (subsequente) partilha/distribuição do passivo, não constituindo, por isso, a derradeira divisão deste entre os herdeiros uma duplicação na dedução do passivo.

4. - Na falta de acordo em contrário, o passivo, tal como o ativo, deve ser partilhado segundo um princípio igualitário, tendo em conta os direitos/posições hereditários em concurso.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Não convencido, o Recorrente insiste na existência de uma ilegal – e prejudicial – duplicação na dedução do passivo ao ativo (dupla imputação), em violação do dito preceito do art.º 2068.º do CCiv..

Vejamos.

Dispõe este preceito da lei substantiva (em matéria de “Encargos da herança” e sob a epígrafe “Responsabilidade da herança”):

«A herança responde pelas despesas com o funeral e sufrágios do seu autor, pelos encargos com a testamentaria, administração e liquidação do património hereditário, pelo pagamento das dívidas do falecido, e pelo cumprimento dos legados.».

Trata-se, então, da «menção completa das obrigações que recaem sobre os bens deixados pelo falecido» (Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. VI, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, p. 117), sabido, nessa senda, que “Pelos encargos da herança é directamente responsável, nos termos dos arts. 2068.º e 2069.º do Código Civil, a massa patrimonial que constitui a herança”, tudo numa “tónica objectivista” como “reflexo da autonomia patrimonial da herança e do seu caráter de universalidade de direito”, mormente “no caso de herança indivisa”, “um património autónomo directamente responsável (art. 2097.º do CCiv.)” (V. Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, vol. II, 2.ª ed. (reimpressão), Coimbra Editora, Coimbra, 1990, ps. 109 e seg.. O Autor esclarece que «os herdeiros vêm a ser responsáveis pelos encargos da herança apenas porque titulares dessas massas patrimoniais autónomas e por isso mesmo a sua responsabilidade não se processa ultra vires hereditatis (art. 2071.º do CCiv.)» (cfr. ps. 110-111)), quadro em que não surpreende “que o art.º 2097.º claramente estipule que «os bens da herança indivisa respondem colectivamente pela satisfação dos respectivos encargos». Ou seja, respondem todos e cada um dos bens da herança, como universalidade (…)” (Cfr. p. 114. No mesmo sentido, João António Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, vol. II, Almedina, Coimbra, 1990, ps. 126 e seg., aludindo a “um património autónomo, de afectação especial, pelo que somente o seu activo, e não o património do herdeiro, responde pela satisfação das respectivas dívidas”).

Relativamente à organização do mapa da partilha (---), explica Lopes Cardoso (Partilhas Judiciais, cit., p. 457) haver “três aspectos a considerar”, desde a (i) determinação da importância total do ativo, passando pela (ii) determinação da quota de cada interessado e a parte que lhe cabe em cada espécie de bens, até ao (iii) preenchimento das quotas. O primeiro daqueles aspetos reporta-se «à prática de duas operações:

I Soma dos valores de cada espécie de bens conforme as avaliações e licitações efectuadas;

II Dedução a essa soma das dívidas, legados e encargos que devam ser abatidos».

Assim se encontra – sabido sempre que “o passivo da herança funciona independentemente do activo da mesma” (Vide Capelo de Sousa, op. cit., p. 157) – o ativo líquido a partilhar, tendo em conta que todo o passivo da herança constitui um valor negativo que tem de deduzir-se aos valores positivos que a constituem, também para responsabilizar os herdeiros pelo seu pagamento e na devida proporção e para fixar concretamente aquilo que cada um recebe na verdade (Cfr. Partilhas Judiciais, cit., p. 460, enfatizando-se que a “forma do pagamento” do passivo “em nada influi no seu abatimento”, sendo que, se o passivo foi aprovado por unanimidade, “cumpre deduzi-lo ao activo na primeira parte das operações em que o mapa da partilha se desdobra”.).

É esse ativo líquido que importa para o preenchimento da quota ou quinhão de cada um dos herdeiros, na parte em que se pretende partilhar/dividir o património/ativo.

Mas também o passivo haverá, do mesmo modo, de ser partilhado/distribuído, na falta de acordo em sentido diverso – no caso inexiste um tal acordo (quanto ao passivo que agora importa, no montante total aludido de € 8.395,08).

Ou seja, na falta – como in casu – de acordo em contrário (---), o passivo aprovado deve ser submetido às mesmas regras da partilha do ativo (divisão entre os herdeiros, na proporção das respetivas quotas, com recurso, se necessário, a compensação de créditos).

A tal em nada obsta, salvo o devido respeito, a operação inicial de subtração do passivo ao ativo, visto que nesse momento inicial das operações tendentes à partilha o que se procurava era somente determinar o dito ativo líquido, o valor total dos bens/ativos a partilhar, para cálculo das posições ativas a que são chamados os herdeiros e decorrente preenchimento dos seus quinhões.

Operada a inicial dedução (abatimento/subtração) do valor do passivo, encontrado está o valor global a atender para a partilha do ativo e preenchimento dos respetivos quinhões: apurada a importância total do ativo, segue-se a determinação da quota de cada interessado e a parte que lhe cabe em cada espécie de bens, de molde a apurar quanto cabe a cada interessado no montante global e a fazer a destrinça desse quantitativo com referência a cada espécie de bens (Cfr. Partilhas Judiciais, cit., p. 463).

Mas como é a herança que responde pelo passivo, também o valor global deste tem de ser submetido à partilha, em operação subsequente à inicial dedução de valores passivos (uma não impede a outra).

Havendo passivo aprovado e inexistindo acordo em sentido diverso, esse passivo tem de ser partilhado/distribuído entre os interessados, do mesmo modo que o ativo.

Com efeito, importa proceder ao preenchimento de cada quota ou quinhão, de acordo com um “princípio igualitário” (Vide Partilhas Judiciais, cit., p. 465. Assim sendo, a “partilha supõe igualdade e é mister fazer quinhoar todos e cada um no bom e no mau” (cfr. p. 468), sem esquecer que, no mapa da partilha, “não se faz unicamente a distribuição do activo pelos interessados; determina-se ainda a parte que a cada um deles compete no pagamento do passivo” (p. 490)), seja quanto ao que compõe a massa do ativo, seja quanto ao passivo.

Se é certo poderem os interessados acordar “em diferentes formas de pagamento do passivo”, caso em que no mapa da partilha “cumpre observar o que ficou deliberado a tal respeito, considerando-se ainda que pode ficar a cargo de algum ou alguns dos herdeiros”, seguro é também – reitera-se – que nada os aqui interessados acordaram no sentido de o passivo em questão ser suportado apenas por algum ou alguns deles, devendo, por isso, a decisão determinativa da partilha mostrar também como distribuir o passivo, com o pagamento a “constar em relação a cada um dos interessados responsáveis” (Partilhas, cit., ps. 490-491).

Em suma, não se vê, com todo o respeito devido, que tenha havido no caso uma duplicação de dedução do passivo ao ativo, razão pela qual também não se pode acompanhar a argumentação do Apelante no sentido de ter ocorrido erro de julgamento e/ou violação do disposto no art.º 2068.º do CCiv.."

[MTS]