Autorização judicial;
matéria de facto; anulação da sentença
I. O sumário de RP 22/4/2024 (2159/18.1T8OVR-A.P1) é o seguinte:
1 - A insuficiência da matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido é uma questão de conhecimento oficioso e adquire particular importância quando está em causa uma decisão que prescindiu da prova arrolada pela requerente, bem como de qualquer outra indagação do tribunal.
2 - E se assim é no processo comum contencioso, não pode deixar de o ser, até por maioria de razão, em sede de jurisdição voluntária.
II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"A fundamentação da sentença pode sintetizar-se e sublinhar-se, conforme transcrição que segue:
“(...) o tribunal “não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso, a solução que julgue mais conveniente e oportuna” – cfr., artigo 987.º do Código de Processo Civil). Isto é, tem o Tribunal a liberdade de investigar os factos e coligir provas, bem como adotar, em cada caso, a solução que julgue mais conveniente e oportuna (...) impera, neste tipo de ações, que na dúvida seja sempre para benefício do requerido e nunca para o prejudicar, seja a que título for, mormente do foro patrimonial. Desta forma, a autorização para alienação ou oneração de bens de beneficiário pressupõe o interesse dele no respetivo ato. (...) Não se olvida que o direito de usufruto é um direito que permite ao seu titular que, desde que respeite o fim económico a que o bem em causa se destina, se possa comportar exatamente como se fosse proprietário do bem. Porém, considerando o valor de mercado do imóvel sem a realização das obras de beneficiação e de ampliação e com a realização das obras de beneficiação e de ampliação, verificamos que a permuta requerida e inerente recebimento da quantia de €19.200,00 não acautela os interesses do acompanhado, na medida em que alienação do direito de propriedade do acompanhado sobre o prédio comum, caso venha a julgar-se necessária para satisfazer as suas necessidades ou caso a irmã do beneficiário, outra comproprietária, queira fazer cessar a compropriedade, poderá sempre ser mais vantajosa, considerando-se os valores supra mencionados. Como muito bem ensina o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16.05.2023 (...)O beneficiário enquanto comproprietário do referido imóvel tem, necessariamente, acautelado o direito ao uso e usufruto do mesmo, pelo menos, na sua quota-parte, em face do referido direito de compropriedade, pelo que não basta acautelar a residência do beneficiário, como alegado na petição, sendo ainda crucial pensar que o mesmo pode necessitar de ser integrado em ERPI [---] e, em consequência, necessitar de ter rendimentos líquidos para fazer face a pagamento de despesas com a saúde, rendimentos esses provenientes da sua quota-parte e garantidos enquanto comproprietário do imóvel ajuizado. Cremos, pois, que em face do supra exposto, o negócio pretendido pela requerente, em que veio requerer alteração do pedido e da causa de pedir (em traços gerais substituir direito de uso e habitação, por direito de usufruto vitalício) e formulou o seguinte pedido (...) não pode ser deferido, por não acautelar cabalmente os interesses do beneficiário (...)”.Através da Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, aboliram-se os institutos da interdição e da inabilitação [---] e criou-se o regime jurídico do maior acompanhado [---]. E, tal como esclarece o artigo 138 do Código Civil (CC) “O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código”.O acompanhamento limita-se ao necessário (artigo 145, n.º 1 do CC) [---]. No entanto, como resulta do n.º 3 do mesmo artigo 145 do CC, “Os atos de disposição de bens imóveis carecem de autorização judicial prévia e específica” (n.º 3 do mesmo artigo). Autorização a ser apreciada nos termos do artigo 1014 do Código de Processo Civil (CPC) [---], ou seja, através de um processo de jurisdição voluntária – que, como se escreve na decisão recorrida, “não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso, a solução que julgue mais conveniente e oportuna”, pois, “tem o Tribunal a liberdade de investigar os factos e coligir provas, bem como adotar, em cada caso, a solução que julgue mais conveniente e oportuna” – no qual, e de acordo com o n.º 3 do citado artigo 1014 do CPC, “Haja ou não contestação, o juiz só decide depois de produzidas as provas que admitir e concluídas outras diligências necessária (...)”.
