"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/03/2025

Jurisprudência 2024 (132)


Processos de jurisdição voluntária;
princípio da cooperação do tribunal


I. O sumário de RE 23/5/2024 (537/23.3T8BJA-A.E1) é o seguinte:

1 – O dever de gestão processual e o princípio da cooperação impõem que o tribunal auxilie a parte na obtenção da legalização de documento quando a parte invoque dificuldades na remoção de obstáculos que encontrou no cumprimento de um ónus que lhe foi imposto pelo próprio tribunal.

2 – Também na perspectiva da natureza do processo – jurisdição voluntária – e dos princípios que o regem, nomeadamente o princípio do inquisitório, impunha-se ao tribunal a quo providenciar pela obtenção do documento autenticado com apostilha, autenticação que o julgador julgou necessária para o prosseguimento da ação, em face da impossibilidade de a parte o conseguir obter pelos próprios meios e no interesse do menor (aqui representado pelo Ministério Público), interesse que coincide com uma rápida e eficaz definição do exercício das responsabilidades parentais relativamente a ele em face da separação dos seus progenitores.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Está em causa no presente recurso um despacho proferido pelo tribunal de primeira instância que indeferiu um requerimento do Ministério Público no sentido de se obter o assento de nascimento do menor em causa nos autos autenticado com apostila de Haia através da emissão de carta rogatória dirigida ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da Índia e a remeter por via diplomática (através do Ministério dos Negócios Estrangeiros).

Requerimento que surge após uma longa sequência de atos processuais que se iniciaram com um despacho proferido pelo julgador a quo no qual se entendeu que o assento de nascimento do menor que se encontra junto aos autos «não cumpre os requisitos legais de validade e eficácia na ordem jurídica portuguesa» pelo facto de não estar apostilado pela entidade competente o que é «imperativamente exigido pela Convenção Relativa à Supressão da Exigência da Legalização dos Atos Públicos Estrangeiros concluída em Haia em 5 de outubro de 1961» (sic).

O assento de nascimento em causa nos autos – um documento autêntico - proveio de um país estrangeiro que não da União Europeia, a saber, da Índia, o qual é aderente da Convenção de Haia de 5 de outubro de 1961; por conseguinte, a legalização de documentos provenientes daquele pais, quando exigível, é feita por apostilha nos termos do artigo 3.º daquela Convenção.

Pese embora o presente recurso não seja sobre a decisão que julgou da necessidade de legalização do referido documento, sempre se dirá o seguinte: o assento de nascimento do menor (…) destina-se a provar, no âmbito da ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais, nomeadamente, a data de nascimento do menor e a sua filiação; de acordo com o disposto no artigo 365.º do Código Civil [---], a legalização de documentos passados no estrangeiro não é indispensável para que eles façam prova em Portugal; apenas se houver fundadas dúvidas acerca da sua autenticidade, ou da autenticidade do reconhecimento, é que pode ser exigida a sua legalização, nos termos do artigo 440.º do CPC – neste sentido, vide Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º. 3.ª edição, pág. 259. Também em anotação ao artigo 365.º do Código Civil escreveram Pires de Lima e Antunes Varela [Código Civil Anotado, volume I, 4ª edição, Coimbra Editora, Limitada, pág. 324.]: «A obrigatoriedade da legalização dos documentos passados em país estrangeiro, na conformidade da lei desse país, foi, em princípio, abolida. Os tribunais, como quaisquer repartições públicas, devem, pois, atribuir a esses documentos todo o seu valor probatório, independentemente de legalização. Esta, porém, pode tornar-se obrigatória, se vierem a suscitar-se dúvidas acerca da sua autenticidade ou da autenticidade do reconhecimento». E na jurisprudência, veja-se por todos o Ac. RL de 01.02.2011, processo n.º 987/10.5YPLSB-1, consultável em www.dgsi.pt. No caso, não resulta dos autos que se tivessem suscitado dúvidas, nomeadamente ao julgador a quo, sobre a autenticidade do documento em causa no presente recurso, isto é, dúvidas sobre a autoria do mesmo (assinatura e poderes de quem o elaborou e assinou).

Como se assinalou supra o presente recurso não versa sobre a decisão que julgou ser necessária a legalização do assento de nascimento do menor, mas sobre a decisão que indeferiu o pedido de obtenção do referido documento autenticado com apostila de Haia através da emissão de carta rogatória dirigida ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da Índia e a remeter por via diplomática (através do Ministério dos Negócios Estrangeiros).

