Petição deficiente;
factos supervenientes*
1. O sumário de RC 21/5/2024 (176/23.9T8PBL-B.C1) é o seguinte:
I - Petição factualmente insuficiente, desajeitada ou obscura não a fulmina, em termos apriorísticos e desde logo formais, de inepta, apenas podendo contender, em termos substanciais, com a atendibilidade do pedido.
II - Assim, só existe falta de causa de pedir que implica a ineptidão quando o autor não indica o facto genético ou matricial, a causa geradora do núcleo essencial do direito, ie., seja impossível, ou, pelo menos, razoavelmente inexigível, determinar, qual a causa de pedir e o pedido que aspira fazer valer.
III – Em abono da justiça material, da celeridade e da economia de meios, devem ser tidos em consideração até à audiência final, os factos supervenientes atempadamente invocados, sem que tal constitua ilegal alteração da causa de pedir, máxime quando tais factos sejam uma concretização, desenvolvimento ou completude dos liminarmente alegados – artºs 588º e 611º do CPC.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"5.
Apreciando.
5.1.
O nosso direito adjetivo, e quanto à causa de pedir, adota a teoria da substanciação perante ou em função da qual pode definir-se causa de pedir como sendo o ato ou facto jurídico, simples ou complexo, de que deriva ou no qual assenta o direito invocado pelo autor e que este se propõe fazer valer – cfr. artº 581º nº4 do CPC.
Tem-se em vista não o facto jurídico abstrato, tal como a lei o configura, mas um certo facto jurídico material concreto, conciso e preciso, cujos contornos se enquadram na definição legal.
A causa de pedir é, pois, o facto material apontado pelo autor e produtor de efeitos jurídicos e não a qualificação jurídica que este lhe emprestou ou a valoração que o mesmo entendeu dar-lhe.
A ideia geral e primordial - desde logo na perspetiva do julgador - no que concerne à figura da ineptidão da petição inicial, é a de impedir o prosseguimento duma ação viciada por falta ou contradição interna da matéria ou objeto do processo, que mostre desde logo não ser possível um correto, coerente e unitário ato de julgamento, “judicium”- Cfr. Prof. Castro Mendes, Direito Processual Civil, ed. AAFDL, 1978, 3º, p.47.
O fito secundário – na perspetiva das partes – é permitir o cabal conhecimento por banda do réu das razões fácticas que alicerçam o pedido do autor para, assim, poder exercer cabalmente o contraditório.
Por isso o estatuído no nº 3 do artº 186º.
A dificuldade reside em manter uma linha de separação entre a ineptidão da petição, vício formal, e a inviabilidade ou improcedência, questão de mérito ou substancial.
Nesta matéria urge ter presente que os factos que podem enformar os articulados se podem integrar em três espécies, a saber:
- Factos essenciais ou estruturantes, aqueles que integram a causa de pedir ou o fundamento da exceção.- Factos complementares, que concretizam a causa de pedir ou a exceção complexa.- Factos instrumentais, probatórios ou acessórios, que indiciam os factos essenciais e/ou complementares.
Ora apenas a falta na pi dos factos essenciais determina a inviabilidade da ação por ineptidão daquela.
Já os factos complementares são indispensáveis à sua procedência, não contendendo a sua falta com aquele vício, mas com a questão de mérito a dilucidar a final – Neste sentido, cfr. Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed pág. 70.
Destarte, pode dizer-se que, por via de regra, se se formula um pedido com fundamento em facto aduzido e inteligível, mas que não pode ser subsumido no normativo invocado, o caso é de improcedência e não de ineptidão.
O que interessa, do ponto de vista da apreciação da causa de pedir, é que o ato ou o facto de que o autor quer fazer derivar o direito em litígio esteja suficientemente individualizado na petição.
Na verdade e na lição sempre atual do Mestre Alberto dos Reis, há que ter presente que:
«Se o autor exprimiu o seu pensamento em termos inadequados, serviu-se de linguagem tecnicamente defeituosa, mas deu a conhecer suficientemente qual o efeito jurídico que pretendia obter, a petição será uma peça desajeitada e infeliz, mas não pode qualificar-se de inepta.Importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente…quando…sendo clara quanto ao pedido e à causa de pedir, omite facto ou circunstancias necessárias para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta: o que então sucede é que a acção naufraga» - Comentário, 2º, 364 e 371.
