"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/03/2025

Jurisprudência 2024 (123)


Processo de inventário;
relação de bens; reclamação


I. O sumário de RL 23/5/2024 (4956/22.4T8OER-A.L1-2) é o seguinte:

1- Se à data do óbito do inventariado já havia sido vendido um veículo automóvel do mesmo, não mais se encontrando na sua esfera jurídico‑patrimonial e não integrando assim a herança, não há que aplicar o disposto na al. b) do art.º 2069º do Código Civil, pelo que não há lugar à relacionação do preço respectivo.

2- Face ao disposto no nº 4 do art.º 1098º do Código de Processo Civil, e recorrendo às noções estruturais e tradicionalmente aceites do processo civil (adaptadas ao processo judicial de inventário), não basta ao cabeça de casal identificar a sua pretensão (que será correspondente à partilha dos bens e direitos que relaciona), mas deve igualmente invocar e demonstrar a causa de pedir (melhor dizendo, a causa de partilhar) quanto a cada um dos bens e direitos que relaciona.

3- Pedindo algum interessado a exclusão de um bem da relação de bens, e omitindo o cabeça de casal a indicação dos necessários elementos de identificação e apuramento da situação jurídica desse bem, fica por apurar a causa de partilhar quanto ao mesmo, o que conduz à sua exclusão da relação de bens.

4- Efectuando-se a partilha em sede de inventário, devem os bens doados pelo inventariado a interessados seus descendentes ser relacionados, com essa indicação, para efeitos de colação.

5- Tratando-se de doações manuais, presume-se a dispensa de colação e, consequentemente, verifica-se a inutilidade da relacionação, para aquele fim.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Resulta do nº 4 do art.º 1098º do Código de Processo Civil, no que respeita à apresentação da relação de bens pelo cabeça de casal, que “a menção dos bens é acompanhada dos elementos necessários à sua identificação e ao apuramento da sua situação jurídica”.

Do mesmo modo, e no que respeita à reclamação apresentada contra a relação de bens, refere o nº 2 do art.º 1105º do Código de Processo Civil que “as provas são apresentadas com os requerimentos e respostas”, sendo a questão decidida “depois de efectuadas as diligências probatórias necessárias, requeridas pelos interessados ou determinadas pelo juiz, sem prejuízo do disposto nos artigos 1092º e 1093º” (nº 3 do mesmo art.º 1105º do Código de Processo Civil).

Como explica Carlos Lopes do Rego (A recapitulação do inventário, Julgar Online, Dezembro de 2019), o novo modelo do processo de inventário “parte de uma definição de fases processuais relativamente estanques, envolvendo apelo decisivo a um princípio de concentração, propiciador de que determinado tipo de questões deva ser necessariamente suscitado em certa fase procedimental (e não nas posteriores), sob pena de funcionar uma regra de preclusão para a parte”.

Nesta medida, explica o mesmo autor que o inventário comporta “Uma fase de articulados (em que as partes, para além de requererem a instauração do processo, têm obrigatoriamente de suscitar e discutir todas as questões que condicionam a partilha, alegando e sustentando quem são os interessados e respectivas quotas ideais e qual o acervo patrimonial, activo e passivo, que constitui objecto da sucessão) – abrangendo a fase inicial e a fase das oposições e verificação do passivo”, esclarecendo ainda que “nos arts. 1097.º/1108.º CPC procura construir-se uma verdadeira fase de articulados: o processo inicia-se tendencialmente (ao menos, quando requerido por quem deva exercer as funções de cabeça de casal) com uma verdadeira petição inicial (e não como o mero requerimento tabelar de instauração de inventário) de que devem constar todos os elementos relevantes para a partilha”, assim se evitando que “seja sistemática e desnecessariamente relegada para momento ulterior ao início do processo a apresentação de uma série de elementos e documentos essenciais à boa prossecução da causa, como ocorria no regime prescrito no anterior CPC”.

Do mesmo modo, explica que “após despacho liminar (em que o juiz verifica se o processo está em condições de passar à fase subsequente), inicia-se a fase seguinte, da oposição ou do contraditório, exercendo os interessados citados o direito ao contraditório, cabendo-lhes impugnar concentradamente no próprio articulado de oposição tudo o que respeite à definição do universo dos interessados directos e respectivas quotas hereditárias, à competência do cabeça de casal e à delimitação do património hereditário, incluindo o passivo (cuja verificação é, deste modo, antecipada – do momento da conferência de interessados – para o da dedução de oposição e impugnações)”.

Ou seja, a aplicação dos princípios do dispositivo, do contraditório e da igualdade das partes ao processo de inventário, nesta fase estruturalmente declarativa, significa que o disposto no nº 4 do art.º 1098º do Código de Processo Civil há-de ser interpretado no sentido de impor ao cabeça de casal o ónus de invocar e demonstrar porque é que cada uma das verbas inscritas na relação de bens aí deve constar, com aquela concreta expressão qualitativa e quantitativa.

Aliás, isso mesmo decorre desde logo do disposto nos nº 1 a 3 do mesmo art.º 1098º, quando aí se dispõe sobre a necessidade de identificação do valor dos bens imóveis a partir do respectivo valor tributável (determinado documentalmente nos termos da respectiva certidão matricial), ou do valor das participações sociais a partir do respectivo valor nominal (determinado documentalmente a partir da exibição do título ou da certificação respectiva pelo seu depositário). E, do mesmo modo, quando aí se dispõe sobre a menção à iliquidez dos direitos de crédito ou de outra natureza, sempre que não seja possível determinar o valor dos mesmos.

