Acção de divórcio;
causa de pedir; constituição*
1. O sumário de RE 6/6/2024 (7536/22.0T8SNT.E1) é o seguinte:
I – Na separação de facto por um ano consecutivo releva o tempo decorrido entre a propositura da ação e a prolação da decisão.
II – A proposição de ação de divórcio constitui manifestação inequívoca do propósito do autor de não restabelecer a vida em comum com o seu cônjuge.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"A presente ação de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges funda-se, de acordo com a causa de pedir, na separação de facto do casal desde janeiro de 2021, tendo cessado qualquer comunhão de vida entre ambos e, na intenção da Autora em não mais reestabelecer a vida em comum.
Dispõe o artigo 1781.º do Código Civil, a propósito da rutura do casamento, que:
«São fundamento do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges:a) A separação de facto por um ano consecutivo;b) A alteração das faculdades mentais do outro cônjuge, quando dure há mais de um ano e, pela sua gravidade, comprometa a possibilidade de vida em comum;c) A ausência, sem que do ausente haja notícias, por tempo não inferior a um ano;d) Quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do casamento.»
Segundo o artigo 1782.º, n.º 1, do Código Civil:
«Entende-se que há separação de facto, para efeitos da alínea a) do artigo anterior, quando não existe comunhão de vida entre os cônjuges e há da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não a restabelecer».
No caso vertente estão em causa os fundamentos previstos nas alíneas a) e d) do citado artigo 1781.º.
Quanto à alínea a) importa considerar que:
O divórcio em razão da separação de facto pressupõe:
- A inexistência de comunhão de vida entre os cônjuges durante um ano seguido (elemento objetivo);
- A intenção, de ambos ou de um dos cônjuges, durante tal lapso de tempo, em não restabelecer a comunhão (elemento subjetivo).
Naquele prazo de um ano inclui-se o lapso de tempo decorrido até ao final da audiência de discussão e julgamento (nesse sentido, entre outros, os Acórdãos do TRL de 28-04-2022, P. 2271/20.7T8BRR.L1-2, e do TRC de 18-01-2022, P. 373/20.9T8ACB.C1, in www.dgsi.pt).
Como refere Guilherme de Oliveira, Manual de Direito da Família, edição de 2020, página 277, em destaque no citado Acórdão do P. 2271/20.7T8BRR.L1-2 «[e]xige-se, em primeiro lugar, a separação de facto dos cônjuges, integrada por dois elementos, um objetivo e outro subjetivo. O elemento objetivo é a falta de vida em comum dos cônjuges, que passam a ter residências diferentes» sendo que a esse elemento «há de (…) acrescer um elemento subjetivo, que lhe dá forma e sentido. Tal elemento subjetivo consiste numa disposição interior ou, como diz o art. 1782.º, num “propósito”, da parte de ambos os cônjuges ou de um deles, de não restabelecer a comunhão de vida matrimonial.
É necessário que o propósito de não restabelecer a comunhão exista desde a data em que a separação teve início, e que se mantenha durante um ano consecutivo».
Embora, a jurisprudência se divida na consideração do respetivo termo final, cremos ser necessário, tão-somente, que o prazo de um ano ocorra à data da produção de prova realizada na audiência de discussão e julgamento, por ser essa a interpretação que melhor corresponde ao princípio da atualidade da decisão consagrado no artigo 611.º, n.º 1, do CPC, o qual dispõe que «(….) deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à propositura da ação, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão».
No presente caso, importa considerar:
A presente ação foi proposta em 30-04-2022.Na mesma, a Autora alegou a separação de facto.A Autora e o Réu vivem respetivamente em Sintra e Loulé.A audiência de julgamento ocorreu em 25-10-2023.Ainda que demonstrado não esteja outro período temporal, antecedente, a separação de facto entre os cônjuges perdurou ininterruptamente durante mais de um ano à data do julgamento, tendo a Autora/recorrente o propósito de não restabelecer a comunhão conjugal com o Réu/recorrido.Em consequência, está demonstrado o fundamento de divórcio previsto na alínea a) do artigo 1781.º do Código Civil: a) A separação de facto por um ano consecutivo.
Importa ainda considerar:
A proposição de ação de divórcio constitui uma manifestação inequívoca do propósito da Autora de não restabelecer a vida em comum com o seu cônjuge.
Com efeito, o “propósito” de um ou de ambos os cônjuges de não restabelecer a vida em comum pode ser afirmado ou exteriorizado de forma expressa ou tácita, e o “simples facto de o autor intentar a ação de divórcio demonstra, só por si, o propósito de não reatamento da sociedade conjugal, já que traduz uma manifestação nesse sentido” – vide Acórdãos do STJ de 5/7/2001, Col. Jur. STJ, 2001, T-II, pág. 164; e de 11/7/2006, Col. Jur., STJ, 2006, T-II, pág. 157, referidos no Acórdão do STJ de 25-05-2023, Proc. 1950/20.3T8VFR.P1.S1, in www.dgsi.pt, que defende idêntica posição.
Como neste acórdão se alega, «não oferece dúvida que o animus de não restabelecimento da vivência matrimonial é elemento essencial para se julgar verificado este fundamento de divórcio. No entanto, que outro facto mais inequívoco deste animus de não restabelecimento da vida matrimonial existe, que a própria interposição de pedido de divórcio? É, pois, este pedido que revela que a rutura conjugal é definitiva e irreversível, consubstanciado na intenção de um dos cônjuges de dissolver o aludido vínculo».
Por outro lado, no contexto da causa de pedir enunciada na alínea d) do artigo 1781.º do CC – «quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do casamento», a cláusula geral e objetiva da rutura definitiva do casamento – enquanto fundamento de divórcio, não exige, para a sua verificação, qualquer duração mínima, como sucede com as restantes causas que impõem um ano de permanência (cfr. Ac. STJ de 03-10-2023, Proc. 2610/10.9TMPRT.P1.S1, in www.dgsi.pt).
Estão, pois, demonstrados os dois fundamentos do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, previstos no artigo 1781.º do Código Civil: a) A separação de facto por um ano consecutivo e d) Quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do casamento."
*3. [Comentário] Com a devida consideração, discorda-se completamente do entendimento de que o prazo de separação de um ano entre os cônjuges se pode completar durante a pendência da acção de divórcio. Como é claro, a causa de pedir de qualquer acção nunca se pode constituir durante a pendência da acção; certamente nunca ninguém pensou que o prazo de usucapião se pode completar durante a pendência da acção de reivindicação. Para maiores desenvolvimentos clicar aqui.
MTS
*3. [Comentário] Com a devida consideração, discorda-se completamente do entendimento de que o prazo de separação de um ano entre os cônjuges se pode completar durante a pendência da acção de divórcio. Como é claro, a causa de pedir de qualquer acção nunca se pode constituir durante a pendência da acção; certamente nunca ninguém pensou que o prazo de usucapião se pode completar durante a pendência da acção de reivindicação. Para maiores desenvolvimentos clicar aqui.
MTS