Regras de distribuição;
conflito negativo de competência (funcional)*
1. O sumário de RP 9/5/2024 (977/19.2T8STS.P2) (decisão singular) é a seguinte:
I – Acompanhando a previsão do artigo 218º do Código do Processo Civil, sempre que como consequência de revogação tiver “de ser proferida nova decisão no tribunal recorrido” em relação à qual foi “interposta e admitida nova apelação”, a consequência será que este novo recurso deve ser, sempre que possível, “distribuído ao mesmo relator”.
II – Tal distribuição ao mesmo relator, por força do imposto pelo preceito em causa, deve ser feita independentemente de a revogação ser total ou parcial ou de o novo recurso dizer respeito a uma outra e distinta fase processual.
2. Na fundamentação da decisão escreveu-se o seguinte:
"[...] está em causa, em rigor, um conflito relativamente a um eventual erro de distribuição, sem prejuízo de, em qualquer caso, caber ao Presidente da Relação dirimir o mesmo, indicando a solução a adotar.
Explicado o conflito, o qual se explicita numa interpretação distinta do artigo 218.º do Código do Processo Civil (CPC), temos que este preceito determina a manutenção do relator no caso de novo recurso nos seguintes termos:
“Se, em consequência de anulação ou revogação da decisão recorrida ou do exercício pelo Supremo Tribunal de Justiça dos poderes conferidos pelo n.º 3 do artigo 682.º, tiver de ser proferida nova decisão no tribunal recorrido e dela for interposta e admitida nova apelação ou revista, o recurso é, sempre que possível, distribuído ao mesmo relator.” [...]
A tese propugnada pelo Exmo. Desembargador que entendeu não dever o presente processo [ser distribuído] ao mesmo relator pode igualmente ser encontrada no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13 de fevereiro de 2020, processo 308/16.3T8SLV.E2, disponível em dgsi.pt.
Defende-se que nos casos em que a primeira decisão versou sobre um dado tema que ficou definitivamente decidido/encerrado; assim, o novo recurso não deve ser distribuído ao mesmo relator. Citando o dito aresto: “trata-se de ir compartimentando o processado: fechando-se nele um tema, o recurso anterior que sobre ele haja sido proferido nada impõe aos recursos seguintes e não poderá vir ainda a condicioná-los, nomeadamente nesta questão da atribuição ao mesmo relator.”
Como reproduzimos acima, distingue-se, portanto, a apreciação dos diversos recursos no âmbito do mesmo processo, consoante os mesmos ocorram em diferentes fases processuais, entendendo-se que, uma vez encerrada uma dessas fases, haveria que proceder a nova distribuição, desaplicando-se o disposto no referido artigo 218º.
Indica-se como exemplo limite aquele relativo ao indeferimento liminar. Assim, neste caso extremo não haveria qualquer justificação racional para que o recurso interposto da sentença fosse distribuído ao mesmo relator que apenas apurou do recurso relativo a um despacho logo no início do processado.
Em sentido contrário, temos igualmente uma argumentação ponderosa.
Sabe-se que a importância prática do artigo 218º do CPC provém do aproveitamento do estudo – maior ou menor – que o relator já teve de realizar no recurso anterior sobre o respetivo objeto da causa; como afirma Abrantes Geraldes (in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2014, 2.ª edição, pág. 251): “como inovação do NCPC, sempre que a Relação anule a sentença ou determine a ampliação da decisão da matéria de facto, o recurso que eventualmente venha a ser interposto da sentença que for de novo proferida será apresentado diretamente ao mesmo relator do anterior acórdão (art. 218.º). Esta medida além de se revelar profilática relativamente a excessos formais que conduzam à anulação da sentença ou à ampliação do julgamento, tem a seu favor motivos de ordem racional, já que se mostra coerente que seja o mesmo relator do anterior acórdão a reapreciar o modo como a 1.ª instância acatou o que nele foi decidido e determinado. Acrescem ainda ganhos de eficácia que seriam desperdiçados se acaso o novo recurso de apelação entrasse na distribuição geral.”
Pois bem.
Reiterando o procedimento num caso similar por nós decidido e citado no presente incidente, comecemos por analisar o teor da decisão proferida em primeiro lugar nesta Relação na parte dispositiva, discernindo objetivamente qual foi a opção tomada pelo Coletivo.
