"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/03/2025

Jurisprudência 2024 (120)


Recurso de revisão;
fundamentos; violação do princípio da confiança*


I. O sumário de RE 23/5/2024 (236/20.8T8GDL.E1-A) é o seguinte:

1 – Uma sentença não pode servir de fundamento a recurso extraordinário de revisão por não poder ser qualificada como um documento.

2 – Já assim não será se a parte deposita confiança num acto do Tribunal e definiu a sua actuação processual com base nessa decisão, sob pena de infracção de princípios processuais tão relevantes como o da boa fé ou da cooperação.

3 – Nos recursos de reparação existe uma malha apertada de fundamentos e de prazos para a interposição do recurso de revisão.

4 – Quanto ao prazo de interposição consignado no artigo 697.º do Código de Processo Civil, dando aplicação prática ao preceito inscrito no artigo 329.º do Código Civil, o mesmo é contado a partir do momento em que a parte obteve o documento ou teve conhecimento do facto que serve de fundamento à revisão e não do trânsito em julgado da decisão a rever.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O Tribunal competente para o recurso de revisão é o Tribunal que proferiu a decisão objecto deste recurso de harmonia com a previsão do n.º 1 do artigo 697.º do Código de Processo Civil. E, assim, tendo havido recurso de apelação ou de revista, independentemente de a decisão ser confirmatória ou revogatória, o Tribunal competente é, respectivamente, o da Relação ou o Supremo Tribunal de Justiça, corrigindo-se o lapso manifesto do despacho proferido a 05/05/2023 pelo precedente relator.

O recurso extraordinário de revisão interpõe-se de decisões transitadas em julgado (sentenças, despachos e acórdãos) e representa uma possibilidade de reabertura do processo que escapa ao axioma da res iudicata pro veritate habetur.

Neste domínio, existe o princípio fundamental que aquilo que foi objecto de julgamento definitivo não pode ser novamente submetido à discussão, salvo se se verificar um conjunto restrito de fundamentos que «visa combater um vício ou anomalia processual de especial gravidade, de entre um elenco taxativamente previsto» [José Lebre de Freitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2022, pág. 302.]

Efectivamente, alvitrava Alberto dos Reis que o recurso extraordinário de revisão apresentava «o aspecto de atentado contra a autoridade do caso julgado» e se situava no âmbito do «conflito entre as exigências da justiça e a necessidade da segurança ou da certeza» [José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. VI, Coimbra Editora, Coimbra, reimpressão de 1980, págs. 335-336.]

A revisão de uma decisão transitada em julgado deverá ser algo de excepcional, sendo que a regra é que o caso julgado, a bem da segurança jurídica, torne a decisão indiscutível. Estando-se perante um recurso que é extraordinário e que existe precisamente para que o caso julgado possa ser ultrapassado, as exigências para a admissão do mesmo têm de ser particularmente cuidadas, para que não se faça da excepção a regra [---]

No fundo, apesar da denominação, trata-se de uma verdadeira acção e não de um recurso no sentido técnico-jurídico de rigor [---] e os fundamentos de recurso são acolhidos no artigo 696.º [---] do Código de Processo Civil.

A questão matricial deste procedimento recursal reside na resposta diferente de dois Tribunais quanto à questão do exercício da preferência por parte dos Autores e que obteve duas respostas discordantes sobre a mesma questão essencial, uma confirmatória da pretensão por entender que o adquirente não era dono de nenhum prédio confinante e outra negatória na medida em que se provou existir uma prévia relação de vizinhança impeditiva da procedência da acção.

É de salientar que o prédio decisivo para formular o juízo de confinância era o que deu origem à acção registada sob n.º 235/20.0T8GDL. O dito imóvel constituía o fundamento da defesa por excepção ao exercício do pedido do direito de prelação na acção aqui em discussão. Porém, naquele outro procedimento foi reconhecido à parte activa o direito de haver para si, pelo referenciado preço, o prédio em causa, em substituição dos prévios adquirentes. E, em determinada concepção, com essa adjudicação terá desaparecido o motivo determinante da improcedência ocorrida na acção registada sob o n.º 236/20.8T8GDL.

Os recorrentes encaixam a sua pretensão na alínea c) do artigo 696.º do Código de Processo Civil que estabelece que a decisão transitada em julgado só pode ser objecto de revisão quando se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.

Quanto ao requisito novidade, João Espírito Santo refere que o mesmo não significa a necessidade de o documento se haver formado depois do trânsito em julgado da sentença a rever, porque as palavras «de que a parte não dispusesse nem tivesse conhecimento», inculcavam precisamente que «o documento já existia, mas a parte não pôde socorrer-se dele, ou porque o desconhecia ou porque não o teve à sua disposição» [João Espírito Santo, O documento superveniente, para efeito de recurso ordinário e extraordinário, Almedina, Coimbra, 2001, pág. 70.]