Efetivamente, na jurisdição voluntária, como é o caso aqui em apreço, há de ter-se em conta, além do mais, e como refere Miguel Teixeira de Sousa, o “Predomínio da conveniência sobre a legalidade” e o “Predomínio, quanto ao objeto do processo, do princípio do inquisitório sobre o dispositivo” [João de Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Volume I, AAFDL Editora, Lisboa, 2022, pág. 71.], tanto mais que, de modo expresso, o artigo 986, n.º 3 do CPC esclarece, sem embargo de só serem de admitir as provas consideradas necessárias, poder o tribunal “investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes”.
Ainda assim, sem que tal signifique uma total dispensa do ónus de alegação e fundamentação dos pedidos, uma vez que “A liberdade e iniciativa probatória do juiz tem como limite o objetivo prosseguido pelo processo especial em causa, bem como a adequação da medida a adotar à finalidade pretendida” [António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado [Vol. II, 2.ª Edição, Almedina, 2022], pág. 459, anotação 5.].
No caso presente, a autora/acompanhante, mãe do acompanhado, veio pedir, inicialmente, autorização para a outorga de escritura de permuta [---], através da qual o acompanhado cedia a (sua) metade do (identificado) imóvel, recebendo em troca 12.500,00€ e, ainda, o direito de uso e habitação desse mesmo imóvel [---]. Na fundamentação dessa pretensão, sustentou que o imóvel teria o valor de 125.000,00€ e o uso e habitação (atenta a idade do acompanhado) 50.000,00€. A razão avançada para o negócio foi, essencialmente, assegurar a habitação vitalícia do acompanhado e evitar que a comproprietária, ou quem lhe venha a suceder, ponha fim à compropriedade.
Depois da contestação do Ministério Público (dando nota, essencialmente, da precária garantia do direito ao uso e habitação em confronto com o usufruto, e salientando que do requerimento inicial não se podia aferir a real vantagem da permuta) a acompanhante veio alterar o fundamento da pretensão, substituindo o direito de uso e habitação pelo direito de usufruto vitalício.
Avaliado o imóvel, com o resultado pericial que foi levado à matéria de facto assente, o tribunal considerou que o processo reunia todos os elementos de facto necessários à decisão e a requerente e o Ministério Público foram convidados a alegar. Tendo o Ministério Público reafirmado a sua anterior oposição, já a requente, nessas alegações, veio salientar a alteração, em benefício do acompanhado, do uso e habitação para usufruto vitalício e, ponderando o valor resultante da avaliação do imóvel – que aceita – e a idade do acompanhado, propor o recebimento, por este e em razão da permuta, da quantia de 19.200,00€.
Como se disse, o tribunal considerou não ser necessária a produção de prova, salvo a (documental) já constituída e julgou improcedente a pretensão da acompanhante, essencialmente por duas razões, mesmo reconhecendo que, enquanto usufrutuário, o acompanhado “se possa comportar exatamente como se fosse proprietário do bem”:
- O acompanhado não beneficia com a permuta, porquanto já tem, enquanto comproprietário, acautelado o direito ao uso e usufruto e a “alienação do direito de propriedade do acompanhado sobre o prédio comum, caso venha a julgar-se necessária para satisfazer as suas necessidades ou caso a irmã do beneficiário, outra comproprietária, queira fazer cessar a compropriedade, poderá sempre ser mais vantajosa, considerando-se os valores supra mencionados;- O acompanhado “pode necessitar de ser integrado em ERPI e, em consequência, necessitar de ter rendimentos líquidos para fazer face a pagamento de despesas com a saúde, rendimentos esses provenientes da sua quota-parte e garantidos enquanto comproprietário do imóvel ajuizado”.