Pedido que foi apresentado pelo Ministério Público (que aqui representa o menor – artigo 4.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 68/2019, de 27/08) em face das dificuldades invocadas pela requerente da ação (mãe do menor) em providenciar, ela própria e pelos seus meios (que aparentemente não possui) pela obtenção da legalização do referido documento. Pedido que foi, ao que julgamos, realizado ao abrigo da Convenção de Haia de 18 de março de 1970 sobre Obtenção de Provas no Estrangeiro em Matéria Civil ou Comercial e da qual Portugal e a Índia são partes.

Nos termos do disposto no artigo 17.º/2, da Lei n.º 141/2015, de 8 de setembro que aprovou o regime geral do processo tutelar cível «compete especialmente ao Ministério Público instruir e decidir os processos de averiguação oficiosa, representar as crianças em juízo, intentando ações em seu nome, requerendo ações de regulação e a defesas dos seus direitos e usando de quaisquer meios judiciários necessários à defesa dos seus direitos e superior interesse, sem prejuízo das demais funções que estão atribuídas por lei».

Nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a partir da propositura da ação cabe ao juiz providenciar pelo andamento regular e célere do processo, sem prejuízo de preceitos especiais imporem às partes o ónus de impulso subsequente, mediante a prática de atos determinados cuja omissão impeça o prosseguimento da causa – assim, Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Coimbra Editora, 1996, pág. 123. É o chamado dever de gestão processual que tem como objetivo primacial uma rápida e justa resolução do litígio.

Dispõe também o artigo 7.º, n.ºs 1 e 4, do Código de Processo Civil, epigrafado Princípio da cooperação, que:

«1 – Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.
(…)
4 – Sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo» [...].

Diz-nos Paulo Pimenta [Processo Civil Declarativo, 3.ª Edição, Almedina, págs. 30-31.] que «o princípio da cooperação assume particular importância na conceção moderna do processo civil, que passa a ser visto como uma comunidade de trabalho, assim se apelando ao contributo de todos os intervenientes processuais na realização dos fins do processo e responsabilizando-os pelos resultados obtidos. A efetiva concretização deste princípio implica determinados deveres processuais (de cooperação), tanto para as partes e seus mandatários, como para o juiz, havendo todos de colaborar entre si, desse modo contribuindo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio, tal como estabelece o n.º 1 do artigo 7.º».

Também sobre o princípio da cooperação escreveu Teixeira de Sousa [Omissão do dever de cooperação do tribunal: que consequências?, in www.academia.edu] o seguinte: «O dever de cooperação do tribunal (trata-se, na realidade, de um poder-dever ou de um dever funcional) destina-se a incrementar a eficiência do processo, a assegurar a igualdade de oportunidades das partes e a promover a descoberta da verdade. Este dever de colaboração do tribunal é uma “forma de expressão de um processo civil dialógico”, no qual o tribunal, não só dirige ativamente o processo e providencia pelo seu andamento célere (cfr. artigo 6.º, n.º 1), como também dialoga com as partes e ainda participa da aquisição de matéria de facto e de direito para o proferimento da decisão. O dever de cooperação do tribunal prossegue uma finalidade estabelecida pela lei: esse dever destina-se, como se refere no artigo 7.º, n.º 1, a alcançar a justa composição do litígio, o que demonstra que o dever de cooperação está ao serviço da obtenção de uma justa composição do litígio. Isto significa que, estando o processo na disponibilidade das partes e, por isso, não podendo o tribunal substituir-se às partes na definição do seu objeto e na prática de atos processuais, o dever de cooperação tem essencialmente uma função assistencial das partes (mesmo da parte revel). Neste enquadramento, o dever se cooperação não pode ser confundido com um poder discricionário do tribunal: não se trata de atribuir ao tribunal um poder para o mesmo utilizar quando entender e como entender, mas de impor ao tribunal um dever de auxílio das partes para que seja atingida a justa composição do litígio». Adianta, ainda, este autor que o poder-dever de cooperação desdobra-se em vários deveres, a saber, o dever de inquisitoriedade (artigos 411.º e 986.º/2, do CPC), o dever de prevenção ou de advertência, o qual assume especial relevo nos processos subordinados à inquisitoriedade judiciária, como o são os processos de jurisdição voluntária (artigo 986.º, n.º 2), o dever de esclarecimento, o qual é indispensável para que o tribunal possa interpretar devidamente as alegações, os pedidos e as posições das partes, o dever de consulta das partes quando sempre que pretenda conhecer (oficiosamente) de matéria de facto ou de direito sobre a qual aquelas não tenham tido a possibilidade de se pronunciarem (cfr. artigo 3.º, n.º 3), visando este dever obviar às chamadas “decisões-surpresa”, isto é, às decisões com fundamentos de facto ou de direito inesperados para as partes e o dever de auxílio das partes, o qual implica que o tribunal auxilie as partes na remoção das dificuldades ao exercício dos seus direitos ou faculdades ou no cumprimento dos seus ónus ou deveres processuais (cfr. artigo 7.º, n.º 4). Em outro passo afirma o mesmo autor que: «Os deveres de inquisitoriedade, de prevenção, de esclarecimento, de consulta e de auxílio não contrariam o princípio da imparcialidade do juiz (cfr. artigos 115.º e 119.º) se essa colaboração tiver um carácter complementar ou corretor da atividade da parte. O juiz não perde a sua imparcialidade pela circunstância de colaborar com qualquer das partes na remoção de incoerências, obscuridades, ambiguidades ou lacunas nas suas peças, na aclaração das questões por elas suscitadas ou na concretização de um pedido genérico (cfr. artigo 556.º, n.º 1), mesmo que essa colaboração se traduza, na prática, na diminuição das hipóteses de ganho de causa pela contra-parte. O que é indispensável é que a colaboração do juiz seja realizada sem quebra da sua imparcialidade, isto é, seja fornecida a ambas as partes, em caso de necessidade, de forma igual. Aliás, o exercício da função assistencial do tribunal é indispensável para que o juiz tome uma decisão com conhecimento de todos os dados relevantes. (…) O dever de cooperação cumpre uma função assistencial das partes, pois que visa garantir que estas exercem adequadamente os poderes correspondentes ao princípio dispositivo, tanto no que respeita à matéria de facto e de direito, como no que se refere ao pedido. (…) Da função assistencial que é inerente ao dever de cooperação do tribunal decorrem ainda algumas outras consequências. Assim, são irrelevantes os motivos pelos quais a parte exerceu deficientemente ou mesmo omitiu o exercício de um desses poderes: o tribunal não tem de se preocupar com a circunstância de essa deficiência ou omissão se ficar a dever a uma eventual negligência da parte, dado que, mesmo que esta exista, o tribunal tem o dever de exercer a sua função assistencial. Dessa função decorre ainda que o dever de cooperação do tribunal deve ser exercido perante qualquer das partes, sem atender se, no processo pendente, ela é uma parte “forte” ou uma parte “fraca”. Também se pode perguntar se o dever de colaboração do tribunal deve ser observado quando a parte esteja representada por advogado. Deve entender-se que a representação por advogado não dispensa o tribunal de colaborar com as partes, embora a ausência dessa representação deva aumentar a diligência do tribunal no cumprimento do dever de colaboração. (…)» [...]

