"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/03/2025

Jurisprudência 2024 (134)


Competência internacional;
direito interno; Reg. 1215/2012*


1. O sumário de RP 3/6/2024 (1155/23.1T8AVR.P1) é o seguinte:

I - A alínea c) do artigo 62º do Código de Processo Civil consagra um dos princípios que rege a atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses - o princípio da necessidade -, e a sua aplicação depende da alegação e verificação de que o autor tem dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro ou de que o seu direito só pode tornar-se efetivo por meio de ação proposta em território português. Não tendo sido alegado na petição inicial qualquer facto que sustente qualquer uma dessas hipóteses normativas, não pode o Recorrente pretender a aplicação da referida alínea c) do artigo 62º do Código de Processo Civil.

II - A qualificação jurídica que o autor faça da sua pretensão é irrelevante para a fixação da competência do tribunal, que não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação do direito aplicável, devendo a decisão a proferir ter por base o pedido e a causa de pedir invocados, entendendo-se esta como o facto ou conjunto de factos que servem de fundamento ao efeito jurídico pretendido.

III - Tendo o Réu residência em Portugal e tendo o Autor alegado, como fundamento da ação, a celebração com aquele de contratos pelos quais o mesmo estava obrigado a entregar-lhe determinadas quantias em dinheiro, é irrelevante se tais negócios foram celebrados e executados noutro país e se a obrigação pecuniária foi fixada em moeda estrangeira, suportando-se a competência internacional dos tribunais portugueses na remissão que o artigo 62º a) do Código de Processo Civil faz para o artigo 71º, número 1 do mesmo Diploma.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Na falta de regulação expressa em instrumentos internacionais, ou de fixação da competência por convenção das partes, o artigo 59º do Código de Processo Civil determina a competência internacional dos tribunais portugueses “(…) quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º, ou quando as partes lhe tenham atribuído competência”.

No caso não existe qualquer tratado ou acordo internacional aplicável e as partes não alegaram a celebração de qualquer convenção com vista à fixação da competência internacional.

A decisão recorrida estribou-se na seguinte afirmação: “Nos termos do art. 59.º do CPC, por regra, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando ocorram os fatores de conexão dos arts. 62.º e 63.º do CPC ou quando lhes seja atribuída convencionalmente competência para dirimir o conflito nos termos do art. 94.º do CPC.

Não foi alegada que tenha sido convencionada esta competência. A aplicação do art. 63.º do CPC está excluída, por não estarmos no domínio dos direitos reais. Também não ocorre qualquer dos fatores de competência do art. 62.º do CPC.”

Tal afirmação, contudo, omite a análise dos concretos fatores de atribuição de competência a que alude o artigo 62º do Código de Processo Civil cuja aplicação foi afastada sem apreciação efetiva do seu teor, que ora deve sere feita.
Estipula o preceito em apreço:

“Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:

a) Quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;

b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram;

c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.”

O Recorrente alega em sede de recurso que os factos que servem de causa de pedir foram praticados em diferentes países (Equador, Estados Unidos e Venezuela) e que o “facto que integra a causa de pedir tem única e exclusivamente ligação à Venezuela, nacionalidade de ambas as partes e lugar de residência do autor e do réu à data dos factos. Assim sendo, os tribunais competentes seriam os tribunais Venezuelanos.

Contudo, o direito do autor não pode ser exercido, pelo mesmo, naquele território em virtude da conjuntura do sistema judicial.

Destarte, a Venezuela tem vindo a passar por uma longa e difícil crise política que tem resultado em dificuldades evidentes no acesso a uma justiça efetiva, que permita aos cidadãos daquele país efetivarem os seus direitos.”.

Defende, assim, a aplicação da alínea c) do artigo 62º do Código de Processo Civil acima transcrito.

Apenas em sede de recurso, contudo, foram alegados os factos em que o Autor pretende suportar a aplicabilidade da referida alínea c) do artigo 62º do Código de Processo Civil. [...]

O argumento ora esgrimido pelo Recorrente suporta-se na alegação de dificuldades de acesso/funcionamento do sistema judicial Venezuelano que não só não estão demonstradas como não foram alegadas no momento próprio: aquando da apresentação da petição inicial.

alínea c) do artigo 62º do Código de Processo Civil consagra um dos princípios que rege a atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses - o princípio da necessidade -, tem raiz histórica na alínea d) do artigo 65º Código de Processo Civil de 1939 e depende da verificação de que o Autor tem dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro – neste caso na Venezuela, país de que ambas as partes são naturais -, ou de que o seu direito só pode tornar-se efetivo por meio de ação proposta em território português. Não tendo sido alegado qualquer facto que sustente qualquer uma dessas hipóteses, improcede a pretensão do Recorrente de ver aplicada a referida alínea c) do artigo 62º do Código de Processo Civil.

Da descrição factual que o Autor fez em sede de petição inicial fica, por igual, absolutamente afastada a aplicabilidade da alínea b) do mesmo preceito que estipula a competência internacional do tribunal quando o facto ou algum dos factos que serve de causa de pedir tenha sido praticado em Portugal. É que o Autor descreve vários negócios celebrados com o Réu e atos alegadamente ilícitos praticados por este na negociação e execução desses negócios nunca alegando que os mesmos ocorreram em Portugal, antes os situando na Venezuela e tendo conexão, ainda, com os Estados Unidos da América e com o Equador.

Resta aferir da aplicabilidade da alínea a) do referido artigo 62º, uma vez que muito embora a sua aplicação não seja defendida em sede de recurso, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito como decorre do disposto no artigo 5º número 3 do Código de Processo Civil.

Este mesmo preceito deve estar presente quando se apreciem os factos alegados na petição inicial para apurar se os mesmos justificariam a competência do tribunal recorrido em razão do território, critério para que remete a alínea a) do artigo 62º do mesmo Diploma.

