"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/02/2025

Jurisprudência 2024 (110)


Ineptidão da petição essencial;
conhecimento oficioso; preclusão


1. O sumário de RE 23/5/2024 (391/06.0TBBNV.E2) é o seguinte:

- o incidente de liquidação tramitado subsequentemente à decisão judicial de condenação tem em vista a concretização do objeto da condenação, com respeito pelo caso julgado ali formado;
 
- o recurso à equidade, ainda que como ultima ratio, permite obviar se profira decisão de improcedência no incidente de liquidação;

- a decisão assente no juízo de equidade deverá, contudo, sustentar-se em factos que, embora não revelem o valor exato dos danos, permitam aferir o montante adequado a fixar para que seja cumprido o efeito indemnizatório desses mesmos danos, o que inviabiliza se profira decisão assente em critérios de mera arbitrariedade;

- a prolação de despacho saneador tem efeitos preclusivos quanto ao conhecimento das nulidades decorrentes da ineptidão da petição inicial;

- se ocorre inultrapassável ineptidão da petição inicial, designadamente por falta de causa de pedir, ainda que em 1.ª Instância a decisão proferida tenha sido a de improcedência do pedido por falta de fundamentos fácticos, a preclusão do conhecimento da nulidade em sede de recurso, implicando na confirmação da improcedência, é desprovida de sentido, impondo-se a interpretação restritiva o regime legal decorrente do artigo 200.º/2, do CPC;

- tal interpretação restritiva permite, assim, o conhecimento oficioso da ineptidão da petição inicial em sede de recurso, após a prolação da sentença final, se não foi alegada pelo demandado e não foi objeto de apreciação oficiosa no despacho saneador e na sentença.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Não obstante improcedam as alegações recursivas formuladas, afigura-se que o desfecho do presente incidente de liquidação, no sentido da improcedência tal como sentenciado em 1.ª Instância, não prescinde da apreciação de requisitos de caráter oficioso atinentes à ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir (cfr. artigo 186.º/1 e 2, alínea a), do CPC).

A ineptidão da petição inicial determina a nulidade de todo o processo (cfr. artigo 186.º/1, do CPC), constitui nulidade que não é sanável, para além de constituir ainda uma exceção dilatória (cfr. artigo 577.º, alínea b), do CPC).

É certo que, nos termos do disposto no artigo 200.º/2, do CPC, as nulidades decorrentes da ineptidão da petição inicial podem ser apreciadas no despacho saneador, se antes o juiz as não houver apreciado; se não houver despacho saneador, pode conhecer-se delas até à sentença final. Então, a prolação de despacho saneador tem efeitos preclusivos quanto ao conhecimento das referidas nulidades, «significando isso, que, proferido o despacho saneador, fica encerrada a hipótese de o juiz suscitar aquelas nulidades.» [Abrantes Geraldes e outros, [CPC Anotado, Vol. I, 2.ª edição], pág. 254
]

Na jurisprudência do STJ [
Ac. STJ de 26/03/2015 (Lopes do Rego)] alcança-se a seguinte apreciação:

«Resulta, pois, claramente deste preceito legal – que reproduz inteiramente o regime que já constava do anterior artigo 206.º do velho CPC – que a nulidade por ineptidão da petição inicial está irremediavelmente precludida no momento em que é proferida sentença em 1ª instância, não podendo, consequentemente, ter-se por verificada, mesmo por impulso oficioso do Tribunal, apenas na fase de recurso.

E bem se compreende, aliás, o estabelecimento de um tal limite temporal à suscitação do vício de ineptidão, já que a prolação de decisão sobre o litígio – no caso dos autos, decisão sobre o mérito da causa, confirmada, aliás, por um primeiro acórdão, proferido pela Relação – implica necessariamente que, no desenrolar do processo, a eventual e originária insuficiência estrutural da petição inicial tenha sido suprida ou ultrapassada: não só a parte contrária terá contestado a versão do A., compreendendo o sentido essencial da factualidade que ele alegou, como o próprio tribunal, ao apreciar o mérito da causa, terá logrado compreender os pontos fundamentais do litígio que opunha as partes, ultrapassando, através da interpretação que fez dos articulados, as originárias deficiências e insuficiências factuais destes.»

Ora, salvo o devido respeito, bem se compreende tal regime se algum aproveitamento há da petição inicial, permitindo a apreciação do mérito da causa e a prolação de decisão que põe fim ao litígio. Obvia-se, assim, o desaproveitamento do processado e a prolação de decisão de cariz processual, culminando na absolvição do Réu da instância, quando, na verdade, foi alcançável a decisão de mérito, com apreciação substantiva do litígio.

Já se o caso redunda na inultrapassável ineptidão, designadamente por falta de causa de pedir, ainda que em 1.ª Instância a decisão proferida tenha sido a de improcedência do pedido por falta de fundamentos fácticos, a preclusão do conhecimento da nulidade em sede de recurso, implicando na confirmação da improcedência, é desprovida de sentido. Impõe-se a interpretação restritiva o referido regime legal, não obviando a apreciação oficiosa das nulidades que culmine na absolvição da instância. Acompanhamos, assim, os ensinamentos de MTS [
CPC online, artigo 200.º, 5 e 6], a saber:

«A imposição da preclusão da apreciação depois do despacho saneador da nulidade de todo o processo e de uma nulidade e exceção dilatória insanável não é aceitável. Não tem sentido deixar que permaneça pendente depois do despacho saneador uma ação em que, p. ex., não há causa de pedir (artigo 186.º, n.º 2, alínea a)) ou em que o pedido é contraditório com essa causa petendi (artigo 186.º, n.º 2, alínea b)). (b) Nem mesmo quando o réu não tenha invocado a ineptidão da p.i. na contestação se pode presumir que o mesmo interpretou convenientemente aquele articulado e que, por isso, não se justifica a apreciação oficiosa daquela ineptidão. O que resultado disposto no artigo 186.º, n.º 3, é diferente: a ineptidão não deve relevar quando o réu a tenha arguido e quando, depois de ouvir o autor, se conclua que aquela parte interpretou convenientemente a p.i..

