"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/02/2025

Jurisprudência 2024 (102)


Impugnação da matéria de facto;
requisitos; controlo pelo STJ


1. O sumário de STJ 14/5/2024 (1408/17.8T8OLH-H.E1.S1) é o seguinte:

I – A aferição do (in)cumprimento do disposto no artigo 640º, nº 1, do Código Civil, apenas se coloca no âmbito circunscrito da apreciação do acórdão recorrido, inexistindo neste caso, por sua própria natureza, qualquer pronúncia da 1ª instância sobre a matéria, não sendo assim logicamente concebível a constituição de dupla conforme.

II – Tal significa, por um lado, que o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça escapa ao crivo enunciado no artigo 671º, nº 3, do Código de Processo Civil (dupla conforme), prejudicando a possibilidade de interposição de revista excepcional; por outro, que a decisão do Tribunal da Relação é neste ponto passível de impugnação perante o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto instância judicial imediatamente superior a quem compete sindicar o modo de exercício dos seus poderes de reapreciação da matéria de facto ao abrigo do disposto no artigo 662º do Código de Processo Civil.

III – Constitui entendimento firme e consolidado no Supremo Tribunal de Justiça o de que a análise quanto à exigência do cumprimento dos requisitos constantes do artigo 640º do Código de Processo Civil obedece desde logo aos princípios gerais da proporcionalidade, adequação e razoabilidade, com o primado da substância sobre a forma, em termos de afastar a solução da imediata rejeição da impugnação de facto no caso de as deficiências, estritamente formais, no cumprimento dos requisitos estabelecidos no artigo 640º do Código de Processo Civil permitirem, não obstante, compreender e alcançar o seu exacto sentido, sendo assim perfeitamente possível ao julgador, sem especiais dificuldades ou acrescidos esforços, aquilatar em toda a sua amplitude e com toda a segurança do respectivo mérito, o que está em consonância com os princípios gerais consagrados nos artigos 18º, nº 2 e 3 e 20º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa que prevêem a garantia da tutela da jurisdição efectiva e do direito fundamental a um processo judicial equitativo e justo.

IV – Assim sendo, será de admitir (e não rejeitar) a impugnação em relação à qual seja possível destrinçar e localizar suficientemente os pontos de facto impugnados, os meios de prova com eles conectados e que justificam a alteração pretendida, bem como, por fim, a resposta alternativa proposta pelo recorrente, em termos da sua segura compreensibilidade pelo julgador quanto ao seu conteúdo e sentido.

V – No caso concreto, perante a total e indubitável focalização do (único) ponto de facto em debate, facilmente se alcança que existe motivação clara e directa - mesmo abundante - que suporta e justifica a impugnação de facto apresentada (independentemente do seu mérito), onde é feita expressa referência aos meios de prova nos quais se alicerça, os quais (reanalisados em 2ª instância) poderão eventualmente conduzir a uma diferente decisão de facto.

VI – Requerendo a recorrente a ampliação da matéria de facto nos termos do artigo 5º, nº 2, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil, que veio a ser indeferida no acórdão recorrido apenas com base na sua irrelevância e inutilidade para a boa decisão da causa, soçobra o recurso de revista que inclui esta temática no âmbito da (inexistente) rejeição da impugnação de facto por incumprimento dos deveres consignados no nº 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil, sem nada referir acerca da pertinência da integração dessa materialidade no elenco dos factos a dar como provados.

2. Na fundamentação deste importante acórdão escreveu-se o seguinte:

"Constitui entendimento firme e consolidado no Supremo Tribunal de Justiça o de que a análise quanto à exigência do cumprimento dos requisitos constantes do artigo 640º do Código de Processo Civil obedece desde logo aos princípios gerais da proporcionalidade, adequação e razoabilidade, com o primado da substância sobre a forma, em termos de afastar a drástica solução da imediata rejeição da impugnação de facto no caso de as deficiências, estritamente formais, no cumprimento dos requisitos estabelecidos no artigo 640º do Código de Processo Civil permitirem, não obstante, compreender e alcançar o seu exacto sentido, sendo assim perfeitamente possível ao julgador, sem especiais dificuldades ou acrescidos esforços, aquilatar em toda a sua amplitude e com toda a segurança do respectivo mérito, o que está em consonância com os princípios gerais consagrados nos artigos 18º, nº 2 e 3 e 20º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa que prevêem a garantia da tutela da jurisdição efectiva e do direito fundamental a um processo judicial equitativo e justo.

