"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/05/2014

Declarações de parte e "factos-surpresa"




1. Durante a Sessão Científica do 4.º Encontro de Processualistas levantou-se uma questão muito interessante. A questão decorre da conjugação da possibilidade de serem adquiridos factos complementares que decorram da instrução da causa (art. 5.º, n.º 2, al. b), nCPC) com a permissão da prova por declarações de parte (art. 466.º nCPC) e enuncia-se da seguinte forma: podem considerar-se adquiridos para o processo factos complementares alegados pela parte na declaração realizada na audiência final?

O problema não é totalmente novo, mas tem agora uma dimensão que não tinha no aCPC. No aCPC era possível a aquisição de factos complementares na instrução da causa (cf. art. 264.º, n.º 3, aCPC); no entanto, esses factos ou resultavam da confissão da parte (isto é, eram factos desfavoráveis à parte) ou do depoimento de terceiros; agora, a possibilidade de a parte prestar declarações implica que também podem ser adquiridos factos favoráveis à própria parte declarante (naturalmente, se o tribunal ficar convencido da sua veracidade).

O problema que este regime levanta é o de saber se ele não favorece os “factos- surpresa”, isto é, factos que a parte não alega nos articulados com o propósito de vir a surpreender a contraparte com a sua alegação na audiência final.


2. Não é difícil defender que a parte que, propositadamente, guarda a alegação de factos para surpreender a contraparte com a sua alegação posterior faz um uso manifestamente reprovável do processo e, por isso, pode ser condenada como litigante de má fé (art. 542.º, n.º 1 e 2, al. d), nCPC). O problema é que – poderia dizer-se – as consequências da litigância de má fé são o pagamento de uma multa ou de uma indemnização à parte contrária (cf. art. 542.º, n.º 1, nCPC), e não, como deveria impor-se, a preclusão da alegação do facto.

Alguma doutrina portuguesa tem vindo a trabalhar, não só com a litigância de má fé, mas também com o abuso de direito (cf. P. de Albuquerque, Responsabilidade Processual por Litigância de Má Fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de Actos Praticados no Processo (2006); Costa e Silva, A Litigância de Má Fé (2008); Menezes Cordeiro, Litigância de Má-Fé, Abuso do Direito de Ação e culpa in agendo (2014)). 

Talvez se pensasse em aplicar o regime do abuso de direito à situação em análise, procurando retirar desse abuso a preclusão do facto não atempadamente alegado. Há, no entanto, algumas dificuldades. Compulsadas as situações em que os referidos autores consideram aplicável o regime do abuso de direito, verifica-se que são realmente tratadas situações de abuso através do processo, não de abuso do processo. Por exemplo: verifica-se uma situação de venire contra factum proprium se a parte invoca a incompetência do tribunal arbitral com base na invalidade da convenção arbitral e se, depois de proposta a acção no tribunal judicial, alega a incompetência deste com base na referida convenção.

A isto acresce uma outra dificuldade: não há dúvida de que a parte que esconde um facto com o objectivo de o alegar num momento que considera mais oportuno actua de má fé, ou seja, preenche o tipo da litigância de má fé e desencadeia as consequências estabelecidas no art. 542.º, n.º 1, nCPC; sem nenhum indício de uma cumulação de regras, não parece possível que se tente subsumir a mesma situação a uma outra qualquer regra (abuso de direito) para procurar retirar uma outra consequência jurídica (preclusão da alegação do facto).


3. Sob um ponto de vista doutrinário, talvez seja mais prometedora uma outra via. Em vez de procurar construir um regime paralelo ao da litigância de má fé, talvez seja melhor procurar esgotar as potencialidades do regime desta litigância. O que se pergunta é então se é possível extrair do regime da litigância de má fé que a parte não pode retirar nenhuns benefícios da sua conduta ilícita.

Existem dois preceitos que demonstram que, além da condenação da parte como litigante de má fé, o tribunal também obsta ao objectivo pretendido pela parte. Um deles é o art. 107.º nCPC (o tribunal que reconhece a tentativa ilícita de desaforamento condena o autor como litigante de má fé e declara-se incompetente); o outro é o art. 272.º, n.º 2, nCPC (o tribunal que conclui que uma outra acção foi proposta só para obter a suspensão da acção nele pendente deve recusar-se a decretar a suspensão da instância). 

Para além disto, é evidente que, se a parte omitiu um facto relevante para a decisão da causa, a consequência é a sua condenação como litigante de má fé (art. 542.º, n.º 2, al. b), nCPC) e a consideração do facto omitido para a decisão da causa.

Sendo assim, talvez se possa concluir que a parte que não alegou atempadamente o facto e que usou a sua declaração para surpreender a contraparte e dificultar a descoberta da verdade sobre ele pode ser sancionada não só com a sua condenação como litigante de má fé, mas também com a preclusão da alegação do facto. 


MTS