Como se vê, o tribunal não questiona o valor do negócio, ou seja, não põe em causa que a contrapartida a receber pelo acompanhado (19.200,00€ e usufruto vitalício) seja desadequada à contrapartida a prestar (metade da nua propriedade do imóvel). O que salienta, isso sim, é que não pode concluir-se dessa permuta haver benefício para o acompanhado, pois habitação já ele tem e continuará a ter, enquanto comproprietário, e, além disso, se, futuramente, precisar de liquidez, pode beneficiar, então, da cessação da compropriedade. Tanto mais – segunda razão – que os rendimentos da compropriedade serão garantia de liquidez para o pagamento de despesas eventualmente devidas, nomeadamente com a integração em ERPI.
Ora, salvo o devido respeito, a fundamentação do tribunal não tem suporte fáctico e/ou avança um juízo de prognose pouco verosímil. Com efeito, não é crível que o acompanhado transacione o que ora permuta (1/2 da nua propriedade) por valor superior ao oferecido, tanto mais se pretender manter o usufruto. Efetivamente, seria de questionar se alguém terá interesse e vontade de adquirir, necessariamente por valor superior ao ora oferecido, metade da nua propriedade de um imóvel onerado com um usufruto vitalício. Também não se descortina, por outro lado, que rendimentos ou liquidez resultariam para o acompanhado na manutenção da sua compropriedade, quando deles carecesse. É que a única coisa que temos por certa, à míngua de outra factualidade, é o dever do comproprietário (também) pagar IMI.
Mas, por outro lado, a eventual necessidade de integração em ERPI é uma hipótese que os factos não revelam. Nem a sua previsibilidade temporal, nem o seu custo previsível.
Mas, acima de tudo, o que está por concretamente demonstrar é a necessidade do negócio pretendido, condição primeira para deferir, ou não, a pretensão formulada pela acompanhante. Cumpre questionar se o acompanhado tem outros, e suficientes, rendimentos ou se o valor líquido da permuta proposta é previsivelmente necessário ou mesmo urgente. Mais que o valor do imóvel, ou, ao menos, tão importante como, será de indagar da necessidade – atentas as condições pessoais e médicas do acompanhado, mas igualmente da acompanhante (pessoa quase a completar 85 anos) – de o acompanhado ter de ser apoiado de outro modo e com custos diferentes, o que pode justificar a necessidade de liquidez e a eventual bondade da permuta proposta.
Sucede que os factos apurados – repete-se, sem produção de prova além da documental –, mesmo com o acrescento factual feito nesta sede, não permitem a ponderação pressuposta no antecedente parágrafo ou, dito de outro modo, ficaram por apurar factos relevantes para a adequada apreciação do mérito da causa. E se a recorrente, ainda que subsidiariamente, sustenta a anulação da decisão com vista, justamente, à produção de prova, este Tribunal da Relação sempre o devia determinar, mesmo oficiosamente [---].
A insuficiência da matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido é uma questão de conhecimento oficioso e adquire particular importância quando está em causa uma decisão que prescindiu da prova arrolada pela requerente [---], bem como de qualquer outra indagação (necessidade de liquidez; estado médico/incapacitante do beneficiário; necessidade e previsibilidade de internamento; custo...). E se assim é no processo comum contencioso, não pode deixar de o ser, até por maioria de razão, em sede de jurisdição voluntária.
O artigo 662, n.º 2, alínea c) do CPC [2 - A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: (...) c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta] determina, precisamente, a anulação da decisão, sempre que se mostre necessário o apuramento de outros factos relevantes e os autos não disponham de elementos probatórios a tanto bastantes.
É o caso e, por isso, não há que apreciar, sem novos factos, a pretensão recursória e o mérito da decisão recorrida.
Tenha-se em conta, por outro lado e na medida em que tal se revele pertinente, que a decisão de acompanhado terá de ser revista nos próximos dias.
Em suma, anula-se a sentença com vista a ser produzida prova em primeira instância – a arrolada e, eventualmente, outra que o tribunal tenha por necessária – destinada ao apuramento de factos pertinentes à decisão sobre o pedido formulado, nomeadamente, sobre a necessidade da permuta por haver necessidade de liquidez, sobre a urgência desta e as condições médicas e pessoais de acolhimento/acompanhamento do acompanhado que justifiquem previsivelmente as despesas que aquela liquidez pretende salvaguardar."
[MTS]
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