Com efeito, o sistema judiciário português confere em geral aos cidadãos que recorrem aos tribunais a garantia de que serão rigorosamente observadas todas as condições para que a lide processual fique subordinada, por um lado, ao princípio da plena igualdade de armas entre as partes litigantes e, por outro, à salvaguarda da real e substantiva possibilidade de afirmação material das respectivas pretensões, sem a colocação de entraves iníquos, obstáculos de índole processual desproporcionados ou excessivamente formalistas que, as impeçam, diminuam ou dificultem injustificadamente, impondo-se igualmente, o imperativo cimeiro de prosseguir e realizar, através do esquema processual concretamente adoptado pelo legislador ordinário, o primado da substância (verdade material) sobre a forma (verdade estritamente processual), enquanto concretização do princípio pro actione.

Assim sendo, será de admitir (e não rejeitar) a impugnação em relação à qual seja objectivamente possível destrinçar e localizar suficientemente os pontos de facto impugnados, os meios de prova com eles conectados e que justificam a alteração pretendida, bem como, por fim, a resposta alternativa proposta pelo recorrente, em termos da sua segura compreensibilidade pelo julgador quanto ao seu conteúdo e sentido.

(Note-se que está aqui igualmente em causa a salvaguarda do exercício do contraditório pela contraparte que, ao ser confrontada com uma impugnação genérica e/ou confusa, vê acentuadamente dificultada a sua capacidade de resposta, pela consequente incompreensão das razões para a alteração de facto assim deficientemente apresentadas).

Neste sentido vide, entre muitos outros arestos, a seguinte jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, praticamente uniforme:

- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Julho de 2014 (relator Gabriel Catarino) proferido no processo nº 1825/09.7TBSTS.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se refere:

“O legislador, na sua ponderação de não alargar em demasia a impugnação da decisão de facto e conter o eventual ímpeto recursivo quanto a esta matéria, apenas impôs e injungiu regras procedimentais para que o recurso possa ser aceite e obtenha conhecimento no tribunal de recurso. Ainda assim, pensamos, que o plano das exigências inscritas no preceito ordenador e que se prendem com o apertado formalismo imposto aos recorrentes – indicação dos concretos pontos de facto cuja decisão pretendem ver alterada, por estimarem estarem incorrectamente julgados; quais os concretos meios probatórios que impõem diverso julgamento (dos concretos pontos de facto indicados), e quando os meios probatórios tenham sido gravados, quais os depoimentos em que funda a discordância – tem de permitir a aceitação de um parâmetro de admissibilidade compaginável com a função e a finalidade do recurso da decisão de facto, qual seja a de que, desde que o apelante cumpra, no essencial com o ónus imposto na lei, o tribunal não pode deixar de proceder à reapreciação da decisão de facto”.

- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Outubro de 2019 (relatora Rosa Tching) proferido no processo nº 77/06.5TBGVA.C2.S2, publicado in www.dgsi.pt, onde se refere:

“Desde que não exista essa dificuldade, apesar da indicação pelo recorrente da localização dos depoimentos não ser totalmente exata e precisa, não se justifica a rejeição do recurso.

É que, como adverte o Acórdão do STJ, de 28.04.2016 (processo nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1), dando voz à jurisprudência cada vez mais consolidada neste Supremo Tribunal, «é necessário que a verificação do cumprimento do ónus de alegação regulado no art. 640 do CPC seja compaginado com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, atribuindo maior relevo aos aspectos de ordem material», por forma a não se exponenciarem os efeitos cominatórios previstos no mesmo artigo, havendo, por isso, que extrair do texto legal soluções conformes com estes princípios.