6 (a) Há que reduzir o âmbito de aplicação do disposto no n.º 2 quanto à ineptidão da p.i. a uma dimensão razoável, fazendo uma interpretação restritiva do disposto nesse preceito e entendendo que a imposição do conhecimento dessa ineptidão no despacho saneador só vale para a hipótese de o réu a ter alegado na contestação (artigo 198.º, n.º 1). (b) O regime é então o seguinte: (i) se a ineptidão da p.i. for alegada pelo demandado na contestação, o tribunal deve conhecer dessa nulidade no despacho saneador (n.º 2); a falta deste conhecimento implica a nulidade, por omissão de pronúncia (artigo 613.º, n.º 3 e 615.º, n.º 1, alínea d)), daquele despacho; (ii) se a ineptidão da p.i. não tiver sido alegada pelo demandado, não há nenhuma preclusão do conhecimento oficioso dessa ineptidão depois do despacho saneador (dif. LF I (2018), n.º 2; GPS (2022), n.º 3; na j., RG 7/2/2019 (82/10); RG 26/1/2023 (2475/21)), salvo se essa ineptidão tiver sido concretamente apreciada ex officio naquele despacho (artigo 595.º, n.º 3, 1.ª parte).»

Tal interpretação restritiva permite, assim, o conhecimento oficioso da ineptidão da petição inicial em sede de recurso, após a prolação da sentença final, se não foi alegada pelo demandado e não foi objeto de apreciação oficiosa no despacho saneador e na sentença.

Passando, então, ao conhecimento da nulidade/exceção dilatória da ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir, importa notar que, tal como assinalado na sentença proferida em 1.ª Instância, competia à A alegar e provar os factos indispensáveis ao apuramento do lucro líquido.

Analisada a petição inicial, constata-se que a Requerente não alegou:

- o valor do lucro bruto, não superior a € 418.197,54, da Requerente no ano de 2004, afeto à atividade concessionada;

- o valor dos custos/despesas/encargos suportados pela Requerente, no ano de 2004, para viabilizar a atividade concessionada no mesmo ano de 2004.

Como a Requerente gizou a sua estratégia com o sentido de obter a indemnização a partir da margem bruta apurada em relação ao ano de 2004, não cuidou de carrear para o processo a alegação daqueles factos, indispensáveis à fixação da indemnização visada na condenação genérica objeto de liquidação.

Diz-se inepta a petição quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir – artigo 186.º, n.º 2, alínea a), do CPC.

Por via do princípio do dispositivo consagrado no artigo 5.º do CPC, “a iniciativa do processo e a conformação do respetivo objeto incumbem às partes; pelo que – para além de o processo só se iniciar sob o impulso do autor ou requerente – tem este o ónus de delimitar adequadamente o thema decidendum, formulando o respetivo pedido, ou seja, indicando qual o efeito jurídico, emergente da causa de pedir invocada, que pretende obter e especificando qual o tipo de providência jurisdicional requerida, em função da qual se identifica, desde logo, o tipo de ação proposta ou de incidente ou providência cautelar requerida.” [
Lopes do Rego, O Princípio do Dispositivo e os Poderes de Convolação do Juiz no Momento da Sentença, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Feitas, vol. I, pág. 789]

Na verdade, ao demandante cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir – artigos 5.º, n.º 1 e 552.º, n.º 1, alínea d), do CPC. Temos, por um lado, os factos essenciais nucleares, aqueles que identificam ou individualizam o direito que se pretende exercer. Outros há que, “não desempenhando tal função, se revelam, contudo, imprescindíveis para que a ação proceda, por também serem constitutivos do direito invocado” [
Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa, CPC Anotado, Vol. I, 2.ª edição, pág. 30] – são os factos essenciais complementares. “A falta destes últimos revelará uma petição deficiente ou insuficiente, a carecer de convite ao aperfeiçoamento que permita suprir as falhas da exposição ou da concretização da matéria de facto.” [Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa, ob. cit., pág. 30.]

causa de pedir consiste no facto jurídico de que procede a pretensão deduzida (artigo 581.º/4, do CPC), cumprindo ao autor que invoca a titularidade de um direito alegar os factos cuja prova permita concluir pela existência desse direito. Acolhida que foi, no nosso ordenamento jurídico, a teoria da substanciação, cabe ao autor “articular os factos dos quais deriva a sua pretensão, constituindo-se o objeto do processo e, por arrastamento, o caso julgado apenas sobre os factos integradores dessa concreta causa de pedir. (…) A causa de pedir, servindo de suporte ao pedido, é integrada pelos factos (por todos os factos) de cuja verificação depende o reconhecimento da pretensão deduzida, nos termos dos artigos 5.º, n.º 1 e 552.º, n.º 1, alínea d), (…).” [
Abrantes Geraldes, Paulo Pimento e Pires de Sousa, ob. cit., pág. 26]

Porque estamos no domínio do incidente de liquidação, cujo objeto é conformado pelo apuramento do valor da indemnização nos termos firmados na sentença transitada em julgado, assente que está o reconhecimento do direito de crédito à Requerente, a falta de alegação dos concretos factos que permitem o apuramento do referido lucro líquido redunda na ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir.

O que, consubstanciando exceção dilatória (artigo 577.º, alínea b), do CPC), implica na absolvição da Requerida da instância (artigo 576.º/2, do CPC)."

[MTS]