É que a competência do tribunal deve aferir-se em função da forma como o Autor configura a ação, isto é, da causa de pedir e do pedido, independentemente da qualificação jurídica da causa que o mesmo faça.

A alínea a) do artigo 62 do Código de Processo Civil consagra um dos critérios de fixação de competência internacional, que é o da coincidência “(…) pelo qual se determina a competência internacional dos tribunais portugueses sempre que a ação possa ser proposta em Portugal segundo as regras específicas de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa” [José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 4ª edição, página 154.]

É irrelevante para a apreciação da competência do Tribunal a qualificação jurídica que o Autor fez na petição inicial quando ali esgrime que a responsabilidade do Réu é extracontratual ou, subsidiariamente, que deve decorrer da aplicação do instituto do enriquecimento sem causa.

A causa de pedir da ação não se define pela qualificação jurídica que dela faz o autor, mas pelo conjunto de factos que alega com vista à procedência da sua pretensão [---] Cabe ao Tribunal decidir, em face dos factos que foram alegados e se venham a provar, qual o enquadramento jurídico da questão que lhe é posta.

Para conhecimento da exceção de incompetência em razão da matéria deve partir-se, assim, da relação jurídica que está controvertida.

Neste caso, a Autora alega que em virtude de negócio celebrado com o Réu este se apropriou:

- de $ 27 467, 50 provenientes da parte dos lucros que cabia ao Réu entregar ao Autor pela venda de automóveis na Venezuela, valor que o mesmo aceitou que aquele investisse com o fito de aumentar o seu valor e lho devolver;

- de $ 82 509 que também lhe entregou com vista a que ele investisse tal valor e lho devolvesse;

- de $ 22 704 que o Réu recebeu de clientes pela venda de mercadoria que ambos adquiriram no Equador para exportar e comercializar na Venezuela; e, ainda,

- alega que desconhece se o mesmo já recebeu o valor de $ 33 756 de mercadorias vendidas e não pagas já que, desde outubro de 2021, o Réu deixou de lhe prestar contas do negócio em comum que mantinham.

Pede que o Réu seja condenando a devolver-lhe a soma destas parcelas alegando que o mesmo, entretanto, se mudou para Portugal e que teve e mantém a intenção de se apropriar dessas quantias eximindo-se da responsabilidade de as entregar ao Autor.

Pede ainda o ressarcimento dos danos não patrimoniais que diz ter sofrido com estas condutas, liquidando tal indemnização em 10 000 €

Do que vai dito resulta manifesto que a obrigação que o Autor imputa ao Réu, de pagamento da quantia total de $ 166 472, 50 que corresponde ao valor de 154 221, 79 €, decorre do incumprimento, por banda deste, do que ambos acordaram em diferentes e sucessivos negócios entre eles celebrados. Estão descritos na petição inicial os acordos pelos quais o Réu estaria obrigado a devolver/entregar tais quantias ao Autor.

Ora, nos termos do artigo 71º, número 1, do Código de Processo Civil, a ação destinada ao cumprimento de obrigação deve ser proposta no domicílio do Réu. Tal norma serve também para a definição da competência internacional dos tribunais portugueses por força da remissão contida no artigo 62º a) do mesmo Diploma [Neste sentido, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-07-2017, Processo 531/15.8T8LRA.C1.S2].

Independentemente de o Autor entender que o não cumprimento dessas obrigações contratuais decorreu de intenção premeditada e de posterior conduta do Réu que qualifica como criminal por consubstanciar crime de burla, a eventual fonte do direito do Autor à devolução das referidas quantias encontra-se nos contratos que celebrou com o Réu e pelos quais, segundo diz, este estaria obrigado a devolver-lhe/entregar-lhe tais montantes – cfr. artigos 397º e 405º do Código Civil. É, para o caso, irrelevante a qualificação jurídica feita pelo Autor.

Como tal, o Tribunal da área da residência do Réu é internacionalmente competente para a ação, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 62 a) e 701º, número 1 do Código de Processo Civil sendo indiferente para o apuramento dessa competência se os negócios de que decorreu a obrigação de entrega dessas quantias foram celebrados e executados noutro país e se as obrigações pecuniárias deles decorrentes foram fixadas em moeda estrangeira como foi ponderado na decisão recorrida, mas que para o caso não releva."


*3. [Comentário] a) Salva toda a devida consideração, o acórdão padece de um erro de direito.

Afirma-se no acórdão que "no caso não existe qualquer tratado ou acordo internacional aplicável e as partes não alegaram a celebração de qualquer convenção com vista à fixação da competência internacional". Trata-se de uma afirmação que não é verdadeira, dado que, estando em causa a competência internacional dos tribunais portugueses, tendo o demandado domicílio em Aveiro e referindo-se a causa a matéria civil ou comercial, teria de se aplicar o Reg. 1215/2012 (art. 1.º e 4.º, n.º 1, Reg. 1215/2012).

Portanto, toda a argumentação da RP sobre a aplicação do direito interno português é totalmente deslocada. Aliás, a solução do caso é muito simples: tendo o demandado domicílio em Portugal, podia ser demandado no tribunal desse mesmo domicílio (art. 4.º, n.º 1, Reg. 1215/2012). Nem sequer importava discutir a aplicabilidade do disposto no art. 7.º, n.º 1, Reg. 1215/2012, dado que os critérios especiais do Reg. 1215/2012 são sempre alternativos ao critério geral enunciado no seu art. 4.º, n.º 1 (art. 5.º, n.º 1, Reg. 1215/2012).

b) A latere: não se transcreveu a nota 3, dado que na mesma há uma confusão entre autor e obra.

MTS