"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/10/2014

Constitucionalidade do prazo de propositura de acção de impugnação de paternidade





1. Do sumário do acórdão do STJ de 16.09.2014 (Proc. 973/11.8TBBCL.G1.S1) consta o seguinte:


I - A regra do «pater is est quem nuptiae demonstrant» contém, em si mesma, uma verdadeira presunção legal para o estabelecimento da paternidade, de natureza “iuris tantum”, por se basear num juízo de probabilidade e não de certeza, que consente a correção do erro, com a consequente possibilidade de se efetuar a prova do contrário do facto presumido. 

II - Na ação de impugnação de paternidade proposta pelo filho do marido da mãe, o autor defende um direito próprio à verdade biológica, com vista a ilidir a presunção de paternidade atentatória da mesma. 

III - Jogando-se a sorte da relação jurídica de paternidade na certeza da prova científica, em que os testes de ADN são um instrumento privilegiado, fora do sortilégio da prova testemunhal, não se compreenderia que aquela prova ficasse prisioneira da prova por presunção, alcançada num contexto em que a realidade nada tem a ver com a verdade sociológica que está subjacente à presunção de paternidade, que decorre do estipulado pelo art. 1826.º, n.º 1, do CC. 

IV - As desvantagens que advêm para o autor da perda da possibilidade de vir a ter a paternidade fundada em presunção legal são menores e, claramente, proporcionadas, perante os benefícios resultantes para o mesmo de uma paternidade assente na correspondência com a verdade biológica, estabelecida e, devidamente, registada, em relação ao seu verdadeiro pai, mas que depende, impreterivelmente, do afastamento daquela presunção legal que, uma vez removida, permitirá a fixação de outra, desta vez, biológica, e não já por presunção. 

V - A norma constante do art. 1842.º, n.º 1, al. c), do CC, na dimensão interpretativa que prevê um prazo limitador da possibilidade do filho do marido da mãe propor, a todo o tempo, a ação de impugnação da paternidade, desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se que este último não era o seu pai biológico, é inconstitucional, por violação do direito à tutela judicial efetiva e, bem assim, como do preceituado pelos arts. 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da CRP.


2. Apesar de este acórdão do STJ se debruçar apenas sobre uma questão (a da constitucionalidade do prazo, que se encontra estabelecido no art. 1842.º, n.º 1, al. c, CC, de propositura da acção de impugnação de paternidade intentada pelo filho do marido da mãe), algumas passagens e alguns raciocínios que nele é possível encontrar suscitaram-me dúvidas.


Em primeiro lugar, o acórdão do STJ, embora comece por afirmar que a filiação presumida (decorrente do art. 1826.º, n.º 1, CC) constitui uma presunção legal, no fundo parece querer equipará-la a uma mera presunção, como se a filiação presumida tivesse um fundamento meramente epistemológico e se destinasse a evitar a realização de um juízo de certeza e pudesse, por isso, considerar-se como sendo sempre justificável a apresentação de prova susceptível de contrariar essa filiação e de afirmar a chamada “verdade biológica”.


Em segundo lugar, o acórdão do STJ fala da importância dos vínculos biológicos e no respectivo determinismo. Porém, o acórdão aparenta esquecer que os vínculos não biológicos (nos quais parece pretender incluir também qualquer vínculo de filiação decorrente de presunção até que se torne impossível – não se sabe quando - a prova da “verdade biológica”) são igualmente importantes e que estes vínculos também podem ser considerados deterministas.