No seguimento destes ensinamentos a jurisprudência tem, desde sempre, vindo a defender, em uníssono, que a insuficiência ou incompletude do concreto factualismo consubstanciador da causa petendi, não fulmina, em termos apriorísticos e desde logo formais, a petição de inepta, apenas podendo contender, em termos substanciais, com a atendibilidade do pedido.
Efetivamente, reitera-se, petição prolixa não é o mesmo que petição inepta e causa de pedir obscura, imprecisa ou inadequada não é o mesmo que causa de pedir inexistente ou ininteligível.
No fundo só existe falta de causa de pedir quando o autor não indica o facto genético ou matricial, a causa geradora do núcleo essencial do direito ou da pretensão que aspira a fazer valer. – cfr. entre outros Acs. do STJ de 12.03.1974, BMJ, 235º, 310, de 26.02.1992, dgsi.pt, p.082001 e Acs. da RC de 25.06.1985 e de 01.10.1991, BMJ, 348º, 479 e 410º, 893.
Nesta conformidade, verdadeiramente só haverá falta de indicação da causa de pedir determinante da ineptidão quando, de todo em todo, falte a indicação dos factos invocados para sustentar a pretensão submetida a juízo, ou tais factos sejam expostos de modo tal que, seja impossível, ou, pelo menos, razoavelmente inexigível, determinar, qual o pedido e a causa de pedir – cfr. Acs. do STJ de 30.04.2003, 31.01.2007 e 26.03.2015, p.03B560, 06A4150 e 6500/07.4TBBRG.G2,S2, in dgsi.pt,.
Neste entendimento se enquadra o estatuído no citado nº 3 do artº 186º.
Pois que, mesmo que o réu, na contestação, invoque a falta ou ininteligibilidade do pedido, tal invocação não é atendível se se concluir que ele, não obstante as deficiências invocadas, inteligiu o feito que o demandante introduziu em juízo e está cônscio das consequências que dele pretende retirar.
Efetivamente:
«A petição inicial constitui um ato processual da parte, dirigido ao tribunal, que encerra declarações de vontade do respetivo autor.Não estando, ao menos quanto à narração, sujeita a fórmulas especificamente fixadas, as declarações em causa estão, como quaisquer outras, sujeitas a interpretação…tendo sempre presente a sua natureza e fins em razão do processo» – Ac. do STJ. de 16.12.2010, p. 942/04.4TBMGR.C1.S1 in dgsi.pt. [...]
Por conseguinte, é exigível um esforço interpretativo no sentido de se alcançar qual a pretensão do autor/reconvinte e as razões/fundamentos em que a alicerça.
E se esta interpretação, que, até certo ponto, se pode considerar restritiva no sentido da verificação do vício em dilucidação, já assim era maioritária antes da reforma processual de 1995, maior pertinência e acuidade ganhou com esta reforma, atento o fito primordial por ela propugnado, qual seja, privilegiar a obtenção de uma decisão de fundo, que aprecie o mérito da pretensão deduzida, em detrimento de procedimentos que condicionam o normal prosseguimento da instância.
Na verdade, e conforme se alcança do relatório do DL 329-A/95 de 12/12, consagrou-se como regra, que «a falta de pressupostos processuais é sanável».
Tudo de sorte a «obviar-se a que regras rígidas, de natureza estritamente procedimental, possam impedir a efectivação em juízo dos direitos e a plena discussão acerca da matéria relevante para propiciar a justa composição do litígio».
Sendo que o processo civil - rectius as respectivas normas - não pode ser perspetivado, interpretado e aplicado como um fim em si mesmo, mas antes como: «um instrumento ou …mesmo uma alavanca no sentido de forçar a análise, discussão e decisão dos factos…»
A reforma de 2013 acentuou ainda mais este fito, impondo ao juiz uma atuação pro ativa no sentido de, se entender existir deficiência alegatória, diligenciar pelo suprimento da mesma – cfr. artºs 6º e 590º nºs 3 e 4 do CPC.
Nesta senda citem-se alguns arestos mais recentes. Assim:
Ac. RP de 21.10.2019, p. 4138/18.0T8MTS-A.P1, in dgsi.pt, como os restantes:
«I - A ineptidão da petição inicial, apenas, ocorre quando esta contém deficiências que comprometem irremediavelmente a sua finalidade...II - Ainda, que os factos essenciais alegados sejam insuficientes, se a ré contestar, decorrendo da contestação que interpretou convenientemente a petição inicial e os pedidos, impugnando expressamente o que foi alegado pela autora e, em consequência, requerendo a sua absolvição daqueles, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a), do nº 2, do art. 186º, do CPC seja, com fundamento na falta ou ininteligibilidade de causa de pedir ou do pedido, a arguição não é julgada procedente quando, conforme estipula o nº 3, daquele mesmo artigo.IV - O juiz deve, oficiosamente, determinar que a autora aperfeiçoe a petição inicial, suprindo as omissões detectadas, no prazo fixado e só depois é que poderá extrair as consequências daquela omissão, caso não sejam supridas as insuficiências.»