Assim, nesta linha de entendimento, salienta-se, no já citado Acórdão do STJ, de 29.10.2015, que na interpretação da norma do art. 640º, « não pode deixar de se ter em consideração a filosofia subjacente ao actual CPC, acentuando a prevalência do mérito e da substância sobre os requisitos ou exigências puramente formais, carecidos de uma interpretação funcionalmente adequada e compaginável com as exigências resultantes do princípio da proporcionalidade e da adequação - evitando que deficiências ou irregularidades puramente adjectivas impeçam a composição do litígio ou acabem por distorcer o conteúdo da sentença de mérito, condicionado pelo funcionamento de desproporcionadas cominações ou preclusões processuais».

Também na defesa da orientação de que não deve adotar-se uma interpretação rígida e desproporcionadamente exigente deste ónus de impugnação, sublinha o Acórdão do STJ, de 22.10.2015 (processo nº 212/06.3TBSBG.C2.S1) que «o sentido e alcance dos requisitos formais de impugnação da decisão de facto previstos no nº1 do art. 640º do CPC devem ser equacionados à luz das razões que lhe estão subjacentes, mormente em função da economia do julgamento em sede de recurso de apelação e da natureza da própria decisão de facto”.

- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Outubro de 2015 (relatora Prazeres Beleza) proferido no processo nº 6626/09.0TVLSB.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde pode ler-se:

“Ora, resulta das alegações apresentadas no recurso de apelação que a recorrente identificou os pontos de facto que considera mal julgados, por referência aos quesitos da base instrutória, indicando os concretos meios de prova que deveriam ter conduzido a um resultado probatório oposto, transcrevendo parte dos depoimentos e fornecendo as indicações que permitem localizar, na gravação, as passagens a que se refere.

Fornece essas indicações no corpo das alegações e, por remissão para os pontos desse corpo, nas conclusões do recurso.

Não pode assim manter-se o acórdão recorrido, na parte em que rejeitou a apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto”.

- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Janeiro de 2021 (relator Cura Mariano) proferido no processo nº 1121/13.5TVLSB.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se salienta:

“Do indevido conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

Alega a Autora que o acórdão recorrido conheceu da impugnação da decisão da matéria de facto, deduzida pelo Réu nas suas alegações de recurso para o Tribunal da Relação, não tendo essa impugnação observado os requisitos necessários para que fosse conhecida, pelo que o Tribunal da Relação apreciou uma questão que estava impedido de conhecer, o que constitui a nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, d), do Código de Processo Civil.

Acrescenta ainda que, tendo, nas contra-alegações, suscitado a questão da não observância dos requisitos do artigo 640.º do Código de Processo Civil, essa questão não foi objeto de decisão por parte do Tribunal da Relação, o que constitui uma omissão de pronúncia.

Concretiza a Autora que, nas alegações de recurso dirigidas pelo Réu ao Tribunal da Relação, este não especificou, nem fundamentou, em relação a cada um dos factos impugnados, qual seria a incorreção do julgamento dos mesmos, nem pôs em causa a argumentação lógica pela qual o Tribunal a quo se pautou, tendo tratado a matéria de facto em bloco, além de que também não identificou qual a decisão que deveria ser proferida em substituição da impugnada.

Da leitura das alegações de recurso apresentadas pelo Réu para o Tribunal da Relação, verifica-se que, efetivamente, este impugnou a sentença da 1.ª instância que considerou provados vários pontos da matéria de facto, que identificou, por uma mesma e única razão – a prova produzida relativamente ao pagamento pela Autora das quantias constantes desses pontos da matéria de facto, apenas com base em depoimentos de testemunhas e na junção de faturas que, na sua maior parte, não tinham sido emitidas pelas entidades que prestaram os serviços considerados provados, era insuficiente para demonstrar que esse pagamento tinha ocorrido.

