Providência cautelar;
causa de pedir; indeferimento liminar
I – Resultando do requerimento inicial apresentado no âmbito de procedimento cautelar comum que a requerente atribui à requerida a prática de um facto ilícito, consubstanciado na demolição de edifícios confinantes com o seu, causador de danos graves ao nível da sua empena oeste, colocando em causa a sua estabilidade estrutural e gerando elevados níveis de infiltração e humidades, com impacto na saúde dos seus arrendatários e na conservação das mercadorias acondicionadas nas frações arrendadas, deverão considerar-se alegados os factos essenciais da tutela cautelar que requereu.
II - Independentemente da procedência final da pretensão formulada, não pode deixar de considerar-se que o pedido deduzido (reparação do edifício ao nível da empena oeste) decorre da causa de pedir invocada (facto ilícito gerador de responsabilidade civil), não se verificando uma manifesta improcedência da providência cautelar.
III - A imediata decisão quanto à improcedência da causa, nos termos do disposto nos artigos 226º, nº 4, alínea b) e 590º, nº 1, CPC, coartou à requerente a possibilidade de obter uma decisão de mérito, na qual fossem ponderados os factos essenciais nucleares que alegou em conjunto com outros (complementares ou instrumentais) que resultassem da instrução da causa ou até de um convite ao aperfeiçoamento do articulado;
IV – O indeferimento liminar de providência cautelar deve ser reservado para situações de manifesta improcedência do pedido.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Na decisão recorrida considerou-se que se revelava ab initio inviável o presente procedimento cautelar, impondo-se, por isso, o seu indeferimento liminar, nos termos do disposto nos artigos 590º, nº 1 e 226º, nº 4, CPC.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Na decisão recorrida considerou-se que se revelava ab initio inviável o presente procedimento cautelar, impondo-se, por isso, o seu indeferimento liminar, nos termos do disposto nos artigos 590º, nº 1 e 226º, nº 4, CPC.
O artigo 590º, sob a epígrafe “Gestão inicial do processo”, dispõe no seu nº 1:
“1-Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis (…)”
In casu, a pretensão deduzida foi considerada manifestamente improcedente, considerando-se na decisão recorrida não terem sido alegados factos que permitissem aferir dos pressupostos da providência requerida.
Ora, por forma a indagar da verificação do mencionado vício, haverá que ter presente que da alegação contida na petição inicial extrai-se, no essencial, o seguinte:
- A requerente é proprietária de prédio urbano sito na Avenida ... Sacavém, Loures;- Em maio de 2023, a requerida executou obras de demolição de prédios que confinam a oeste com o da requerente causando danos no interior e exterior da respetiva empena oeste;- Tais danos necessitam de reparação urgente a e requerida recusou à mesma proceder;- Por força da atuação da requerida nos trabalhos de demolição de prédios adjacentes, existe risco para a estabilidade estrutural da empena oeste do edifício e mostra-se degradada a qualidade das frações arrendadas pela requerente, pelas infiltrações e humidade que passaram a aí existir, com impacto na saúde dos arrendatários e na conservação da mercadoria ali acondicionada;- Impõe-se a realização de várias obras com vista a suprimir a “corrosão das armaduras e destacamento de betão”, bem como a “deterioração de rebocos exteriores” e a “degradação de revestimentos em paredes interiores”, causados pela operação de demolição levada a cabo pela requerida.
A interpretação de tal articulado deverá ser efetuada de harmonia com os cânones interpretativos vigentes para a declaração negocial, atribuindo-lhe o sentido que um declaratário normal atribuiria, nos termos do disposto no artigo 236º do Código Civil, ex vi artigo 295º do mesmo código.
Ora, da leitura e interpretação da petição inicial, de harmonia com o princípio interpretativo exposto, conclui-se que a requerente atribui à requerida a prática de um facto ilícito, consubstanciado na demolição de edifícios confinantes com o seu, “sem a mínima competência e cautelas devidas”. Tal demolição, na perspetiva da requerente, provocou danos na empena oeste do seu edifício, que poderão colocar em causa a sua estabilidade estrutural e geram elevados níveis de infiltração e humidades, com impacto na saúde dos seus arrendatários e na conservação das mercadorias acondicionadas nas frações arrendadas.
Julgamos que a descrição factual operada pela requerente no requerimento inicial, atenta a sua imprecisão relativamente a alguns dos pontos alegados, suscita dúvidas e reservas. Tal sucede designadamente quando, apesar de referir, com pormenor, quais as obras que, na sua perspetiva, se mostram adequadas a remover o perigo causado pela requerida ao nível da empena oeste do seu edifício, não usa o mesmo grau de concretização para referir quais os danos que a demolição em concreto causou na referida empena oeste. Assim, como não concretiza por que forma a demolição foi efetuada e qual o procedimento omitido que teria evitado os danos que, na sua perspetiva, foram causados no seu edifício. Acresce que o próprio perigo para a estabilidade estrutural da empena oeste se mostra alegado de forma vaga e imprecisa, desconhecendo-se qual o risco concreto ali existente, designadamente se apresenta risco de ruína ou outro.
Ou seja, ao requerimento inicial é possível assacar insuficiências e imprecisões na alegação da matéria de facto.
Porém, daí não resulta que a tal requerimento deva ser apontado o vício da ineptidão, no sentido da falta ou da ininteligibilidade da causa de pedir, nos termos do disposto no artigo 186º, nº 2, alínea a) CPC. Efetivamente, consistindo a causa de pedir no facto constitutivo “da situação jurídica material que quer fazer valer” [Código de Processo Civil anotado, Vol 1, 3ª edição, pag. 353.] é integrada “(…) pelo facto ou pelos factos concretos que preenchem a norma jurídica da qual o Autor faz derivar os direitos que, segundo ele, conduzirão à procedência do pedido” – Acórdão da Relação de Coimbra de 10-07-2019 [Proferido no processo nº 5149/19.3YIPRT.C1, disponível em www.dgsi.pt]. Tal entendimento decorre da teoria da substanciação, consagrada no nosso regime processual civil no artigo 581º, nº 4, CPC.
