"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/03/2025

Jurisprudência 2024 (124)


Pedido reconvencional;
convite ao aperfeiçoamento; nulidade da sentença


1. O sumário de RP 20/5/2024 (14427/22.3T8PRT.P1) é o seguinte:

I - Tendo o réu deduzido pedido reconvencional sem cumprimento das formalidades previstas no artigo 583º, números 1 e 2 do Código de Processo Civil deve o tribunal convidá-lo a suprir tais irregularidades nos termos do artigo 590º, número 3 do Código de Processo Civil;

II - Não tendo tal convite sido feito não pode na sentença decidir-se da procedência ou improcedência desse pedido reconvencional, que não foi deduzido, tramitado e admitido expressamente e a que, portanto, a parte contrária não pôde responder em réplica, sob pena de nulidade da sentença por excesso de pronúncia.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"1 – Da nulidade da sentença por excesso de pronúncia:

De acordo com o artigo 609º do Código de Processo Civil a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.

A sentença recorrida, no ponto B do dispositivo, decidiu: “Declarar que a ré AA, tem direito a fazer suas as quantias que lhe foram entregues pela ré, A... SL, a título de sinal e princípio de pagamento”.

A Ré terminara a sua contestação com a seguinte solicitação: “Mais se requer, seja, ao invés, reconhecido o incumprimento contratual por parte da Autora e, consequentemente, o direito da ré fazer suas as quantias recebidas”.

A decisão acima transcrita fez, pois, proceder tal pedido.

Todavia, a Ré não anunciou em qualquer parte da sua contestação o expresso propósito de deduzir pedido reconvencional nem identificou o pedido formulado como tal.

Não foram, assim, cumpridos os ónus previstos no artigo 583º, número 1 do Código de Processo Civil para a dedução de reconvenção que são a sua expressa identificação e dedução em separado.

Nos termos do número 2 do mesmo preceito o reconvinte deve, ainda, indicar o valor da reconvenção. Não o fazendo a reconvenção não deixa de ser recebida, mas o reconvinte é convidado a indicar tal valor.

No caso, com exceção da pretensão expressa no final da contestação, não se mostra evidenciada em separado a pretensão da Ré deduzir reconvenção já que nem a individualizou nem afirmou expressamente a vontade de a deduzir, tampouco tendo indicado o respetivo valor.

Todavia, a Ré expressou claramente a pretensão de ver declarado o incumprimento do contrato pela Autora e o seu direito de fazer suas as quantias que dela recebeu.

Cumpre pois aferir se tal pretensão vai além da mera defesa – sumariada na pretensão final expressa na contestação de improcedência da ação e da sua absolvição do pedido -, já que a Ré claramente pede que lhe seja reconhecido o direito de fazer suas as quantias recebidas, ou se tal “pedido” é apenas aparente e mais não visa do que concluir a defesa no sentido de que nada tem a devolver à Autora, como por esta pedido.

Prevê o artigo 590º, número 3 do Código de Processo Civil que o juiz convida as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correção do vício, designadamente quando careçam dos requisitos legais.

No caso, concluindo-se que a Ré pretendeu, de facto, deduzir pedido autónomo, deveria ter tido lugar o convite ao aperfeiçoamento do seu articulado por forma a que a mesma sujeitasse a sua pretensão aos requisitos previstos no artigo 583º, números 1 e 2 e a omissão desse dever redundará em nulidade da decisão por falta de

Caso contrário, isto é, concluindo-se que a Ré não pretendeu deduzir pedido de reconhecimento de um direito, tal dever de convite ao aperfeiçoamento não se verifica e, não aceitando que dedução da pretensão em apreço como visava a formulação de pedido autónomo, reconvencional, não pode a sentença julgá-lo procedente ou improcedente, por não ser objeto da ação, o que redundará na nulidade da sentença por excesso de pronúncia nos termos do artigo 615º, número 1 e) do Código de Processo Civil.

De uma forma ou de outra, portanto, a decisão recorrida padecerá do vício de nulidade já que não pode o tribunal pronunciar-se sobre um pedido que não foi formulado autonomamente pela Ré sob a forma de reconvenção e a que a Autora não pode responder em réplica.

Tendo em conta a formulação da pretensão da Ré no final da contestação (“Mais se requer, seja, ao invés, reconhecido o incumprimento contratual por parte da Autora e, consequentemente, o direito da ré fazer suas as quantias recebidas”) deve concluir-se que foi intenção clara da mesma deduzir pedido expresso de reconhecimento de um direito – como, aliás, foi entendido pelo Tribunal a quo, que conheceu de tal pedido, declarando-o procedente.

Tal pretensão, de que o Tribunal reconhecesse um direito seu é distinta da mera defesa e consubstancia a dedução de um pedido contra a Autora nos termos previstos no artigo 266º, número 1 do Código de Processo Civil. Assim, aliás, terá entendido o Tribunal recorrido, pois tomou conhecimento de tal pedido no dispositivo da sentença.

Ora, tendo sido deduzido pedido contra a Autora, ou seja, pedido reconvencional, nos termos do artigo 266º, número 1 do Código de Processo Civil e não tendo o mesmo cumprido os requisitos previstos no artigo 583º, números 1 e 2 do mesmo Diploma, deveria ter sido convidada a Ré a aperfeiçoar a sua contestação/reconvenção, identificando expressamente a reconvenção e indicando o respetivo valor nos termos das disposições conjugadas dos artigos 583, número 2 e 593º, número 2 b) e número 3 do Código de Processo Civil.

