O título executivo que apresenta é a sentença judicial, proferida em 27/6/2012 no processo mencionado no ponto 1 dos factos provados, já transitada em julgado, que condenou a ré, ora executada a celebrar a escritura pública quanto à fração “J” descrita na Conservatória do Registo Predial da Maia sob o nº ..., tendo fixado o prazo de 30 dias para a marcação dessa escritura e que condenou ainda a mesma ré no pagamento de uma cláusula penal no valor de €50,00 por cada dia de atraso na outorga dessa escritura.
Acontece que, na sequência da apreensão de bens no âmbito do processo de insolvência apenso, que incluiu o identificado imóvel, o mesmo veio a ser vendido, do processo insolvência, pelo administrador de insolvência, mediante abertura de propostas realizada em 6.5.2014, tendo a escritura pública da compra e venda sido celebrada no dia 7 de Julho (ou 7 de setembro, a verificar-se o lapso de escrita apontado), do ano de 2021.
Colocou-se assim a questão de saber quais os efeitos da realização da venda executiva no âmbito do processo de insolvência, no decurso da presente execução para prestação de facto, prestação que consistia na venda daquela fração autónoma á aqui exequente.
Tendo sido cumprido o contraditório, relativamente a tal questão, o tribunal recorrido entendeu que tal venda importa a extinção da instância executiva por impossibilidade superveniente da lide, o que determinou.
Não sufragamos, porém este entendimento, por contrário às regras processuais que regem a execução para prestação de facto, mas não pelas razões arguidas pela recorrente.
Senão, vejamos.
No âmbito duma ação executiva para prestação de facto, há que desde logo saber se a obrigação exequenda- constante do título executivo, que no caso é uma sentença judicial – configura uma prestação de natureza positiva (obrigação de faccere) ou de natureza negativa (obrigação de non faccere); se é fungível ou não fungível e se tem prazo certo ou não.
A condenação resultante da sentença exequenda é a seguinte:
“a) condeno a R. a celebrar a escritura pública sobre o negócio em causa nos autos, fixando-se o prazo de 30 dias para a R. proceder à marcação e realização efetiva da escritura pública, com entrega no mesmo prazo de todas as chaves referentes à fração autónoma “J”, contra o pagamento da quantia de Esc. 2.000.000$00 (dois milhões de escudos), aproximadamente € 9.975,96 (nove mil novecentos e setenta e cinco euros e noventa e seis cêntimos), por parte dos A.A., e
b) condeno a R. no pagamento aos A.A. da quantia de € 50,00 (cinquenta euros) por cada dia de atraso na outorga da escritura pública, a título de cláusula penal, ultrapassado e incumprido que se mostre o prazo limite fixado na alínea a).”
Estamos assim perante uma obrigação exequenda que constitui uma prestação positiva, de faccere - celebração de escritura pública de venda da fração J aos executados – não fungível – só pelo administrador de insolvência pode ser realizada, e com prazo certo – no prazo de 30 dias a contar da sentença.
Está-se perante um facto fungível, quando a realização do facto pode ser feita por terceiro, que não o devedor, sem qualquer prejuízo para o interesse do credor. O facto é fungível quando a realização do mesmo tanto pode ser feita pelo devedor como por um terceiro, satisfazendo de igual forma o interesse do credor na realização da prestação.
Já se trata de um facto infungível, quando para a realização da prestação é indiferente para o credor quem a realiza. Neste casos, o facto apenas pode ser praticado pelo devedor sem que este possa ser substituído por um terceiro, ou seja a realização da prestação está necessariamente ligada à pessoa do devedor [Ver Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Revelo, in A Ação executiva Anotada e Comentada, Almedina, 2ª edição, pg 645].
Nesta execução o direito do exequente apenas se concretiza pela prática de um facto positivo – outorga da escritura de compra e venda.
Da natureza da prestação podemos concluir que o direito da exequente apenas se pode concretizar pela prática de um facto positivo e que o mesmo tem natureza infungível, já que apenas o administrador de insolvência, na qualidade de administrador dos bens incluídos na massa insolvente, que integra a fração autónoma “J” pode dar cumprimento à condenação para si resultante da sentença transitada em julgado proferida no processo 7734/09.2TBMAI.
Em face do incumprimento da ré, (na forma de mora no cumprimento da obrigação) a exequente instaurou a presente execução para prestação de facto, alegando que em momento algum deu, o Sr. administrador da massa insolvente, o devido cumprimento ao previsto na sentença supra referenciada, realizando a escritura em questão, nunca tendo, de igual forma, procedido ao pagamento de quaisquer montantes a título de sanção pecuniária compulsória por tal atraso, igualmente conforme foi decidido na mencionada sentença, a qual ascende, que liquidou, à data da instauração da execução pelo montante de €149.750,00.
A sentença exequenda, como da mesma decorre, condena o réu a celebrar a escritura de compra e venda, fixando o prazo para esse efeito, mais o condenando numa indemnização pela mora no cumprimento da obrigação, que visa precisamente compelir o devedor a cumprir.