Ac. RE de 09.09.2021, p. 1884/19.4T8EVR-B.E1
«V – Sobre as partes recai o ónus de alegarem os factos essenciais em sentido estrito e os factos complementares, sendo que quando faltem os primeiros estamos perante uma nulidade do processo por ineptidão da petição inicial; e quando faltem os segundos, deverá o tribunal a quo convidar a parte a aperfeiçoar o seu articulado, nos termos do artigo 590.º, n.ºs 2, alínea b) e 4, do Código de Processo Civil.»
Ac. RG de 13.07.2022, p. nº 2561/20.9T8VCT.G1
«A ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir pressupõe que, do ponto de vista lógico e racional, o pedido se oponha e brigue com a causa de pedir.Não há ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir se o acervo fáctico que serve de base à pretensão deduzida for compreensível, pese embora, eventualmente, não conduza à procedência da ação.»
Ac. RL de 10.11.2022, p. 118395/21.4YIPRT.L1-2
«II) A petição inicial é inepta por ininteligibilidade quando os factos e a conclusão são nela expostos em termos de tal modo confusos, obscuros ou ambíguos que não possa apreender-se qual é o pedido ou a causa de pedir.III) A falta ou a ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir não são passíveis de suprimento, pelo que, também não terá lugar a prolação de despacho de aperfeiçoamento.IV) Contudo, só haverá falta de indicação da causa de pedir determinante da ineptidão quando, de todo em todo, falte a indicação dos factos invocados para sustentar a pretensão submetida a juízo, ou tais factos sejam expostos de modo tal que, seja impossível, ou, pelo menos, razoavelmente inexigível, determinar, qual o pedido e a causa de pedir.» [...].
5.2.
In casu.
É obvio que a petição inicial não é um modelo a seguir no que tange ao cumprimento do aludido dever de substanciação, através da alegação de factos concretos, concisos e incisos, ie, ocorrências materiais da vida.
Antes atendo-se, essencialmente, à alegação de factos genéricos, conclusivos e opinativos: «ausência de ideia de família, discussões e ameaças» – cfr. artºs 16º, 20º e 24º.
No entanto alguns factos são alegados.
É o caso do vertido nos artºs 12º e 14º da pi, pois que a autora ao plasmar que ela arcou «sozinha com as lides domésticas», está a querer dizer que o réu delas se alheou, o que viola o dever de cooperação.
Bem como o alegado no artº 15º, pois que, não contribuindo o réu atempadamente com a anuída entrega de um certo valor – 1.400,00 euros - para as despesas familiares, está ele a violar o dever de assistência.
Acresce que o réu, não obstante as deficiências invocadas, inteligiu o feito que a demandante introduziu em juízo e está cônscio das consequências que ela dele pretende retirar.
Assim sendo, parece-nos que o vício da petição não é tanto o da ineptidão, mas mais é o da deficiência.
Nesta conformidade, a Julgadora, em vez de ordenar a notificação das partes, no sentido de evitar decisões surpresa, no entendimento de que a petição era inepta, melhor teria decidido se convidasse a autora a concretizar factualmente, em termos de modo, tempo e lugar, as alegadas ausências, discussões e ameaças por banda do réu.
Sendo que a ação prosseguiria e seria julgada perante os parcos factos alegados e outros que eventualmente a autora viesse a alegar em face do convite aludido, e o pedido procederia ou improcederia em função dos factos que viessem a ser dados como provados ou não provados.
Tendo entendido que a petição seria inepta, certo é que a autora veio a alegar factos mais concretos.
E estes factos foram alegados como objetivamente supervenientes, ie. ocorridos já após a instauração da ação.
O réu não coloca em crise esta natureza de tais factos.
E a tempestividade de alegação dos mesmos também se verifica.
Como bem se expende na decisão, eles poderiam ainda ser alegados em sede de audiência prévia, nos termos do artº 588º nº 3 al. a) do CPC, diligência que o processo admite, pelo que tendo sido alegados antes desta fase, a sua tempestividade é patente.