Em terceiro lugar, o acórdão do STJ suscita algumas dúvidas no que se refere ao momento até ao qual poderá então o filho pretender fazer valer a “verdade biológica”. Após pôr em causa a justificação, a necessidade e a proporcionalidade da previsão de um prazo de caducidade do direito de impugnação da paternidade, o STJ invoca que esse prazo «traduz mais uma hora de reflexão pelo interessado para a opção a tomar do que o tempo de preparação da prova para lograr em juízo o triunfo da verdade». E, embora mais à frente refira que «a opção pela paternidade presuntiva não poderá ter-se como consolidada antes de haverem caducado todos os direitos de impugnação atribuídos aos seus diferentes titulares ativos», o STJ acaba por concluir que o prazo de caducidade estabelecido no art. 1842.º, n.º 1, al. c), CC «é limitador da possibilidade de o filho do marido da mãe impugnar, a todo o tempo, a sua paternidade, constituindo uma salvaguarda desproporcional dos valores de certeza e segurança jurídica que visam evitar a manutenção de uma situação de pendência ou dúvida acerca da filiação, por períodos, excessivamente, longos». Contudo, se o sentido for o de afirmar a não existência de um prazo de caducidade para o exercício do direito de impugnação da paternidade, importa referir que o acórdão do STJ não terá talvez ponderado algumas implicações sucessórias que a inexistência de um prazo de caducidade para o exercício de um tal direito poderá vir a ter, nomeadamente se o filho porventura já tiver herdado do presumível pai, suscitando ainda a questão de saber se a circunstância de o filho já ter sido sucessor do presumível pai ainda assim lhe permite, ou não, suceder também ao pai biológico.


Em quarto lugar, ao concluir que o prazo previsto na alínea c) do n.º 1 do art. 1842.º CC é «uma salvaguarda desproporcional dos valores de certeza e segurança jurídica que visam evitar a manutenção de uma situação de pendência ou dúvida acerca da filiação», o acórdão do STJ dá a entender que as inúmeras situações de filiação que foram constituídas em virtude da presunção legal estabelecida no art. 1826.º, n.º 1, CC mais não são do que situações de pendência ou de dúvida sobre a filiação estabelecida e situações a que o direito procurou conferir certeza através do recurso a um mecanismo artificial. Ora, esta tese, além de duvidosa nos seus pressupostos, dificilmente poderá merecer o acordo daqueles filhos e pais (não serão poucos por certo) que têm um vínculo de filiação constituído por via da referida presunção legal.
 
Existe uma outra vertente do acórdão que poderá passar despercebida e que se justifica assinalar. No início do acórdão refere-se o seguinte: «… o réu não é o pai biológico do autor, pois que este nasceu em data diferente daquela que consta do registo, a mãe do autor casou-se, apressadamente, com o réu, nunca havendo namorado um com o outro, sendo certo que um irmão da mãe do autor foi, por essa altura, emigrado para a Venezuela, nunca o réu tendo tratado o autor da mesma forma como tratou os seus outros filhos». E, mais à frente, na reprodução dos factos dados como provados pelas instâncias, escreve-se que o autor terá declarado no processo de inventário o seguinte: «tenho informações, de várias fontes, que não sou filho biológico do casal mas sim de FF, o irmão mais velho da inventariada”». Ambas as passagens dão a entender que o nascimento do autor da acção poderá ter sido o resultado de uma relação incestuosa mantida entre a sua mãe e o irmão mais velho desta (ou seja, mantida com o tio do autor). No entanto, se assim for, a tese defendida pelo STJ poderá ser também considerada pouco feliz no que respeita aos respectivos resultados, nomeadamente se tivermos em conta as possíveis consequências que decorrem do imperativo da “verdade biológica” pelo qual o STJ propugna, quer para o caso sub judice, quer para outros casos idênticos. Desde logo, em certos casos (como no caso em apreço) não será descabido dizer que a afirmação da inexistência de um prazo de caducidade para o exercício do direito de impugnação da paternidade constitui um meio, no mínimo, melindroso de permitir ao autor, parafraseando o acórdão, «esclarecer a sua posição social e jurídica, quer em relação ao seu estatuto de filho presumido, quer em relação ao agregado familiar em que se integra, quer ainda ao meio social em que se insere, encontrando-se, igualmente, a garantir o direito à sua identidade, assente na situação de presumido filho» ou de «determinar as suas origens, a sua família e a sua “localização” no sistema de parentesco». Além disso, em certas situações poderá ser difícil ver na solução de afirmar a inexistência de um prazo de caducidade para o exercício do direito de impugnação da paternidade um meio adequado para contribuir para aquilo que o acórdão designa como «valorização dos direitos fundamentais da pessoa, tais como o de saber quem é e de onde vem, na vertente da ascendência genética» e, sobretudo, como sendo o produto de uma aturada ponderação das vantagens e desvantagens associadas à afirmação ou recusa de um tal prazo de caducidade.

Rui Soares Pereira