Embora, a impugnação da matéria de facto deva, em princípio, especificar, relativamente a cada facto impugnado, quais os meios de prova que justificam um diferente resultado de prova, nada impede que, quando as razões invocadas para a alteração de vários factos, sejam precisamente as mesmas, essa indicação seja dirigida, em bloco, a toda essa factualidade. Necessário é, que seja compreensível quais os meios de prova e quais as razões pelas quais o impugnante sustenta que o resultado da prova, relativamente a esses factos, deve ser alterado.

Sendo, no presente caso, perfeitamente identificável que o Réu entendia que os meios de prova invocados para fundamentar a demonstração de todos os factos impugnados não tinham a força probatória suficiente para conduzir à sua demonstração e as razões pelas quais essa força era insuficiente, não havia motivo para que não se conhecesse da impugnação da decisão sobre a matéria de facto proferida pela 1.ª instância.

Do mesmo modo, também era perfeitamente percetível nas alegações apresentadas pelo Réu, que este pretendia que não se considerasse provado que a Ré havia despendido as quantias constantes dos factos impugnados, pelo que, também, neste aspeto, não havia razões para que não se apreciasse a impugnação da matéria de facto deduzida pelo Réu.

Tem sido orientação dominante na jurisprudência deste Tribunal considerar que, na verificação do cumprimento do ónus de alegação previsto no artigo 640.º do Código de Processo Civil, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, também eles presentes na ideia do processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da Constituição), pelo que, se o conteúdo da impugnação deduzida é percecionável pela parte contrária e pelo tribunal, não exigindo a sua apreciação um esforço inexigível, não há justificação para o não conhecimento desse fundamento do recurso.

Quanto ao facto do Tribunal da Relação não se ter pronunciado sobre a falta de cumprimento dos requisitos do artigo 640.º do Código de Processo Civil, na impugnação da decisão sobre a matéria de facto deduzida pelo Réu, essa decisão encontra-se implícita no conhecimento e deferimento dessa impugnação. É pressuposto necessário da decisão proferida sobre a impugnação da decisão sobre a matéria de facto que o Tribunal da Relação entendeu que estavam verificadas as condições necessárias a esse conhecimento, pelo que inexiste uma nulidade por omissão de pronúncia sobre esta questão”.

- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Dezembro de 2020 (relator Ilídio Sacarrão Martins) proferido no processo nº 274/17.8AVR.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se enfatiza que:

“Na verificação do cumprimento dos ónus de alegação previstos no artigo 640º do CPC, os aspectos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando-se prevalência à dimensão substancial sobre a estritamente formal.

Tendo a recorrente identificado, no corpo das alegações e nas conclusões, os pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, identificando e transcrevendo parcialmente os depoimentos das testemunhas, em conjugação com a prova documental, que, no seu entender, impõem decisão diversa e retirando-se da leitura das alegações e conclusões, qual a decisão que deve ser proferida a esse propósito, mostra-se cumprido, à luz da orientação atrás referida, o ónus de impugnação previsto no artigo 640º do CPC”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Dezembro de 2019 (relatora Graça Trigo) proferido no processo nº 363/07.7TVPRT-D.P2.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde é dito:

“(…)importa assinalar que a posição ora assumida em resultado da interpretação do regime legal aplicável é inteiramente consonante com a orientação consolidada da jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido da atenuação do excessivo formalismo no cumprimento dos ónus do art. 640º do CPC, designadamente em todos aqueles casos em que o teor do recurso de apelação se mostre funcionalmente apto à cabal identificação da impugnação da matéria de facto e ao respectivo conhecimento sem esforço excessivo. Cfr., a este respeito, entre muitos, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 08-02-2018 (proc. n.º 8440/14.1T8PRT.P1.S1), de 15-02-2018 (proc. n.º 134116/13.2YIPRT.E1.S1), consultáveis em www.dsgi.pt, e os acórdãos de 17-04-2018 (proc. n.º 1676/10.6TBSTR.E2.S1) e de 24-04-2018 (proc. n.º 3438/13.0TBPRD.P1.S1), cujos sumários se encontram disponíveis em www.stj.pt.”.

- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Janeiro de 2023 (relator Vieira e Cunha) proferido no processo nº 2387/20.0T8STR.E1.S1, publicado in www.dgsi.pt, donde consta:

“Impondo-se a análise do recorrido à luz de princípios de proporcionalidade ou adequação, será apenas de evitar o acolhimento da pretensão recursória que se traduza numa total reapreciação da prova pela 2.ª instância ou (o seu equivalente) que se traduza em recurso genérico, em matéria de indicação das passagens da gravação, no caso vertente de provas gravadas”.

- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Janeiro de 2021 (relator Pinto de Almeida) proferido no processo nº 399/18.2T8PNF.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde pode ler-se:

“É esta, no fundo, uma preocupação constante na jurisprudência do Supremo sobre esta questão: em atenção aos princípios que devem enformar o processo civil (designadamente o da prevalência do mérito sobre os requisitos meramente formais), as razões que podem obstar à reapreciação da matéria de facto pela Relação carecem de "uma interpretação funcionalmente adequada e compaginável com as exigências resultantes do princípio da proporcionalidade e da adequação – evitando que deficiências ou irregularidades puramente adjectivas impeçam a composição do litígio ou acabem por distorcer o conteúdo da sentença de mérito, condicionado pelo funcionamento de desproporcionadas cominações ou preclusões processuais"

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Abril de 2023 (relatora Graça Trigo) proferido no processo nº 1342/19.7T8AVR.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde pode ler-se:

“Afigura-se que a interpretação da alínea a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC, que conduziu, no caso dos autos, à rejeição liminar do recurso da impugnação da matéria de facto desrespeita o princípio da proporcionalidade dos ónus, cominações e preclusões impostos pela lei processual, que constitui uma manifestação do princípio da proporcionalidade das restrições, consagrado no art. 18.º, n.ºs 2 e 3 da CRP, e da garantia do processo equitativo, consagrada no art. 20.º, n.º 4 da CRP.

De acordo com a jurisprudência consolidada do STJ, o n.º 1 do art. 640.º do CPC não exige que o apelante se pronuncie sobre a valoração alegadamente correcta dos meios de prova por si indicados, ou seja, sobre as razões pelas quais cada um deles deverá conduzir a decisão diversa da impugnada; pelo que a posição do tribunal a quo em rejeitar, também por este motivo, apreciar a impugnação da decisão relativa à matéria de facto extravasa as exigências legais”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Janeiro de 2024 (relator Luís Mendonça) proferido no processo nº 653/22.9T8PTM.E1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde é referido:

i) nenhuma norma do código de rito (portanto também não o artigo 640.º, 1, al.b)) exige que o recorrente relacione um por um os factos com os meios de prova discriminados também isoladamente por cada um deles.

ii) a nossa legislação processual civil, desde o código de 1939 está toda ela inspirada «na doutrina salutar de não sacrificar o fundo à forma, de não fazer perder o direito por simples inobservância de formalismos legais» (Alberto dos Reis).

iii) acrescentar aos já de si rigorosos ónus legais um outro ónus, traduz uma exasperação dos instrumentos processuais em chave formal.

iv) os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade impõem antes uma interpretação do artigo 640.º do Código de Processo Civil, em termos menos severos. É um problema de justa medida, delicado como todos os problemas de limites.

v) porquanto nem o juiz vê a sua tarefa particularmente dificultada na aplicação do artigo 662.º se o recorrente não fizer aquela ligação individualizada, nem a parte recorrida deixa de saber, e bem, defender-se, sem aquela estrita conexão.

vi) o acórdão do STJ de 19.12.2018, Proc. 433/11.7TVPRT.P1.S2 decidiu que: «a fundamentação [da sentença] deve conter, como suporte mínimo, a concretização do meio probatório gerador da convicção do julgador e ainda a indicação, na medida do possível, das razões da credibilidade ou da força decisiva reconhecida a esses meios de prova, a menção das razões justificativas da opção feita pelo julgador entre os meios probatórios de sinal oposto relativos ao mesmo facto»; «a imposição da fundamentação não impede necessariamente que o tribunal motive em conjunto as respostas a mais do que um facto da base instrutória, quando os factos objecto da motivação se apresentem entre si ligados e sobre eles tenham incidido fundamentalmente os mesmos meios de prova. Essa motivação conjunta pode até ser concretamente aconselhável».