Dito isto, e nesta conformidade, emerge o disposto no artº 611º do CPC, o qual estatui:
«Atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes
1 - Sem prejuízo das restrições estabelecidas noutras disposições legais, nomeadamente quanto às condições em que pode ser alterada a causa de pedir, deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da ação, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão.»
Certo é que nos termos do artº 265º nº 1 do CPC:
«1 - Na falta de acordo, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor, devendo a alteração ou ampliação ser feita no prazo de 10 dias a contar da aceitação.»
Porém, a mais adequada exegese para a compatibilização dos dois preceitos aponta no sentido de que o artº 265º apenas proíbe a alteração da causa petendi se ela for alicerçada em factos já ocorridos ao tempo da instauração da ação.
Se forem supervenientes, objetiva ou subjetivamente, podem e devem eles ser tomados em consideração na decisão final – Cfr. Ac. da R Évora de 14.01.2021, p. 168/05.0TBVVC-N.E1, e Ac. R Lisboa de 28.03.2023, p. 915/14.9TVLSB-B.L1-7, in dgsi.pt.
Isto sob pena de se retirar efeito útil ao artº 611º.
E, acima de tudo, em abono do magno princípio da prevalência da substância sobre a forma, sucessivamente reiterado nas últimas reformas processuais, ou seja, da realização da justiça material; e, inclusive, em defesa dos princípios da celeridade e da economia de meios.
Esta ideia de que a estabilização da causa de pedir e a sua imutabilidade não são sacramentais, resulta ainda do nº6 do artº 265º, o qual permite, sem a restrição do nº 1, a modificação da causa de pedir, desde que acompanhada da modificação do pedido e tal não implique convolação para relação jurídica diversa da controvertida.
Efetivamente:
«A circunstância de o legislador de 2013 (não obstante ter prescindido da possibilidade da alteração conjunta, e à partida inteiramente livre, do pedido e da causa de pedir, na réplica, por já não admitir esse articulado com essa função) ter mantido a norma do nº 6 do anterior art. 273º (que corresponde à do nº 6 do atual art. 265º), permitindo, assim, a modificação simultânea do pedido e da causa de pedir, desde que tal não implique convolação para relação jurídica diversa da controvertida, parece que implicará a sua adesão, pelo menos nesta matéria, ao conceito amplo de causa de pedir.Segundo este conceito, só haverá alteração da causa de pedir se nenhum dos factos constitutivos das normas invocadas quanto ao pedido inicial for comum ao pedido ampliado.» - Ac. R Coimbra de 26.01.2021, p. 5362/18.0T8CBR-B.C1, in dgsi.pt. [---]
Ora no caso sub judice, e como se viu, na pi. a autora invoca alguns factos que alicerçam, comumente com os factos supervenientemente alegados, o seu pedido, o qual nem sequer é ampliado, mas se mantém inalterado: o decretamento do divórcio.
E assim, summo rigore, inexistindo uma verdadeira alteração da causa de pedir, mas antes uma concretização, desenvolvimento ou completude da liminarmente invocada.
E tal ideia dimana ainda do facto de, tal como bem decido, que o prazo de um ano da separação de facto a que alude a al. a) do artº 1782º do CCivil, pode não estar completado no momento da instauração da ação, relevando para o efeito deste preceito se se completar até à prolação da decisão final.
Neste sentido se tem inclinado a doutrina e a jurisprudência mais recentes, como sejam o Ac.do STJ de 23.02.2021, p. 3069/19.0T8VNG.P1.S1, citado na decisão, o voto de vencido proferido no Ac. R Évora de 21.03.2013, p. 292/10.7T2SNS.E1. e o Ac. R Lisboa de 23.02.2021, p. 1942/19.5T8CSC-D.L1-7, todos in dgsi.pt.
No caso vertente esta possibilidade é tanto mais de admitir quanto é certo que a autora já tinha invocado factos que apontavam para tal fundamento – artº 21º da pi.
Destarte, se atingindo a final conclusão que os vícios/ilegalidades apontados à decisão, inexistem; antes esta melhor se compaginando com a realização mais célere da justiça material."
*3. [Comentário] Não é fácil descortinar nos factos que foram alegados pela autora da acção de divórcio como factos supervenientes o que é realmente posterior à entrega da petição inicial. Em todo o caso, parece haver nestes factos alguns que podem ser considerados "factos continuados" ou "reiterados", o que é suficiente para que possam ser qualificados como factos (objectivamente) supervenientes para efeitos do disposto no art. 588.º, n.º 2, CPC.
MTS
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