Dito de outra forma, e recorrendo às noções estruturais e tradicionalmente aceites do processo civil (adaptadas ao processo judicial de inventário), não basta ao cabeça de casal identificar a sua pretensão (que será correspondente à partilha dos bens e direitos que relaciona), mas deve igualmente invocar e demonstrar a causa de pedir (melhor dizendo, a causa de partilhar) quanto a cada um dos bens e direitos que relaciona.

Assim, se quando um interessado acusa a falta de relacionação de um bem ou direito na relação apresentada, é ao mesmo que cabe o ónus da alegação e prova dessa falta de relacionação, já quando um interessado acusa a indevida relacionação de um bem ou direito, torna-se necessário, antes de mais, verificar se o cabeça de casal cumpriu o ónus que decorre do nº 4 do art.º 1098º do Código Civil.

O que significa, reconduzindo tais considerações ao caso concreto dos autos, que não há que tratar da mesma forma a questão relativa à indevida relacionação das verbas 12 e 13, e a questão relativa à falta de relacionação do recheio do imóvel identificado na verba 17.

É que, naquele primeiro caso (a invocação da indevida relacionação), trata-se de duas verbas da relação de bens relativamente às quais a cabeça de casal omitiu a indicação de quaisquer elementos que permitissem concluir que se trata de “bens móveis (mobiliário e electrodomésticos) adquiridos pelo inventariado e existentes” em outros tantos dois imóveis que não integram a herança. Tendo as interessadas BB. e CC. invocado a indevida relacionação de tais bens móveis, porque os dois imóveis a que respeitam correspondem à habitação de cada uma delas e porque o recheio que se encontra em cada uma delas foi adquirido pelas mesmas, e tendo o outro interessado (EE.) invocado ser do seu conhecimento pessoal que todo o recheio de cada um dos imóveis em questão foi adquirido pelo inventariado e aí colocado, vem então a cabeça de casal invocar, tão só, que “não podem as Requerentes apresentar prova, porque não a detêm, já que esse recheio adquiridos pelo inventariado AA. (…), conforme se virá a provar”. Sucede que, face ao acima exposto, era à cabeça de casal que competia indicar os elementos que permitem a afirmação de que o recheio de cada um dos imóveis que constitui a habitação de cada uma das interessadas BB. e CC. deve integrar a herança. O que é manifesto que não fez, porque a singela afirmação de que “virá a provar” que o mesmo recheio foi adquirido pelo inventariado, em resposta à reclamação apresentada por tais interessadas não corresponde à indicação dos necessários elementos de identificação e apuramento da situação jurídica dos bens que compõem tal recheio.

Já no segundo caso (a acusação da falta de relacionação do recheio do imóvel identificado na verba 17), são as interessadas reclamantes (BB. e CC.) quem invoca que se trata de bens pertencentes à herança, porque correspondem ao recheio da habitação da cabeça de casal “mas que foi integralmente adquirido pelo Inventariado”. E tendo a cabeça de casal respondido à reclamação, invocando que o recheio em questão “é unicamente seu e nada foi pertença do falecido” (assim sendo os bens que o compõem bens próprios da cabeça de casal), mostra-se controvertida (e carecida de demonstração) a factualidade alegada pelas interessadas reclamantes que sustenta a acusação da falta de relacionação.

Ou seja, enquanto no primeiro caso a cabeça de casal não deu cabal cumprimento ao disposto no nº 4 do art.º 1098º do Código de Processo Civil, omitindo a indicação da “causa de partilhar” relativamente a tais verbas 12 e 13, e havendo assim, em respeito pelo princípio do dispositivo, que concluir pela eliminação da relação de bens das verbas em questão, já no segundo caso pode-se afirmar que as interessadas reclamantes cumpriram com o seu ónus de alegação, no que respeita à acusação de falta de relacionação, assim sendo de admitir (como fez o tribunal recorrido) a subsequente instrução, nos termos e para os efeitos do nº 3 do art.º 1105º do Código de Processo Civil.

É esta solução a que melhor se conforma com a doutrina acima referida, não esquecendo igualmente que, como explicam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2020, pág. 572), “como regra geral e sem embargo de exclusões legais (v.g. prova documental necessária), ocorre a admissão dos factos que não tenham sido impugnados por qualquer dos requeridos directamente interessados na sua resposta [à posição manifestada pelo contra-interessado], ou antecipadamente”.

Assim, e demonstrada a diferença das duas situações, logo se alcança que a decisão a tomar em relação a cada uma delas não tinha de ser a mesma, mas antes havia que dar solução distinta a cada uma delas, nos termos em que o fez o tribunal recorrido, decidindo desde logo pela exclusão das verbas 12 e 13, com fundamento na ausência de qualquer menção, na relação de bens, dos elementos necessários à sua identificação e ao apuramento da sua situação jurídica, e decidindo igualmente pela necessidade de ulterior produção de prova, tendente ao apuramento da identificação e situação jurídica do referido recheio do imóvel identificado na verba 17, para efeitos de ser relacionado como bem da herança, como alegado e peticionado pela interessadas reclamantes."

[MTS]