Ora, consta expressamente da mesma que a decisão recorrida foi parcialmente revogada.
Concretizando, temos que a sentença da primeira instância foi confirmada “no que tange ao pedido formulado na alínea d) do petitório final, no apontado segmento (€ 2.764,72) e bem assim quanto à parte do pedido formulado na alínea e) do mesmo petitório” e foi revogada em tudo o mais. Porque se estava na fase do despacho saneador, esta revogação implicou o prosseguimento dos autos para apreciação e decisão dos demais pedidos formulados; a decisão final proferida resulta ser, justamente, a agora alvo de novo escrutínio, por via de novo recurso.
Ou seja, acompanhando a previsão do artigo 218º do CPC, como consequência dessa “revogação (...) da decisão recorrida” teve “de ser proferida nova decisão no tribunal recorrido” em relação à qual foi “interposta e admitida nova apelação”; donde, explicitamente verificados todos estes pressupostos, a consequência será que este novo recurso deve ser “distribuído ao mesmo relator”.
Não fora a decisão do primeiro recurso na parte revogatória, não teríamos nova decisão; existindo a mesma, a lei aponta a nomeação do mesmo relator.
A circunstância daquela revogação ter sido parcial ao caso não importa – nisso todos estaremos de acordo - tanto mais que a nova apelação diz respeito precisamente à nova decisão que adveio por força daquela revogação.
Ora, repetindo o por nós decidido em 26/09/2023, no Processo n.º 1531/21.4T8VFR.P2, sempre com o devido respeito por opinião contrária, não descortinamos motivo para entender que a revogação de uma decisão implique nuns casos a distribuição do novo recurso ao mesmo relator e noutros casos já não o imponha.
A lei não distingue entre revogações – trata-as todas da mesma maneira, seja qual for o motivo que esteve na sua origem. E isto vale quer para as revogações, quer para as anulações.
Revogada, ou anulada, uma decisão e regressando a nova sentença ao tribunal da Relação, o relator deve ser o mesmo.
Como defendemos já: “Estamos no domínio da aplicação de um princípio intemporal do direito, expresso no brocardo latino: “ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus”, isto é, onde a lei não distingue, não deve o intérprete distinguir. Dito de outro modo, distinções interpretativas não devem ser reconhecidas quando sirvam para afastar uma regra legalmente estabelecida e de leitura unívoca.”
Poderá inclusivamente ocorrer que o novo recurso verse sobre matéria que não tem que ver com a apreciada no recurso anterior; todavia, tal circunstância não põe em causa o preenchimento dos pressupostos definidos no referido artigo 218º conforme resulta da mera leitura do preceito o qual, mal ou bem, a nosso ver, não abre caminho para dúvidas.
O caso mais abrasivo será, como bem se refere acima, o do indeferimento liminar. Não tanto, salvo opinião contrária, a situação ora em apreço a qual se debruçou sobre os pedidos formulados, estudou-os, decidiu da bondade de uns e da extemporaneidade da apreciação relativamente a outros. Mas, independentemente da bondade, discutível, da opção legislativa, não julgamos, mesmo neste caso extremo, poder entender diversamente.
O legislador tomou uma opção única, a nosso ver inequívoca, de cariz essencialmente formal: uma vez distribuído o processo em sede de recurso, o coletivo que o aprecia, será sempre o mesmo, caso novos recursos se sucedam após anulações ou revogações – totais ou parciais, seja qual for a fase processual em causa, seja maior ou menor o volume de estudo processual antes efetuado.
A lei não autoriza, na nossa opinião, distinções, subtilezas ou “nuances” nesta matéria; esta autoridade normativa torna, positivamente, escorreita esta gestão processual.
As desvantagens de tal escolha – decidir é, essencialmente, escolher – também existem e foram sendo enumeradas; porém, igualmente se perfilam vantagens não escamoteáveis.
As mesmas decorrem de um elevado, diríamos absoluto, grau de certeza e segurança jurídicas com a correspondente mais valia para todos os intervenientes.