Um dos documentos apresentados corresponde a uma certidão permanente da Conservatória do Registo Predial referente ao prédio sub judice, que revela a aquisição a favor de (…) e mulher (…), por decisão judicial na sequência da procedência da acção de preferência.

É ideia consolidada que a força probatória material dos documentos autênticos se cinge às percepções da entidade documentadora (quorum notitiam et scientiam habet propiis sensibus, visus et auditus), razão pela qual a jurisprudência dos nossos Tribunais se tem pronunciado pela negação da presunção a que se refere o artigo 7.º do Código do Registo Predial relativamente às áreas e às confrontações, mas sublinham que abrange a presunção da titularidade.

Contudo, este documento não é susceptível de «por si só, alterar em sentido mais favorável a decisão revidenda em que o recorrente foi vencido» [José Lebre de Freitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2022, pág. 305.]. Ou, nas palavras de Abrantes Geraldes, este documento deveria «ser de tal modo antagónico com aquela, no seu alcance probatório, que justifique, sem qualquer relação com a prova produzida no processo, a decisão em sentido contrário» [António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I (Parte Geral e Processo de Declaração: artigos 1.º a 702.º), 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2023, pág. 896.]. E isso não acontece, dado que a situação exige a interacção com outros elementos factuais e probatórios para que seja formulado um silogismo judiciário distinto.

Resta assim o documento que contém a sentença proferida. No entanto, tanto a doutrina [---] como a jurisprudência [---] defendem que uma sentença não pode servir de fundamento a recurso extraordinário de revisão por não poder ser qualificada como um documento, ficando assim, desde 2007, em especial após a eliminação da alínea f) do Código de Processo Civil de 1961, vedada a possibilidade de revisão de sentença ser fundada num suporte que não corporize uma declaração de verdade ou ciência.

Para além desta restrição quanto à apresentação de sentença, um dos fundamentos do recurso de revisão é a apresentação de documento novo, no sentido em que não foi apresentado no processo onde se emitiu a decisão a rever, porque ainda não existia, ou, porque existindo, a parte não pôde socorrer-se dele, por não ter tido conhecimento da sua existência [---]

A decisão transitada em julgado só pode ser objecto de revisão quando se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.

Retornemos então à matéria do acórdão anteriormente proferido por este Tribunal da Relação de Évora, para afirmar que cremos que, não tendo transitado a decisão, a solução processual mais razoável seria a de suspender os actos por via da existência de uma causa prejudicial e isso, certamente, evitaria o recurso ao recurso de revisão e poderia balançar a resultados distintos.

O que é certo é que, em função daquilo que ali ficou escrito, temos aqui de excepcionalmente seguir a linha de pensamento e de orientação presente no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 31/03/2009, depois reproduzida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/05/2013.

Estamos perante um caso em que a confiança que a parte deposita num “acto do juiz, que lhe foi notificado, e em função do qual definiu a sua actuação processual” tem de ser tutelada, sob pena de infracção de princípios processuais tão relevantes como o da boa fé ou da cooperação [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8/05/2013, consultável em www.dgsi.pt.]

Neste parâmetro, note-se que, de acordo com o comentário de Lebre de Freitas [José Lebre de Freitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2022, págs. 169-170.], neste caso, a prevalência da confiança e da boa fé sobre o rigor formal impõe-se, dado que a propositura da acção de revisão assenta numa possível errónea interpretação do Tribunal quanto aos fundamentos da reapreciação da prova baseada em documento superveniente ao da produção de prova na Primeira Instância [No presente acórdão do Tribunal da Relação de Évora datado de [?; sic] ficou consignado: «no caso dos autos, assiste sempre aos recorrentes o direito de interpor recurso de revisão, caso a sentença acima referida e proferida pelo mesmo tribunal, venha a transitar em julgado, como o permite e prevê o artigo 696.º/c), do CPC».]

Por isso, como se disse, excepcionalmente, admite-se a decisão judicial como fundamento formal do pedido de revisão."

*III. [Comentário] O acórdão da RE não pode passar despercebido.

O acórdão considerou admissível o recurso de revisão com base na confiança que, 
pelo próprio acórdão recorrido, foi incutida na parte de que esse recurso extraordinário era admissível. É uma orientação a que se adere sem hesitação, na base de que as partes podem confiar na aparência criada pelo tribunal e de que o sistema processual deve comportar-se perante as partes de modo confiável.

O caso chama a atenção para um défice do CPC (já referido aqui). O CPC consagra suficientes garantias inerentes ao processo equitativo, mas ainda é muito insuficiente quanto aos meios de reacção contra a violação dessas garantias.

MTS