"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/02/2025

Jurisprudência 2024 (105)


Pedido reconvencional;
falta de causa de pedir; ineptidão


1. O sumário de RL 9/5/2024 (13299/23.5T8SNT-A.L1-2) é o seguinte:

I - Se um pedido reconvencional não for deduzido “de forma clara, de modo separado na contestação e com indicação do seu valor”, a consequência não é uma absolvição da instância (implícita), mas a necessidade de um despacho de aperfeiçoamento (artigos 590/3 e 583/2, ambos do CPC).

II - Se a autora alega um estado de necessidade subsumível à previsão do negócio usurário (art. 282 do CC) e o réu, sem mais, a faz equivaler ou implicar a um estado de incapacidade, e com base nisso faz um pedido de invalidade de actos praticados pela autora, verifica-se, por um lado, nulidade do pedido por ineptidão derivada da falta de causa de pedir e, por outro lado, uma falta de legitimidade processual activa para tal pedido, visto que o réu não tem o direito de pedir a anulabilidade do acto da autora por falta de capacidade desta.

III – Uma perícia não pode suprir – nem é um meio de suprir - a falta de alegações de factos.


2. Na fundamentação e na parte dispositiva do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Os fundamentos invocados para a absolvição da instância implícita estão errados, pois que, existindo, deviam ter dado lugar a um despacho de aperfeiçoamento (assim, por exemplo, Lebre de Freitas, A acção declarativa, 5.ª edição, Almedina, 2023, pág. 149, e Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, 2017, anotação ao art. 583, fim da nota 1 da pág. 602).

Apesar disso não teria sentido deixar seguir a reconvenção, o que se decide em substituição do tribunal recorrido ao abrigo do art. 665/2 do CPC.

A situação de inferioridade, inexperiência e dependência de terceiros, descrita pela autora para os efeitos do preenchimento da previsão do art. 282 do CC (negócios usurários), só por si não equivale nem implica de forma necessária a existência de uma incapacidade “cognitiva suficiente para exercer o direito de preferência, apresentar acções judiciais e os demais actos a que, legalmente tem Direito”. Como o réu, para concluir por tal incapacidade, nada acrescentou ao que a autora alegava, não se poderá nunca concluir pela mesma. E a falta dos factos necessários não pode ser suprida, porque o réu nada alegou no sentido de o estado da autora ser de incapacidade e não pode ser convidado a inventar agora factos nesse sentido. O réu limitava-se a pressupor que a situação descrita pela autora era equivalente ou implicava o estado de incapacidade.

O pedido reconvencional subsidiário era, pois, inepto, por falta de causa de pedir (art. 186/1-2a do CPC).

Não tendo sido alegados factos que permitissem concluir pela incapacidade e não podendo tal falta ser suprida, a perícia requerida pelo réu não serviria para nada. A perícia, como meio de prova que é, destina-se a provar as afirmações de facto feitas pelas partes, não a, eventualmente, descobrir factos que as partes não alegaram.

Dito de outro modo: a instrução feita no decurso de um processo destina-se à prova das afirmações de facto feitas pelas partes, não à investigação de factos que permitam às partes fazer afirmações de facto (art. 341 do CC). A investigação de factos não se faz durante o processo. A instrução é uma investigação da verdade das afirmações de facto feitas pelas partes com base na investigação dos factos que estas fizeram ou deviam ter feito antes do processo.

Neste sentido:

Castro Mendes: “A investigação processual não é uma actividade de descoberta da verdade sobre certo evento ou complexo de eventos, mas uma actividade de confirmação ou prova de um certo número de afirmações previamente feitas sobre os mesmos eventos; não se destina à aquisição de conhecimentos novos, mas à demonstração da verdade de factos já alegados em juízo, e que só resta confirmar – à prova, em suma. O art. 2404 do Código Civil de 1867, numa definição que se pode considerar basicamente correcta, define prova como a ‘demonstração da verdade dos factos alegados em juízo’” (Direito Processual Civil, AAFDL, III, 1982, pág. 185).

Lebre de Freitas, A acção declarativa comum, 5.ª edição, 2023, Gestlegal, pág. 245: “A produção dos meios de prova no processo visa demonstrar a realidade dos factos alegados pelas partes ou, em outra perspectiva, demonstrar a verdade da alegação por elas feita. […] […] a função probatória é precedida pela afirmação de que o facto ocorreu: a alegação precede a prova […].”

Lebre de Freitas, Introdução ao processo civil, 5.ª edição, 2023, Gestlegal, pág. 234, diz: “O princípio do inquisitório (supra, n.º II.6.6) aponta já para uma concepção do processo civil, diversa da primitiva concepção liberal, em que a investigação da verdade é da responsabilidade do juiz. Na sua pureza, implicaria que a iniciativa do juiz não se limitasse ao plano da prova e, invadindo igualmente o da recolha do material a provar, se traduzisse na livre investigação judicial dos factos. Não é assim, porém, nos siste­mas processuais dos Estados democráticos de tipo ocidental (supra, n.º II.6 (35)), em que, dominando o princípio da controvérsia a recolha dos factos da causa, apenas no campo da prova tem também aplicação o princípio do inquisitório […]”

Por outro lado, o réu não tem legitimidade para pedir a anulação de actos praticados pela autora por falta de capacidade; a falta de capacidade é um vício que pode levar à anulabilidade do acto (art. 257 do CC – “apesar da epígrafe da norma falar expressamente em ‘incapacidade acidental’ ela é aplicável quer a causa da incapacidade seja temporária quer seja permanente”: Maria de Fátima Ribeiro, nota 6/I ao art. 257 do C, pág. 621, no Comentário ao CC, Parte geral, UCP/FD/UCE, 2014) que só pode ser arguido pelas pessoas (ou seu representante, segundo lembra a autora acabada de citar) em cujo interesse a lei a estabelece (art. 287/1 do CC), sendo que entre essas pessoas não se conta, naturalmente, o declaratário ou o réu numa acção proposta pelo eventual incapacitado.

Pelo que o réu careceria de legitimidade processual activa para deduzir tal pedido contra a autora (art. 30/3 do CPC): a própria relação controvertida tal como configurada pelo réu não tem, no lado activo, o direito que o réu pretende exercer.

A nulidade do pedido reconvencional e a falta de legitimidade são casos de absolvição da instância (art. 277/1-b-d do CPC).

*
Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se o despacho recorrido, mas, em substituição do tribunal recorrido, julga-se nulo o pedido reconvencional, por ineptidão derivada de falta de causa de pedir, para o qual, além disso, o réu não teria legitimidade, e, em consequência absolve-se a autora da instância reconvencional."

[MTS]