Mais: adotando esta solução, sabemos que, aquando da distribuição na Seção Central, quando, num dado processo, um segundo recurso surja na sequência de uma anulação ou revogação de decisão anterior, o mesmo deve ser averbado ao mesmo relator, independentemente dos fundamentos, ou consequências, daquela anulação ou revogação. Basta apenas ler o dispositivo do acórdão anterior, apurar da existência de uma anulação ou de uma revogação, e logo resulta cristalina, evidente, a aplicabilidade, ou não, do artigo 218º.
Citando a nossa anterior decisão e que agora, numa lógica de coerência, seguimos de perto:
“Uma vez que a interpretação por nós propugnada dita literal (literal provém do latim “littera”, que significa “letra”) é a que se atém justamente às palavras, à letra da lei, obter-se-ão ainda inegáveis ganhos, internamente, em termos de procedimento uniforme e homogéneo e, externamente, em termos de certeza e segurança jurídicas.Desenvolvendo: em termos de gestão do tribunal, resulta mais simples, eficaz, imediato, na fase da distribuição, simplesmente apurar se, na parte dispositiva, se determinou uma anulação (ou revogação) para depois logo concluir, em caso de novo recurso posterior, sobre o averbamento ao mesmo relator, sempre que possível (a impossibilidade, consabidamente, resulta, essencialmente, de promoção do juiz em causa ao STJ, da sua jubilação ou transferência para outro tribunal ou comissão de serviço, ou seja, fatores objetivamente discerníveis e facilmente apuráveis).Em termos de relacionamento externo com a cidadania, nomeadamente com litigantes ou mandatários, também esta solução resulta previsível e antecipável, afastando as “nuances” que a apreciação dos motivos para a anulação ou revogação inevitavelmente implicaria com a decorrente incerteza casuística que se geraria.”
Por isso, a conclusão definitiva relativamente ao presente conflito, também partilhada no parecer do MP, é a de que a titularidade do recurso em apreço cabe a quem apreciou o primeiro recurso deduzido nestes autos."
*3. [Comentário] a) O caso apreciado na decisão singular não é um verdadeiro conflito de competência, dado que não se verifica um conflito entre tribunais da mesma ordem jurisdicional (art. 109.º, n.º 2, CPC). O que está em discussão é o disposto no art. 218.º CPC, pelo que o que Presidente da RP tinha a decidir era um conflito entre juízes de um mesmo tribunal.
*3. [Comentário] a) O caso apreciado na decisão singular não é um verdadeiro conflito de competência, dado que não se verifica um conflito entre tribunais da mesma ordem jurisdicional (art. 109.º, n.º 2, CPC). O que está em discussão é o disposto no art. 218.º CPC, pelo que o que Presidente da RP tinha a decidir era um conflito entre juízes de um mesmo tribunal.
Por isso, o que está em causa não é a competência jurisdicional (ninguém discute a competência da RP), mas antes a competência funcional (o que está em análise é a que juiz pertence o exercício da função jurisdicional na RP). Que assim é, é indiscutivelmente demonstrado pela circunstância de a distribuição não ser (evidentemente) um modo de determinar o tribunal competente para apreciar a acção.
b) A solução propugnada na decisão tem, como, aliás, nela se salienta, a vantagem de ser -- se assim se pode dizer -- abstracta e geral. No entanto, não se exclui que possa ser desejável alguma "concretização" na aplicação do disposto no art. 218.º CPC, pois que nem todos os casos possíveis devem ser abrangidos pela regra enunciada no preceito.
Na situação em análise, estava em causa determinar o relator de um recurso respeitante à decisão sobre um pedido que subsistira no processo por decisão tomada num anterior acórdão da Relação. Nesta hipótese, justifica-se que o relator seja o mesmo.
No entanto, se, por exemplo, um despacho de indeferimento liminar tiver sido revogado pela Relação, não se descortina justificação para que qualquer outra apelação que venha a ser interposta na acção tenha de ser distribuída ao mesmo relator.
Na situação em análise, estava em causa determinar o relator de um recurso respeitante à decisão sobre um pedido que subsistira no processo por decisão tomada num anterior acórdão da Relação. Nesta hipótese, justifica-se que o relator seja o mesmo.
No entanto, se, por exemplo, um despacho de indeferimento liminar tiver sido revogado pela Relação, não se descortina justificação para que qualquer outra apelação que venha a ser interposta na acção tenha de ser distribuída ao mesmo relator.
MTS