"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



25/03/2025

Jurisprudência 2024 (133)


Dupla conforme;
"fundamentação essencialmente diferente"

1. O sumário de STJ 25/6/2024 (3619/22.5T8LLE.E1.S1é o seguinte: 

Não constitui fundamentação essencialmente diferente, para efeitos de admissibilidade de recurso de revista, a discrepância entre duas decisões que consiste num mero aditamento frásico na segunda, que em nada prejudica a centralidade argumentativa, antes a reforça, como que «fechando» ex abundante as razões anteriormente expendidas.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Trata-se de saber se o recurso de revista deve ser admitido por inexistir dupla conformidade e, caso tal se não considere, se a alegada interpretação do artigo 671.º, 3 CPC padece de inconstitucionalidade, por violação do direito de acesso ao direito e de tutela jurisdicional efectiva.

***

A decisão do relator é do seguinte teor:

«AA interpôs recurso de revista normal para este Supremo Tribunal, alegando inexistir dupla conforme, e, subsidiariamente, recurso excepcional.

Afirmou que no caso inexiste “dupla conforme”, porquanto a fundamentação expressa na sentença é essencialmente diversa daquela exarada no acórdão recorrido.

Não tem razão.

Na sentença diz-se que «Por último, no que diz respeito às despesas aprovadas para a manutenção dos elevadores o n.º 4 do artigo 1424.º do Código Civil é claro “Nas despesas dos ascensores só participam os condóminos cujas fracções por eles possam ser servidas.” (sublinhado nosso). Como tal, as fracções A, B e C, situadas na cave e no rés-do-chão do prédio, não sendo servidas pelos elevadores não têm que participar nas ditas despesas, devendo estas ser apenas suportadas pelas fracções que por eles possam ser servidas, in casu, as fracções D, E, F, G, H, I, J e L, e em igual proporção, uma vez que todas têm a mesma permilagem (cfr. factos 2 e 3)».

Por sua vez, o douto acórdão recorrido consigna que «Na verdade, situando-se as frações A, B e C na cave e no rés-do-chão do prédio, não são servidas pelos elevadores, e não sendo o terraço de cobertura e casa das máquinas locais de utilização comum, devem os respetivos condóminos beneficiar de isenção de participar nas despesas de manutenção dos elevadores, como bem se decidiu no sanador-sentença recorrido. Só assim não seria se houvesse algum arrumo no último piso, ou se houvesse neste uma sala de reuniões ou de convívio que pudesse ser usada por todos os condóminos, o que não é o caso».

Sabido é que o requisito de recorribilidade previsto no artigo 671.º, 3 CPC obstativo da dupla conformidade não decorre do facto da decisão confirmatória do segundo grau conter fundamentação diferente; exige-se que seja «essencialmente diferente».

Importa distinguir fundamentação essencialmente diferente de fundamentação diversa.

Uma fundamentação essencialmente diferente pressupõe novidade argumentativa e a consideração de um enquadramento factual e/ou jurídico diferente e decisivo, que se afaste distintivamente da fundamentação da decisão apelada.

Não se verifica esta modalidade de fundamentação quando o tribunal da Relação, mantendo-se no quadro jurídico da decisão recorrida acrescenta argumentos relacionados com a questão decidida que apenas lhe emprestam uma maior solidez.

Foi o que aconteceu no caso sujeito. [...]

 ***

O reclamante entende que não há dupla conforme por as decisões em causa terem fundamentação essencialmente diferente. Acresce que se a interpretação feita na decisão reclamada prevalecer, então estar-se-á diante de uma inconstitucionalidade, por violação do artigo 20.º da CRP.

Não tem razão o reclamante.

AA instaurou acção declarativa, com processo comum, contra Condomínio do Edifício ..., peticionando a anulação de todas as deliberações da Assembleia de Condóminos realizada no dia 29.10.2022.

Alega que o terraço é parte comum do edifício e que, como tal, por todos os condóminos terem o direito de aceder e utilizar o mesmo, as despesas de elevador devem ser repartidas por todos na proporção das respectivas permilagens.

No saneador-sentença julgou-se a acção totalmente improcedente, e, consequentemente, absolveu-se o réu do pedido. [...]

No Enquadramento jurídico da questão que efectuou, o primeiro grau afirmou: «Por último, no que diz respeito às despesas aprovadas para a manutenção dos elevadores o n.º 4 do artigo 1424.º do Código Civil é claro “Nas despesas dos ascensores só participam os condóminos cujas fracções por eles possam ser servidas.” [...]

Como tal, as fracções A, B e C, situadas na cave e no rés-do-chão do prédio, não sendo servidas pelos elevadores não têm que participar nas ditas despesas, devendo estas apenas suportadas pelas fracções que por eles possam ser servidas, in casu, as fracções D, E, F, G, H, I, J e L, e em igual proporção, uma vez que todas têm a mesma permilagem (cfr. factos 2 e 3). Assim sendo, importa concluir que a Assembleia foi regularmente convocada e reunida e nenhuma invalidade ou irregularidade se denota nas deliberações em causa.

