"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/05/2014

Livre apreciação e controlo da prova pela Relação




1. O controlo pela Relação da decisão relativa à matéria de facto proferida pela 1.ª instância continua a suscitar algumas dificuldades na jurisprudência. Em RP 5/5/2014 entendeu-se que, na reapreciação da matéria de facto, à Relação apenas cabe um papel residual, limitado ao controlo e eventual censura dos casos de flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão. De acordo com esta orientação jurisprudencial, as diferenças entre a 1.ª instância – que beneficia da imediação e da oralidade – e a Relação – que está privada dessa mesma imediação e oralidade – só possibilitam um controlo residual pela 2.ª instância da decisão sobre a matéria de facto.

Há nesta orientação algo de aceitável, mas também muito de criticável.

2. Aceitável é, evidentemente, a importância que é concedida à oralidade e à imediação. Há um século atrás, a consagração da oralidade (e da consequente imediação que ela possibilita) constituía um anseio generalizado dos reformadores do processo civil. A importância da conquista desvaneceu-se com o decorrer do tempo, mas basta verificar a evolução representada pela passagem de um processo escrito para um processo oral para se poder aquilatar a relevância da evolução então verificada.

Isto dito, não há que sobrevalorizar as diferenças entre a 1.ª instância e a Relação quanto à apreciação da prova. As diferenças são apenas entre a “oralidade-imediação” de que a 1.ª instância beneficia e a “oralidade-mediação” com que a 2.ª instância tem de operar. O actual sistema recursal procura mitigar os inconvenientes da não presença do tribunal de recurso no momento da produção da prova na 1.ª instância, assegurando que este tribunal tem ao seu dispor a reprodução fonográfica daquela produção. A reprodução não equivale nem substitui a assistência à produção da prova, mas também não tem os inconvenientes da mediação imposta pela escrita.

Não é, naturalmente, a mesma coisa julgar “ao vivo” e julgar através de reproduções fonográficas. No entanto, estas reproduções não estão de tal forma afastadas da oralidade original que se imponha concluir que a Relação está impossibilitada de formar uma convicção sobre a prova produzida e que apenas a 1.ª instância pode formar uma livre apreciação sobre essa prova. Não sendo a mesma coisa, também não é algo de tão radicalmente distinto que impossibilite a Relação de formar uma convicção própria sobre a prova produzida.


3. Perante o exposto, fica claro o que de criticável há no acórdão em análise. Há diferenças entre as condições em que a 1.ª instância e a Relação podem apreciar a prova produzida: apesar de haver sempre oralidade, a 1.ª instância beneficia ainda da imediação. Não é irrelevante, mas não é impossibilitante da formação de uma convicção própria pela Relação.

Ao contrário, o acórdão em análise entende que a livre apreciação da prova só é possível na 1.ª instância. Mais: o acórdão até parece pressupor uma incompatibilidade entre a garantia do duplo grau de jurisdição e a livre apreciação da prova, ao afirmar que aquela garantia não pode “subverter” esta última apreciação. Neste ponto, o acórdão assume uma posição contra legem. O sistema legal, ao consagrar o duplo grau de jurisdição em matéria de facto, admite a revogação da decisão recorrida pela Relação e, portanto, a “subversão” da livre apreciação da 1.ª instância pelo duplo grau de jurisdição.

Assim, o sistema exige que a Relação procure formar uma convicção sobre a prova produzida na 1.ª instância, naturalmente dentro dos condicionalismos de “oralidade-mediação” em que tem de julgar. Esta circunstância pode justificar algum benefício da dúvida concedido ao julgamento realizado pela 1.ª instância, quando a convicção formada pela 2.ª instância seja suficiente apenas para suscitar dúvidas sobre a correcção da decisão recorrida; não pode é levar a concluir que só há erro de julgamento se houver uma flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão: esse erro verifica-se logo que a convicção formada pela Relação não coincida com a convicção da 1.ª instância.

4. Em suma: perante dúvidas da 2.ª instância, é admissível a confirmação da decisão recorrida; perante certezas da 2.ª instância, impõe-se a revogação daquela decisão.


MTS