1. Durante
a Sessão Científica do 4.º Encontro de Processualistas levantou-se uma questão
muito interessante. A questão decorre da conjugação da possibilidade de serem
adquiridos factos complementares que decorram da instrução da causa (art. 5.º,
n.º 2, al. b), nCPC) com a permissão da prova por declarações de parte (art.
466.º nCPC) e enuncia-se da seguinte forma: podem considerar-se adquiridos para
o processo factos complementares alegados pela parte na declaração
realizada na audiência final?
O problema
não é totalmente novo, mas tem agora uma dimensão que não tinha no aCPC. No
aCPC era possível a aquisição de factos complementares na instrução da causa
(cf. art. 264.º, n.º 3, aCPC); no entanto, esses factos ou resultavam da confissão da
parte (isto é, eram factos desfavoráveis à parte) ou do depoimento de
terceiros; agora, a possibilidade de a parte prestar declarações implica que
também podem ser adquiridos factos favoráveis à própria parte declarante (naturalmente,
se o tribunal ficar convencido da sua veracidade).
O problema
que este regime levanta é o de saber se ele não favorece os “factos- surpresa”,
isto é, factos que a parte não alega nos articulados com o propósito de vir a
surpreender a contraparte com a sua alegação na audiência final.
2. Não é difícil
defender que a parte que, propositadamente, guarda a alegação de factos para
surpreender a contraparte com a sua alegação posterior faz um uso
manifestamente reprovável do processo e, por isso, pode ser condenada como litigante
de má fé (art. 542.º, n.º 1 e 2, al. d), nCPC). O problema é que – poderia
dizer-se – as consequências da litigância de má fé são o pagamento de uma multa
ou de uma indemnização à parte contrária (cf. art. 542.º, n.º 1, nCPC), e não,
como deveria impor-se, a preclusão da alegação do facto.
Alguma
doutrina portuguesa tem vindo a trabalhar, não só com a litigância de má fé,
mas também com o abuso de direito (cf. P.
de Albuquerque, Responsabilidade Processual por Litigância de Má Fé, Abuso
de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de Actos Praticados no Processo (2006);
Costa e Silva, A Litigância de Má Fé
(2008); Menezes Cordeiro, Litigância
de Má-Fé, Abuso do Direito de Ação e culpa in agendo (2014)).
Talvez se
pensasse em aplicar o regime do abuso de direito à situação em análise, procurando
retirar desse abuso a preclusão do facto não atempadamente alegado. Há, no
entanto, algumas dificuldades. Compulsadas as situações em que os referidos
autores consideram aplicável o regime do abuso de direito,
verifica-se que são realmente tratadas situações de abuso através do processo, não de abuso do processo. Por exemplo: verifica-se uma situação de venire contra factum proprium se a parte
invoca a incompetência do tribunal arbitral com base na invalidade da convenção
arbitral e se, depois de proposta a acção no tribunal judicial, alega a
incompetência deste com base na referida convenção.
A isto acresce
uma outra dificuldade: não há dúvida de que a parte que esconde um facto com o
objectivo de o alegar num momento que considera mais oportuno actua de má fé,
ou seja, preenche o tipo da litigância de má fé e desencadeia as consequências
estabelecidas no art. 542.º, n.º 1, nCPC; sem nenhum indício de uma cumulação
de regras, não parece possível que se tente subsumir a mesma situação a uma
outra qualquer regra (abuso de direito) para procurar retirar uma outra
consequência jurídica (preclusão da alegação do facto).
3. Sob um
ponto de vista doutrinário, talvez seja mais prometedora uma outra via. Em vez
de procurar construir um regime paralelo ao da litigância de má fé, talvez seja
melhor procurar esgotar as potencialidades do regime desta litigância. O que se
pergunta é então se é possível extrair do regime da litigância de má fé que a
parte não pode retirar nenhuns benefícios da sua conduta ilícita.
Existem
dois preceitos que demonstram que, além da condenação da parte como litigante
de má fé, o tribunal também obsta ao objectivo pretendido pela parte. Um deles
é o art. 107.º nCPC (o tribunal que reconhece a tentativa ilícita de
desaforamento condena o autor como litigante de má fé e declara-se incompetente);
o outro é o art. 272.º, n.º 2, nCPC (o tribunal que conclui que uma outra
acção foi proposta só para obter a suspensão da acção nele pendente deve
recusar-se a decretar a suspensão da instância).
Para além
disto, é evidente que, se a parte omitiu um facto relevante para a decisão da
causa, a consequência é a sua condenação como litigante de má fé (art. 542.º, n.º
2, al. b), nCPC) e a consideração do facto omitido para a decisão da causa.
Sendo assim, talvez se possa concluir que a parte que não alegou atempadamente o facto
e que usou a sua declaração para surpreender a contraparte e dificultar a
descoberta da verdade sobre ele pode ser sancionada não só com a sua
condenação como litigante de má fé, mas também com a preclusão da alegação do
facto.
MTS