Da violação desse dever decorreu, nomeadamente, a não apresentação de réplica, a que a Autora teria direito e que não pôde apresentar, vendo-se agora confrontada com uma decisão de condenação que não teve ensejo de contestar.

A prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento – seja para suprir irregularidades dos articulados, nomeadamente quando não careçam dos requisitos legais ou para suprir imprecisões ou insuficiências da decisão da matéria de facto -, não consubstancia o exercício de poder discricionário, sendo antes um dever dependente da verificação dos requisitos legais – os expressos no artigo 590º do Código de Processo Civil -, o que claramente resulta do número 4 do mesmo artigo quando ali se optou pela seguinte redação legal Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido”. (sublinhado nosso). Também o número 3 do mesmo artigo, que é aqui aplicável, não deixa margem para dúvidas sobre a obrigatoriedade da sua aplicação.

Ali se lê: “juiz convida as partes a suprir as irregularidade dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correção do vício, designadamente quando careçam dos requisitos legais (…)”

Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa defendem que  “a formulação conferida ao nº 4 do art. 590º pôs termos à discussão que vinha existindo, por referência ao art. 508º, nº 3, do CPC de 1961, acerca da natureza do despacho destinado ao aperfeiçoamento dos articulados, ficando agora (mais) claro o seu carácter vinculado, arredando a possibilidade de o juiz optar entre proferir ou não tal despacho. [Código de Processo Civil Anotado, Almedina, vol. I, pág. 681.]

A obrigatoriedade do convite à correção de deficiências dos articulados visa alcançar a justa composição do litígio e, no caso, a mesma só pode atingir-se se a pretensão reconvencional da Ré for corrigida e permitir o subsequente contraditório, por via de réplica. [...]

A omissão de prolação do convite ao aperfeiçoamento da reconvenção nos termos sobreditos acarreta a nulidade da sentença que se pronunciou sobre um pedido que, tendo embora sido efetivamente formulado, não foi admitido, tramitado, apreciado e decidido como pedido reconvencional,  do que decorreu a falta de contraditório sobre o mesmo e a falta de produção de prova sobre os factos que o suportam – desde logo não podia o tribunal dar como provado que a Autora “(…) a título de sinal e princípio de pagamento, procedeu ao pagamento à ré de um valor entre 17.500,00 e 30.000,00 euros.”. Não colhe, a este propósito, a afirmação do Tribunal recorrido de que “as partes divergem neste valor, o que, como veremos, não releva para decisão final”. Não pode, de facto, afirmar-se que a Ré tem direito a fazer sua uma determinada quantia sem se curar de apurar que quantia é essa o que tem desde logo reflexos na fixação do decaimento.

Como vem sido entendido e foi já objeto de várias decisões de tribunais superiores, a consequência da omissão do despacho de aperfeiçoamento que se evidencie na sentença porque nesta se profere decisão baseada em articulado cuja deficiência/imprecisão não foi alvo de convite a correção, não acarreta a nulidade do processado, mas a nulidade da decisão resultante de omissão de dever do juiz que é suscetível de influir a decisão da causa.
A falta de dedução de reconvenção na forma legalmente exigida levou, no caso, a que a mesma fosse alvo de decisão sem que a Autora tivesse podido replicar. [...]

No caso em apreço a omissão do convite ao aperfeiçoamento da contestação/reconvenção nos termos do artigo 590º, número 3 do Código de Processo Civil determinou desde logo que os autos tivessem prosseguido sem apresentação de réplica, muito embora a sentença tenha conhecido da pretensão da Ré deduzida na contestação como pedido autónomo, que é.

Donde, está também em causa a violação do direito ao contraditório, suscetível de influir na decisão da causa – cfr. artigo 3º, número 1 do Código de Processo Civil.

Não consta da ata da audiência prévia senão que “(…) o Mmº. Juiz advertiu os ilustres mandatários das partes nos termos do disposto nº 591º, nº 1, al). b) do CPC, tendo-lhes dado a palavra para alegações, os quais da mesma usaram. Sobre o sentido da decisão que pretendia proferir o Mmº Juiz ou sobre o que alegaram as partes nada se diz em ata e nem ocorreu gravação da audiência prévia, pelo que não consta dos autos que a Ré tenha sido convidada a retificar a reconvenção nos termos das disposições conjugadas dos artigos 590º, número 3 e 583º, números 1 e 2  do Código de Processo Civil ou que a Autora tenha sido convidada a responder a tal pedido reconvencional pelo que decisão do tribunal quando se pronuncia sobre o pedido em apreço consubstancia uma nulidade por excesso de pronúncia porquanto o tribunal conheceu de questões de que não podia, nessas circunstâncias, tomar conhecimento.

Por tudo o exposto deve anular-se a sentença por violação do dever de prolação de despacho de suprimento da irregularidade da contestação/reconvenção que acarretou a falta de apresentação de réplica e de produção de prova, devendo os autos regressar à primeira instância para que tal convite seja deduzido nos termos dos artigos 590º, número 3 e 583º, números 1 e 2 do Código de Processo Civil."

[MTS]