"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/05/2014

Renovação da prova na Relação (2)


1. O comentário de hoje do Dr. Paulo Ramos de Faria chama a atenção para um ponto relevante: o disposto no art. 662.º, n.º 2, al. a), nCPC, relativo à renovação dos meios de prova na 2.ª instância, é expressão da importância da imediação, dado que a Relação, perante as dúvidas sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do depoimento, procura obter um depoimento directo da testemunha ou da parte. Se se quiser aceitar as expressões, a Relação pretende substituir uma "oralidade-mediação" que lhe aparece como duvidosa por uma "oralidade-imediação" que lhe possa esclarecer as dúvidas.

Esta conclusão não invalida -- antes pelo contrário -- que a Relação tenha de procurar formar a sua convicção sobre a prova produzida na 1.ª instância. Como parece claro, a Relação só pode ter dúvidas sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do depoimento se procurar formar uma convicção sobre ele. Afinal, são aquelas dúvidas que obstam a que a Relação forme, em qualquer dos sentidos possíveis (provado/não provado), qualquer convicção sobre a prova produzida na 1.ª instância.

Neste sentido, o disposto no art. 662.º, n.º 2, al. a), nCPC constitui mais um argumento a favor de que a Relação deve procurar formar uma convicção sobre a prova proveniente da 1.ª instância. O argumento não tem nada de surpreendente, dado que, ao contrário do que é entendido no já referido RP 5/5/2014, o sistema de controlo da decisão da matéria de facto assenta na natural possibilidade de a Relação vir a formar uma convicção incompatível com aquela que a 1.ª instância formou. Não -- note-se -- em casos excepcionais, mas em qualquer caso em que a Relação seja chamada a controlar o julgamento da matéria de facto realizado na 1.ª instância.

2. Apenas uma observação suplementar sobre o sentido do art. 662.º, n.º 2, al. a), CPC. Quando se associa dúvidas e prova, pode ser-se tentado a concluir que se verifica uma situação de non liquet e a procurar ultrapassar esse non liquet através do critério que consta do art. 414.º nCPC (ou de qualquer outro critério especial consagrado na lei). Importa esclarecer que as dúvidas referidas no art. 662.º, n.º 2, al. a), nCPC não são dúvidas sobre a prova, mas antes dúvidas sobre o meio de prova, pelo que nada têm a ver com o critério do art. 414.º nCPC. Consequentemente, o disposto no art. 662.º, n.º 2, al. a), nCPC também não pode ser considerado incompatível com o estabelecido no art. 414.º nCPC.

As dúvidas da Relação não são sobre a prova do facto, mas antes dúvidas sobre o depoente ou sobre depoimento que pode conduzir à prova do facto. São, se assim se pode dizer, dúvidas prévias à eventual dúvida sobre a prova do facto. Antes de ter dúvidas sobre se o facto está provado é preciso estar ciente da credibilidade ou não credibilidade do depoente ou perceber o sentido do depoimento. Se há dúvidas sobre essa credibilidade ou sobre esse sentido, há dúvidas sobre a própria valoração a dar ao meio de prova. É a esta situação que se refere o art. 662.º, n.º 2, al. a), nCPC.


MTS