Revertendo agora ao caso em apreço, julgamos que decorre do exposto supra que o despacho sob recurso viola o dever de cooperação do tribunal enquanto dever de colaborar com a parte na remoção de obstáculos que aquela encontrou no cumprimento de um ónus que lhe foi imposto pelo próprio tribunal, a saber, o de juntar aos autos uma certidão do assento de nascimento do filho autenticada com a apostilha de Haia, dever, como dissemos, expressamente consagrado no artigo 7.º, n.º 4, do Código de Processo Civil. O tribunal tem o dever de auxiliar a parte na obtenção da legalização do documento tanto mais que não é sequer posto em causa nos autos que a mãe do menor não consegue providenciar pela mesmas através de meios próprios. E negando esse auxílio o tribunal a quo não só violou aquele dever como concorreu para uma menor eficiência da resposta judiciária à pretensão da requerente, ou seja, a uma decisão de mérito em tempo razoável como lhe impunha também o dever de gestão processual consagrado no artigo 6.º/1, do Código de Processo Civil. Ainda numa outra perspetiva dir-se-á que a presente ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais tem natureza de jurisdição voluntária (artigo 12.º da Lei n.º 141/2015, de 8 de setembro, que aprovou o regime geral do processo tutelar cível), sendo-lhe, por isso, aplicável o disposto nos artigos 986.º a 988.º do Código de Processo Civil. Logo, as decisões nela proferidas são tomadas segundo critérios de conveniência e oportunidade, o que significa que neste processo as decisões podem ser fundamentadas num critério não normativo. Consequentemente, rege aqui o princípio do inquisitório quanto ao objeto do processo, o que significa que o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes, só sendo admitidas as provas que o juiz considere necessárias (artigo 986.º/2, do CPC). Assim sendo, vistas as coisas na perspetiva da natureza do processo em causa e dos princípios que o regem, impunha-se ao tribunal a quo providenciar pela obtenção do documento autenticado com apostilha, autenticação que o julgador julgou necessária para o prosseguimento da ação, em face da impossibilidade de a parte (mãe do menor e requerente dos autos) o conseguir obter pelos próprios meios e no interesse do menor (aqui representado pelo Ministério Público), interesse que coincide com uma rápida e eficaz definição do exercício das responsabilidades parentais relativamente a ele em face da separação dos seus progenitores."

[MTS]