Não se trata de uma sentença judicial que tenha sido proferido numa ação declarativa de execução específica, cujo regime, que tem o seu campo de aplicação primordial no âmbito do regime de contrato promessa – cfr. art. 830º nº 1 do C.Civil é uma ação declarativa de natureza constitutiva.
A execução específica é o meio que o credor, com direito à prestação de entrega de uma coisa, tem ao seu dispor quando o devedor omite ou recusa essa mesma prestação, podendo recorrer ao tribunal que obriga o incumpridor à sua entrega coerciva.
Diferentemente do que ocorre na ação de execução específica de uma obrigação de contratar que é uma ação declarativa de natureza constitutiva: por ela se opera uma modificação jurídica consistente no suprimento do instrumento contratual omitido, isto é, ela não substituiu apenas a declaração negocial do faltoso, mas o próprio contrato que entre as partes não foi celebrado [---], a sentença exequenda foi proferida ano âmbito duma ação de natureza declarativa de condenação.
Como ensina Manuel Domingues de Andrade, “ações de condenação são aquelas em que o demandante (autor) se arroga um direito que diz estar ofendido pelo demandado (réu), pretendendo que isso mesmo se declare e se ordene ainda ao ofensor a realização e determinada prestação, como reintegração do direito violado, ou como aplicação e uma sanção legal de outro género”.
Já as ações constitutivas “são aquelas em que o requerente pretende obter a produção dum novo efeito jurídico material, que tanto pode consistir na constituição duma nova relação jurídica, como na modificação ou na extinção duma relação preexistente.”. [In Noções Elementares de processo Civil, pg 5 e 7].
Isto posto, a sentença exequenda foi proferida no âmbito duma ação declarativa de condenação, e nela, o tribunal limita-se a condenar o réu a celebrar a escritura de compra e venda, fixando o prazo para esse efeito, mais o condenando numa indemnização pela mora no cumprimento da obrigação, que visa precisamente compelir o devedor a cumprir.
Trata-se, como vimos, da condenação numa obrigação infungível – apenas o administrador da massa insolvente tem poderes para alienar um bem apreendido para a massa – ver arts. tal como definido no artigo 55.º, n.º 1, a), do C. I. R. E.: «além das demais tarefas que lhe são cometidas, cabe ao administrador da insolvência, com a cooperação e sob a fiscalização da comissão de credores, se existir: a) preparar o pagamento das dívidas do insolvente à custa das quantias em dinheiro existentes na massa insolvente, designadamente das que constituem produto da alienação, que lhe incumbe promover, dos bens que a integram;»
Nos termos do artigo 164º, nº 1, do CIRE, “O administrador da insolvência procede à alienação dos bens preferencialmente através de venda em leilão eletrónico, podendo, de forma justificada, optar por qualquer das modalidades admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente”.
Como é sabido, insolvência liquidatária assume-se como ação executiva para pagamento de quantia certa, na qual a liquidação/venda dos bens da massa insolvente integra atividade e objetivo para proceder ao pagamento dos créditos reconhecidos sobre a insolvência - art.ºs 46º, nº 1, 55º, nº 1, al. a) e 172º do CIRE -, depois de satisfeitas as dívidas da massa.
Daí que apenas o Administrador Judicial, enquanto representante da massa Insolvente da sociedade A... S.A. possa cumprir com a obrigação a que foi condenado.
Ora provou-se que no âmbito da execução apensa o mesmo Administrador Judicial, que já se encontrava em incumprimento da obrigação a que foi condenado – pois não celebrou a escritura pública de compra e venda à exequente no prazo que lhe foi fixado - vendeu a fração autónoma J, não à aqui exequente, tal como estava obrigado por força da sentença exequenda, mas a um terceiro.
A venda em processo de insolvência, tal como a venda executiva não pode deixar de ser considerada como um fenómeno essencialmente processual e com os efeitos de direito substantivo do negócio típico da compra e venda – a venda realizada em sede de liquidação do ativo no processo de insolvência é uma venda judicial, que visa satisfazer não um interesse próprio, mas sim um interesse alheio, o interesse do credor – e tem, por regra, os mesmos efeitos da compra e venda em geral - a propriedade transmite-se para o adquirente por mero efeito do contrato, como seu efeito real (arts. 879º-a) e 408º-1 Código Civil).
Mas então, quais são os efeitos daquela venda a terceiro feita pelo executado no processo de insolvência para esta execução? São causa de extinção da execução, como entendeu o tribunal recorrido?
Recorrendo uma vez mais, á definição dada por Manuel Domingues de Andrade [Obra citada, pg. 10], as ações executivas “são aquelas em que o demandante (neste caso exequente) se arroga um direito que diz estar ofendido pelo demandado (executado), e, em consequência disso, requer as providencias adequados à reintegração efetiva do direito violado ou à aplicação da diversa sanção legal correspondente. Como o próprio nome indica, trata-se nestes casos, de requerer a efetivação dos meios coercivos predispostos no ordenamento jurídico para o caso de violação do direito invocado”.
