1. O
controlo pela Relação da decisão relativa à matéria de facto proferida pela 1.ª
instância continua a suscitar algumas dificuldades na jurisprudência. Em RP
5/5/2014 entendeu-se que, na reapreciação da matéria de facto, à Relação
apenas cabe um papel residual, limitado ao controlo e eventual censura dos
casos de flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e
a decisão. De acordo com esta orientação jurisprudencial, as diferenças entre a
1.ª instância – que beneficia da imediação e da oralidade – e a Relação – que
está privada dessa mesma imediação e oralidade – só possibilitam um controlo
residual pela 2.ª instância da decisão sobre a matéria de facto.
Há nesta
orientação algo de aceitável, mas também muito de criticável.
2. Aceitável
é, evidentemente, a importância que é concedida à oralidade e à imediação. Há
um século atrás, a consagração da oralidade (e da consequente imediação que ela
possibilita) constituía um anseio generalizado dos reformadores do processo
civil. A importância da conquista desvaneceu-se com o decorrer do tempo, mas basta
verificar a evolução representada pela passagem de um processo escrito para um
processo oral para se poder aquilatar a relevância da evolução então verificada.
Isto dito,
não há que sobrevalorizar as diferenças entre a 1.ª instância e a Relação
quanto à apreciação da prova. As diferenças são apenas entre a “oralidade-imediação”
de que a 1.ª instância beneficia e a “oralidade-mediação” com que a 2.ª
instância tem de operar. O actual sistema recursal procura mitigar os
inconvenientes da não presença do tribunal de recurso no momento da produção da
prova na 1.ª instância, assegurando que este tribunal tem ao seu dispor a reprodução
fonográfica daquela produção. A reprodução não equivale nem substitui a
assistência à produção da prova, mas também não tem os inconvenientes da
mediação imposta pela escrita.
Não é,
naturalmente, a mesma coisa julgar “ao vivo” e julgar através de reproduções
fonográficas. No entanto, estas reproduções não estão de tal forma afastadas da
oralidade original que se imponha concluir que a Relação está impossibilitada
de formar uma convicção sobre a prova produzida e que apenas a 1.ª instância
pode formar uma livre apreciação sobre essa prova. Não sendo a mesma coisa, também
não é algo de tão radicalmente distinto que impossibilite a Relação de formar
uma convicção própria sobre a prova produzida.
3. Perante
o exposto, fica claro o que de criticável há no acórdão em análise. Há
diferenças entre as condições em que a 1.ª instância e a Relação podem apreciar
a prova produzida: apesar de haver sempre oralidade, a 1.ª instância beneficia
ainda da imediação. Não é irrelevante, mas não é impossibilitante da formação
de uma convicção própria pela Relação.
Ao
contrário, o acórdão em análise entende que a livre apreciação da prova só é
possível na 1.ª instância. Mais: o acórdão até parece pressupor uma
incompatibilidade entre a garantia do duplo grau de jurisdição e a livre
apreciação da prova, ao afirmar que aquela garantia não pode “subverter” esta
última apreciação. Neste ponto, o acórdão assume uma posição contra legem. O sistema legal, ao
consagrar o duplo grau de jurisdição em matéria de facto, admite a revogação da
decisão recorrida pela Relação e, portanto, a “subversão” da livre apreciação da
1.ª instância pelo duplo grau de jurisdição.
Assim, o
sistema exige que a Relação procure formar uma convicção sobre a prova
produzida na 1.ª instância, naturalmente dentro dos condicionalismos de “oralidade-mediação”
em que tem de julgar. Esta circunstância pode justificar algum benefício da
dúvida concedido ao julgamento realizado pela 1.ª instância, quando a convicção
formada pela 2.ª instância seja suficiente apenas para suscitar dúvidas sobre a
correcção da decisão recorrida; não pode é levar a concluir que só há erro de
julgamento se houver uma flagrante desconformidade entre os elementos de prova
e a decisão: esse erro verifica-se logo que a convicção formada pela Relação
não coincida com a convicção da 1.ª instância.
4. Em suma:
perante dúvidas da 2.ª instância, é admissível a confirmação da decisão
recorrida; perante certezas da 2.ª instância, impõe-se a revogação daquela
decisão.
MTS