Não se vislumbram razões para que esta doutrina não seja transposta, mutatis mutandis para sindicar a autossuficiência do recurso.

vii) há, como vimos, jurisprudência deste supremo tribunal que já faz esta transposição.

viii) a tudo isto acrescem outros argumentos, não menos importantes, de ordem constitucional e convencional.

O princípio da economia processual, cada mais presente na exegese das normas processuais, não pode levar a que o juiz esqueça outras normas processuais orientadas para a realização de outros valores e princípios, tais como os que consubstanciam num processo equitativo, com base nos artigos 20.º, 4 da CRP e 6.º da CEDH, designadamente o direito de defesa e o direito a um processo no qual as partes estejam em condições de intervir com completude nas várias fases em que articula. Para isso é preciso que, a montante, se garanta um efectivo acesso ao tribunal.

vii) Lembra Ireneu Cabral Barreto (As relações entre a Convenção e Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e as Instâncias Nacionais, 2008) que compete às jurisdições internas dos Estados-membros respeitar a Convenção acima das leis ordinárias e que, por isso, os tribunais daqueles Estados, entre outras autoridades internas, devem acolher a doutrina que deriva dos acórdãos do TEDH, até para evitar futuras condenações.

Ora a superação do rigor formalístico parece imposto por vários acórdãos do TEDH dos quais se extrai o propósito de fazer ancorar as «sanções» processuais em cânones de proporcionalidade e de dar prevalência a soluções interpretativas destinadas a permitir que o processo tenha uma decisão de mérito que examine o fundo da questão. É o caso dos acórdãos proferido nos casos Reklous and Davourlis v. Greece, de 15 de Janeiro de 2009, e Efstathiou e outros c. Grèce, de 27 de Julho de 2006”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Fevereiro de 2024 (relator Lino Ribeiro) proferido no processo nº 7146/20.7T8PRT.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se enfatiza que:

“Na imposição destes ónus reconhece-se uma relação de meio para fim: o cumprimento dos ónus conduz à admissão do recurso; e a sanção para o não cumprimento – rejeição do recurso – resulta somente de não se ter verificada a situação que se produziria se os ónus fossem cumpridos. De modo que, não sendo um fim em si mesmo, a verificação do cumprimento desses ónus tem que ter em conta o princípio da razoabilidade, para que não se dificulte excessiva e desproporcionalmente o direito ao recurso.

Daí que o grau de exigência da racionalidade entre cada um daqueles ónus e o direito ao recurso possa ser diferente, consoante o relevo que tenham na construção do objeto recursório, e depender mesmo das circunstâncias de cada recurso. De facto, há situações onde não é possível concluir que a imperfeição do requerimento de recurso quanto a determinadas exigências legais, sobretudo quando secundárias, impossibilita a admissão do recurso. Nem sempre as exigências formais desrespeitadas devem implicar uma rejeição do recurso, nomeadamente se as finalidades que a forma protege chegaram a atingir-se.

A intervenção dos princípios como os da proporcionalidade, razoabilidade, materialidade subjacente e favorecimento do processo (princípio pro actione), com refrações várias na lei processual civil, permite ao juiz averiguar e controlar em cada caso concreto da relevância dos referidos ónus processuais. Pode dizer-se ser esta a orientação hoje predominante na jurisprudência do STJ, que nesta e nas demais exigências do recurso que tenha por objeto a matéria de facto afere os ónus processuais pelos parâmetros dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, com objetivo de evitar os efeitos negativos que um excessivo formalismo pode ter na tutela efetiva das posições jurídicos processuais.