Passados os 30 dias fixados na sentença, o Sr. Administrador Judicial incumpriu a obrigação a que estava judicialmente obrigado, o que motivou a instauração desta execução.
Instaurada execução, o executado continua obrigado ao cumprimento.
Como afirma Rui Pinto [In A ação Executiva, 2020, AAFDL Editora, pg. 1009],“Sendo a execução forçada um complexo de atos mais ou menos ingerentes na esfera respetiva, a citação há de mencionar e o procedimento há de permitir, ainda que, o devedor possa realizar voluntariamente o cumprimento em mora”.
“Apesar da controvérsia doutrinal, é de admitir, que na sequência da citação, o executado ainda cumpra a prestação de facto (fungível ou infungível), a que estava adstrito. Por um lado, se o exequente requereu a prestação por outrem, não se vê razão para negar isso ao próprio devedor, mais ainda se isso ocorrer dentro dos 20 dias subsequentes á citação. No caso de o cumprimento, embora iniciado, não poder completar-se nesse período, será de equacionar a possibilidade de o juiz, mediante audição das partes, decretar a suspensão a instância pelo tempo necessário, na condição de o executado cumprir o que restar da prestação, sob pena de cessar a suspensão” [Ver Código de Processo Civil Anotado, de António Santos Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, II volume, pg. 304].
No regime procedimental da execução para prestação de facto, o princípio a considerar é o que que “não havendo cumprimento voluntário, a execução do crédito passará por uma solução que dispense a intervenção do executado dado o princípio nemo potest praecise cogita ad factum.
A ocorrência da venda executiva no âmbito do processo de insolvência, em nada contende a presente execução para prestação de facto positivo infungível.
Citado o executado, manteve-se o incumprimento da obrigação, que só por ele próprio podia ser cumprida, uma vez que aquele não veio no prazo de oposição proceder à venda da fração autónoma à Exequente.
Estabelece o nº 1 do art. 868º do CPC, que,
“1 - Se alguém estiver obrigado a prestar um facto em prazo certo e não cumprir, o credor pode requerer a prestação por outrem, se o facto for fungível, bem como a indemnização moratória a que tenha direito, ou a indemnização do dano sofrido com a não realização da prestação; pode também o credor requerer o pagamento da quantia devida a título de sanção pecuniária compulsória, em que o devedor tenha sido já condenado ou cuja fixação o credor pretenda obter no processo executivo.
2 - O devedor é citado para, no prazo de 20 dias, deduzir oposição à execução, mediante embargos, podendo o fundamento da oposição consistir, ainda que a execução se funde em sentença, no cumprimento posterior da obrigação, provado por qualquer meio.
3 - O recebimento da oposição tem os efeitos indicados no artigo 733.º, devidamente adaptado.”
E o artigo 869º do C.P.C estabelece que, “Findo o prazo estabelecido para a oposição à execução, ou julgada esta improcedente, tendo a execução sido suspensa, se o exequente pretender a indemnização do dano sofrido, observar-se-á o disposto no art. 867º”
Daqui decorre que, “quando a execução para prestação de facto tem por objeto um facto infungível, o exequente apenas pode executar o seu direito à indemnização, uma vez que, como se disse, a prestação não pode ser feita por terceiro, mesmo que seja á custa do executado" [Virgínio Sousa Ribeiro e Sérgio Rebelo, ob cit. 645].
Desta forma em face da situação de incumprimento do executado, incumprimento que se manteve após a sua citação nesta ação executiva, o facto daquele incumprimento se ter tornado em incumprimento definitivo por impossibilidade da prestação, já que, tal como na compra e venda não executiva, a compra e venda tem como efeitos, essenciais, as obrigações de entregar a coisa e de pagar o preço – efeitos obrigacionais (als. b) e c) do mesmo art. 879º), em nada contende com o prosseguimento da execução.
No caso de obrigação infungível, como a ora em apreço, na falta de cumprimento voluntário da obrigação exequenda, o exequente apenas pode fazer valer as regras gerais da indemnização pelo dano causado, sendo central o disposto no art. 868º nº 1 segunda parte [---]
Neste caso de prestação infungível, não se mostra possível a realização coativa da prestação por um terceiro.
Daí que a aludida venda não impeça o prosseguimento da presente execução. Poderá eventualmente tal facto ter influência no prosseguimento ou no julgamento da Oposição á Execução, que não cuidamos aqui de aferir, nem dispomos de elementos para tal."
*3. [Comentário] Segundo se informa no acórdão, o imóvel foi vendido pelo executado já na pendência da execução. Nesta circunstância, poder-se-ia ter pensado na aplicação analógica do disposto no art. 819.º CC e na inoponibilidade da alienação do bem à execução.
MTS