Pelo exposto, a acção terá de improceder».

Interposto recurso, a Relação deixou inalterada a matéria de facto e confirmou por unanimidade a decisão recorrida.

Para tanto argumentou: «No caso concreto a questão prende-se essencialmente com a melhor interpretação a conferir ao normativo constante do nº 4 do preceito acabado de transcrever [artigo 1424.º CC, a especificação é nossa].

Segundo o recorrente os titulares das frações A, B e C, estão obrigadas a contribuir proporcionalmente para as despesas de fruição e conservação do elevador e de todos os espaços comuns, por disporem de acesso ao edifício através das suas escadas interiores e elevador, designadamente, à casa das máquinas e terraço de cobertura que diz serem espaços comuns.

Na sentença recorrida entendeu-se que as referidas frações, situadas na cave e no rés-do-chão do prédio, não sendo servidas pelos elevadores não têm que participar nas ditas despesas, devendo estas ser suportadas apenas pelas frações que por eles possam ser servidas.

Vejamos, pois, de que lado está a razão».

Depois de mencionar alguma jurisprudência, a Relação argumenta: «A jurisprudência de que se socorre o recorrente, com vista a demonstrar o desacerto da decisão recorrida, tinha subjacente uma outra realidade, pois estava aí em causa uma sala de convívio ou arrecadação geral, o que é coisa bem diferente de uma casa das máquinas ou de terraço da cobertura, como sucede in casu.

Como bem aduz o recorrido na resposta ao recurso, «[e]stas duas componentes existem em quase todos os prédios e não são de utilização comum dos condóminos conforme ficou decidido na assembleia de condóminos. (…). Um terraço de cobertura e casa das máquinas não tem a mesma utilização que uma sala de convívio ou uma arrecadação geral. Por esse motivo no caso em concreto todos os condóminos decidiram na não comparticipação nas despesas dos elevadores às frações da cave e Rés do chão».

Na verdade, situando-se as frações A, B e C na cave e no rés-do-chão do prédio, não são servidas pelos elevadores, e não sendo o terraço de cobertura e casa das máquinas locais de utilização comum, devem os respetivos condóminos beneficiar de isenção de participar nas despesas de manutenção dos elevadores, como bem se decidiu no sanador-sentença recorrido.

Só assim não seria se houvesse algum arrumo no último piso, ou se houvesse neste uma sala de reuniões ou de convívio que pudesse ser usada por todos os condóminos, o que não é o caso.

Por conseguinte, improcede o recurso».

Não se compreende como, diante das duas argumentações, se pode ver a discrepância de que fala o reclamante, sendo certo que ambas apresentam a mesma motivação nuclear. O que as distingue é um mero aditamento frásico na segunda, que em nada prejudica a centralidade argumentativa, antes a reforça, como que «fechando» ex abundante as razões anteriormente expendidas.

No sumário do acórdão deve pôr-se a tónica no ponto II, a saber: «II – Devem ficar isentos de contribuir para as despesas de manutenção e conservação dos elevadores os condóminos cujas frações não são (nem podem ser) servidas por eles como os do rés-do-chão e cave».

O ponto III, pode dividir-se em duas partes: a primeira, constituída pelo segmento «Esses condóminos só não devem beneficiar de tal isenção se possuírem algum arrumo no último piso, ou se houver neste um terraço, sala de reuniões ou de convívio que possa ser usada por todos os condóminos» - meramente teórica; uma segunda parte - «o que não se verifica tratando-se apenas de um terraço de cobertura e da casa das máquinas, os quais existem em quase todos os prédios e não são de utilização comum dos condóminos» - essa sim aplicável ao caso.

De resto, no caso sujeito, não está em causa a mera interpretação da proposição normativa constante do número 4 do artigo 1424.º CC, mas a aplicação ao caso concreto da norma daquela interpretação resultante, operação que nesta não se esgota, já que inclui ao lado da interpretação propriamente dita, a apreciação dos factos da causa, a qualificação da factispécie concreta pertinente á situação e a decisão da controvérsia, com a adequada fundamentação.

É a esta fundamentação que o legislador manda atender para se apurar a dupla conformidade, que, naturalmente, não se pode analisar isoladamente, sem conexão com os restantes elementos da operação aplicativa.

A fundamentação exprime as razões de decidir, o percurso argumentativo seguido pelo julgamento de facto e de direito, condição necessária para que o dispositivo não pareça um simples exercício de autoridade.

Pode, pois, concluir-se que existe in casu dupla conformidade. [...]

***

Pelo exposto, acordamos em indeferir a reclamação, e, consequentemente, em confirmar a decisão do relator."

[MTS]