Além de que, não deixe ainda de acrescentar-se, é abundante a jurisprudência constitucional relacionada com a imposição de ónus processuais às partes em processo civil a afirmar que a liberdade de conformação do legislador na concreta estruturação do processo – não afastada pela garantia de acesso ao direito e à justiça – tem de se mostrar conforme o princípio da proporcionalidade. Não obstante a ampla liberdade do legislador na definição dos requisitos de forma dos atos das partes, na previsão dos ónus que sobre elas incidem e das cominações que resultam da não conformação com as regras formais ou de tramitação que regulam o desenvolvimento do processo, a criação e interpretação destas regras, para além de deverem ser funcionalmente adequadas aos fins do processo, devem conformar-se com o princípio da proporcionalidade, não podendo impossibilita ou dificultar, de modo excessivo ou intolerável, a atuação processual das partes, e as cominações que decorrem de uma falta da parte não podem revelar-se desproporcionadas à gravidade ou relevância, para os fins do processo, da falta imputada à parte (Acórdãos n.ºs 277/2016, 486/2016, 527/2016, 270/2018, 604/2018, 440/2019, 151/2020 e 346/2020)”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Janeiro de 2024 (relator Fernando Batista) proferido no processo nº 1007/17.4T8VCT.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se refere:

“(…) de acordo com a orientação maioritária (e em crescendo) da jurisprudência deste Supremo Tribunal, a interpretação do art. 640.º do CPC não deve ser pautada por uma perspetiva formalista, mas antes por critérios preferencialmente materiais, em função do princípio da proporcionalidade dos ónus, cominações e preclusões impostos pela lei processual, princípio que constitui uma manifestação do princípio da proporcionalidade das restrições, consagrado no art. 18.º, n.os 2 e 3, da Constituição, e da garantia do processo equitativo, consagrada no art. 20.º, n.º 4, da Constituição. Devendo o tribunal fazer uma análise conjugada quer das conclusões quer das alegações de recurso, no sentido em que haja uma complementaridade entre ambas e que permitam o exercício do contraditório pela parte contrária e a apreensão do seu teor pelo tribunal de recurso, sem grande esforço”.

(Ainda sobre esta matéria, vide Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre in “Código de Processo Civil Anotado” Volume III, Almedina 2022, 3ª edição, a páginas 98 a 99; Abrantes Geraldes, in “Recursos em Processo Civil”, Almedina 2022, 7ª edição, a páginas 201 a 208).

No caso concreto está apenas em discussão, como se salientou supra, um único ponto de facto, dado como não provado, ou seja, o que consistia na alegação de que “a Langri Casa Agricola lda. seria unicamente um meio para obter financiamento para as outras sociedades do grupo e que não beneficiasse nada dos empréstimos obtidos”.

Ora, perante a total e indubitável focalização do ponto de facto em apreço, facilmente se alcança que existe motivação clara e directa - mesmo abundante - que suporta e justifica, em termos inequivocamente bastantes e suficientes, a impugnação de facto apresentada (independentemente do seu mérito), onde é feita expressa referência aos meios de prova nos quais se alicerça, os quais (reanalisados em 2ª instância) poderão eventualmente conduzir a uma diferente decisão de facto.

Logo, o Tribunal da Relação de Évora estava em perfeitas condições, sem especiais dificuldades de compreensão ou esforços de análise acrescidos, para conhecer, com estes concretos fundamentos, da impugnação quanto a este único ponto em debate, não se justificando de modo algum a sua (precipitada) rejeição.

Bastava para o efeito ouvir atentamente os depoimentos indicados, confrontá-los criticamente com a extensa documentação em referência e ajuizar, em conclusão, se a dita sociedade, ora insolvente, assumia, ou não, a natureza de mero instrumento destinado a facilitar o financiamento das sociedades do grupo em que se inseria, nada beneficiando, neste específico contexto, com o fluxo dos movimentos financeiros havidos entre elas.

Tão simples quanto isto.

Ou seja, e no fundo, esta concreta e singular factualidade que foi impugnada pela recorrente está devidamente identificada, havendo sido apresentados diversos elementos probatórios que justificam o exercício de reanálise que se solicita ao Tribunal da Relação de Évora, como constitui seu direito e corresponde ao princípio geral da tutela jurisdicional efectiva."

[MTS]