No entanto, sem olvidar que incumbe às partes a alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir que introduzem em juízo, como resulta do disposto no artigo 5º, nº 1, CPC, afigura-se que a requerente, não obstante as imprecisões supra mencionadas (e outras que possam ser apontadas), cumpriu suficientemente tal ónus.
Efetivamente, o requerimento inicial contém os “factos essenciais” em que a requerente fundamenta a sua pretensão cautelar, e que se reconduzem à alegação da prática pela requerida de um facto ilícito extracontratual (demolição realizada à margem das práticas regulamentares), com a consequente produção de danos na empena oeste do edifício da autora, afetando o seu direito de propriedade e, reflexamente, a saúde e o património dos seus arrendatários.
Mostra-se, pois, suficientemente indiciado o direito de propriedade que a requerente invoca (cuja titularidade sempre se deveria presumir, atenta a junção de certidão de registo predial junta que comprova a inscrição, a seu favor do referido direito, nos termos do artigo 7º do Código de Registo Predial). Mas também o periculum in mora se extrai do requerimento inicial, dada a alegação de que a demolição levada a cabo pela requerente deteriorou a empena oeste do prédio da requerente, colocando até em causa a sua estabilidade e originando infiltrações e humidades que se repercutem na saúde dos arrendatários das frações de tal prédio, e no respetivo património, por gerarem a deterioração das mercadorias aí armazenadas. Por fim, na tese da requerente, a execução das obras que peticiona, mostra-se adequada à remoção da lesão que invoca.
É ainda certo que, por via da providência requerida, poderá a requerente, como se refere na decisão recorrida, “esgotar o objeto da ação a intentar”. No entanto, tal “esgotamento” apenas poderá ocorrer se “a matéria adquirida no procedimento (…) permitir formar uma convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio” – cfr. artigo 369º, nº 1, CPC. Significa o acabado de expor que a pretensão de inversão do contencioso que foi deduzida pela requerente apenas no momento da decisão de mérito poderá ser ponderada, não podendo extrair-se de um eventual juízo de probabilidade do seu indeferimento (designadamente atenta a complexidade da matéria a apurar para o efeito) uma automática conclusão de desnecessidade da tutela cautelar.
Haverá ainda que salientar que caso os autos prosseguissem para a audiência final, com produção de prova, sempre haveria possibilidade de considerar factos instrumentais resultantes da instrução da causa (cfr. artigo 5º, nº 2, alínea a) e factos complementadores ou concretizadores dos alegados pela requerente, também resultantes da instrução da causa, desde que às partes fosse conferido o direito de sobre eles se pronunciarem (artigo 5º, nº 2. Alínea b), CPC). Porém, a imediata decisão quanto à improcedência da causa coartou à requerente tais possibilidades, inviabilizando a obtenção de uma decisão de mérito. E o certo é que a decisão recorrida se revela desadequada por o requerimento inicial conter factos essenciais nucleares que, em conjunto com outros (complementadores ou instrumentais) que resultassem da instrução da causa ou até de um convite ao aperfeiçoamento do articulado, poderiam viabilizar uma decisão de mérito da causa.
“Se o autor exprimiu o seu pensamento em termos inadequados, serviu-se de linguagem tecnicamente defeituosa, mas deu a conhecer suficientemente qual o efeito jurídico que pretendia obter, a petição será uma peça desajeitada e infeliz, mas não pode qualificar-se de inepta. Importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente (…) quando (,….) sendo clara quanto ao pedido e à causa de pedir, omite facto ou circunstâncias necessárias para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta: o que então sucede é que a ação naufraga”.
Ou seja, uma causa de pedir que foi exposta em termos obscuros ou imprecisos não se equipara a uma causa de pedir inexistente ou ininteligível.
Consequentemente, afigurando-se que o requerimento inicial padece de insuficiência na exposição da matéria de facto, será por via de convite ao seu aperfeiçoamento, nos termos do disposto no nº 4 do artigo 590º, CPC, que tal vício poderá ser suprido. Efetivamente, como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre [Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª edição pág 634] “O aperfeiçoamento é, pois, o remédio para os casos em que os factos alegados por autor ou réu (os que integram a causa de pedir e os que fundam as exceções) são insuficientes ou não se apresentem suficientemente concretizados”.
Reitera-se, pois, que o requerimento inicial contém os “factos essenciais” em que a requerente fundamenta a sua pretensão cautelar, e que se reconduzem à alegação da prática pela requerida de um facto ilícito extracontratual (demolição realizada em moldes que afetaram o seu direito de propriedade), gerador de danos (na empena oeste do edifício da requerente), existindo a possibilidade do seu agravamento.
Afigura-se, por isso, que apenas depois de operada tal complementação factual (seja por via de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento inicial, seja por via da ponderação de factos instrumentais e complementares que resultem da instrução da causa, nos termos já expostos) e após análise crítica e objetiva da prova produzida, haverá que verificar dos pressupostos da providência requerida. Certo é que no atual estado dos autos, tendo por base a alegação da autora, não pode deixar de ser configurada a eventual existência de uma carência de tutela cautelar, revelando-se prematuro o indeferimento liminar da providência. Ao invés, independentemente da procedência final da pretensão formulada, não pode deixar de considerar-se que o pedido formulado (reparação do edifício ao nível da empena oeste) decorre da causa de pedir invocada (facto ilícito gerador de responsabilidade civil), não se verificando a apontada manifesta improcedência."
[MTS]