"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/10/2014

Casamento putativo e terceiro afectado




1. Os art. 1647.º e 1648.º CC contêm o regime do casamento putativo, isto é, do casamento que, apesar de ser inválido, produz efeitos, entre os cônjuges ou em relação a terceiros, até à sua anulação ou declaração de nulidade. A produção desses efeitos depende de, pelo menos, um dos cônjuges se encontrar de boa fé (cf. art. 1647.º, n.º 1 e 2, CC), ou seja, ignorar de forma desculpável o vício que causa a anulabilidade ou a nulidade do casamento (cf. art. 1648.º, n.º 1, CC).

O art. 1647.º, n.º 2, CC estabelece as condições em que, estando apenas um dos cônjuges de boa fé, o casamento, apesar de inválido, produz efeitos em relação a terceiros antes da sua anulação ou declaração de nulidade: os efeitos do casamento inválido afectam terceiros se esses efeitos puderem ser considerados um mero reflexo das relações havidas entre os cônjuges, ou seja, se forem o reflexo de uma situação jurídica que afecta ambos os cônjuges. Por exemplo: o cônjuge de má fé vendeu, sem autorização do cônjuge de boa fé, um imóvel comum; esta venda é anulável pelo cônjuge que não participou da venda (cf. art. 1682.º-A, n.º 1, al. a), e 1687.º, n.º 1, CC); esta anulação afecta o terceiro adquirente.

Poder-se-ia ver no regime estabelecido no art. 1647.º, n.º 2, CC uma extensão do caso julgado a um terceiro, no sentido de que a anulação proferida na acção entre os cônjuges seria oponível ao adquirente do imóvel, mesmo que este não tivesse sido demandado nessa acção. Não parece, contudo, que seja esse o sentido do preceito.

Fora de qualquer efeito putativo do casamento, parece claro que a acção de anulação de uma venda tem de ser proposta contra o alienante e o adquirente, dado que a anulação não pode ser decretada em relação a apenas uma das partes do contrato (cf. art. 33.º, n.º 2 e 3, CPC), isto é, não pode ser decretada somente em relação ao alienante ou ao adquirente, deixando o contrato subsistir como válido em relação ao adquirente ou alienante não demandado.

O regime constante do art. 1647.º, n.º 2, CC não pode alterar o litisconsórcio necessário natural entre o cônjuge alienante e o terceiro adquirente na acção proposta pelo cônjuge que não autorizou a venda do imóvel. Mais até: esse regime, ao determinar que a anulação é oponível ao terceiro adquirente, corrobora que este terceiro tem legitimidade para ser demandado na acção de anulação. Neste caso, a oponibilidade não significa extensão dos efeitos do caso julgado ao terceiro adquirente ausente da acção de anulação, antes mostra que o terceiro tem legitimidade para ser demandado na acção de anulação. Dito de outro modo: a oponibilidade não é uma decorrência da ausência do terceiro da acção, mas antes um fundamento para presença desse terceiro nessa acção e um critério para a delimitação das partes da acção.

A relação que se detecta na hipótese em análise entre a oponibilidade e a legitimidade está longe de ser um caso isolado. Por exemplo: o art. 522.º CC permite que os devedores solidários não demandados possam opor ao credor um caso julgado favorável; o mesmo se estabelece no art. 531.º CC em relação a credores solidários não demandantes. Qualquer destes sujeitos beneficia da oponibilidade de um caso julgado favorável, mas também qualquer deles tem legitimidade para, respectivamente, ser demandado em conjunto com outros devedores ou demandar em litisconsórcio com outros credores.

2. Sendo assim, há que concluir que o regime estabelecido no art. 1647.º, n.º 2, CC não contém nenhuma extensão do caso julgado ao terceiro, pelo que não dispensa a demanda deste terceiro em conjunto com o cônjuge de má fé.


MTS