"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/10/2014

Jurisprudência (34)


Dupla venda executiva; conceito de terceiro para efeitos de registo

1. De acordo com o respectivo sumário, STJ 30/9/2014 (3959/05.8TBSXL.L1.S1), decidiu o seguinte:

"I - A transmissão de bem imóvel no âmbito da execução judicial opera a extinção ipso jure dos direitos de garantia que oneram o bem penhorado, nomeadamente as penhoras efectuadas tanto na execução judicial como na execução fiscal.

II - Cabe ao agente de execução comunicar ao conservador do registo predial competente a realização da venda, para que este proceda ao respectivo registo e ao cancelamento das inscrições relativas aos direitos que tenham caducado com a venda, incluindo o cancelamento do registo das penhoras.

III - A extinção dos direitos prevista no art. 824.º, n.º 2, do CC opera 
ipso jure.
 
IV - O art. 5.º, n.º 4, do CRegP consagra uma noção restritiva do conceito de terceiro para efeitos de eventual oponibilidade do registo a adquirente anterior omisso, devendo concluir-se que não são terceiros (entre si) dois adquirentes em duas vendas executivas do mesmo bem imóvel.

V - Perante isto, a venda efectuada à autora em execução fiscal do mesmo imóvel que anteriormente tinha sido vendido em execução judicial comum aos réus configura uma venda de coisa alheia."

2. O art. 5.º, n.º 1, CRegP estabelece que os factos sujeitos a registo predial só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo. No entanto, segundo a definição legal que consta do art. 5.º, n.º 4, CRegP,  terceiros, para efeitos de registo, são apenas aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si. Daí que a prioridade do registo só determine uma prioridade quanto ao direito adquirido se ambos os adquirentes (A e B) tiverem adquirido de um mesmo transmitente (C): neste caso, se o segundo adquirente (B) tiver registado a sua aquisição antes de o primeiro adquirente (A) o ter feito, a aquisição de B prevalece sobre a de A.

A matéria do conceito para efeitos de registo é particularmente complexa, tendo, aliás, dado origem a um unicum na ordem jurídica portuguesa: um acórdão de uniformização proferido sobre a matéria -- em concreto, o Ac. 15/97, de 4/7-- foi revogado e substituído por um outro acórdão uniformizador -- o Ac. 3/99, de 10/7 --, no qual se definiu que "terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5.º do Código do Registo Predial, são os adquirentes de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa".

O acórdão em análise parte deste chamado conceito restrito de terceiros para efeitos de registo, mas acaba por concluir que uma segunda aquisição através de uma venda executiva de um bem que se encontra registada não prevalece sobre uma primeira aquisição através de uma outra venda executiva desse mesmo bem que não foi registada. Pode assim concluir-se que o acórdão realiza uma interpretação restritiva do já de si muito restrito conceito de terceiros para efeitos de registo, não considerando terceiros (entre si) os adquirentes de um mesmo bem em duas sucessivas vendas executivas. Em suma: esses adquirentes nem sequer têm, um perante o outro, a qualidade de terceiros.

Em concreto, o acórdão rejeita aplicar a duas vendas executivas de um mesmo bem o regime que é característico da chamada concepção restrita de terceiros para efeitos de registo: "Se A vende validamente a B, B não regista, e A vende, em seguida a C e C regista, a venda a B, sendo embora uma venda a domino, perante C é como se não existisse. Por isso, a venda a C, sendo uma venda a non domino, funciona como uma venda a domino e, porque C regista, prevalece sobre a de B, fazendo o direito deste decair" (Orlando de Carvalho, BFDUC 70 (1994), 106). 

3. É muito duvidoso que dois adquirentes de um mesmo bem em duas vendas executivas sucessivas não possam ser considerados entre si terceiros para efeitos de registo, isto é, não possam ser considerados como tendo adquirido o bem de um mesmo transmitente. Para além das muitas diferenças entre a venda negocial e a venda executiva, não são claros os motivos pelos quais dois adquirentes de um mesmo bem em duas vendas executivas não podem ser considerados entre si terceiros para efeitos de registo. Lembre-se o que, a este propósito, foi decidido pela RC 14/7/2010 (800/03.0TBSRT.C1): "apesar da natureza coactiva da venda, o vendedor é o executado e não o tribunal ou o exequente (asserção que é atestada pela reversão para o executado do remanescente do preço, quando o haja, depois de pagos os créditos exequendo e graduados)". 

O acórdão em análise não fornece nenhuns esclarecimentos sobre aqueles motivos. Mais até: o acórdão não refere a jurisprudência do STJ que se orienta nesta matéria numa outra direcção. Por exemplo: em STJ 7/2/2013 (3326/09.4TBVFR.P1.S1) escreveu-se o seguinte: 

"[...] o que estava em causa no Ac. 3/99 era saber se o exequente que logrou registar antecipadamente penhora sobre o bem reivindicado pelo embargante se podia configurar como terceiro em relação ao proprietário que omitiu o registo da sua aquisição. Pelo contrário, na situação agora em litígio, a questão fundamental é saber se aquele que adquiriu a propriedade de um imóvel mediante venda judicial se pode qualificar como terceiro em relação ao verdadeiro proprietário que não curou de inscrever tempestivamente no registo predial a respectiva aquisição .

Ora, como é evidente, estas duas questões não têm necessariamente de ter a mesma resposta: se é evidente e inquestionável que o exequente que se limitou a inscrever a penhora obtida a seu favor no registo não é terceiro em relação ao proprietário do bem (já que obviamente a faculdade, legalmente reconhecida ao credor, de unilateralmente penhorar bens do seu devedor/executado não é um negócio jurídico que seja susceptível de conduzir a uma aquisição derivada de direitos, provenientes de um mesmo autor ou transmitente), já se configura como muito mais discutível a posição do adquirente do bem no termo da acção executiva, tudo dependendo essencialmente do modo como se configurar a venda executiva (no caso dos autos, no âmbito de execução fiscal: quem é verdadeiramente o vendedor do bem - o Estado, ao exercer um poder coercitivo autónomo, que envolveu uma espécie de expropriação do direito objecto da execução; ou, pelo contrário, o transmitente do bem vendido judicialmente será ainda o devedor/ executado, actuando o Estado em verdadeira sub rogação deste, no exercício de um poder coercitivo que lhe permite dispor de direitos alheios no interesse da realização dos créditos fiscais?); e, muito em particular, o entendimento a adoptar depende decisivamente do juízo que se faça sobre as necessidades de tutela da confiança e segurança jurídica no domínio da venda executiva: deverá prevalecer sobre o interesse do verdadeiro proprietário que omitiu o registo da sua aquisição o interesse do adquirente em venda executiva que confiou inteiramente no registo nessa data existente e tratou de imediatamente consolidar a sua aquisição com a imediata feitura de registo a seu favor? Merecerá, porventura, menor protecção a confiança de quem adquire um bem imóvel em venda executiva, confiando justificadamente no teor de registo existente, do que a confiança de quem, em situação paralela, adquire direitos reais no comércio ou tráfico jurídico, em negócio voluntariamente celebrado pelo próprio  proprietário aparente?

Ora, esta exacta questão – que efectivamente reveste manifesta complexidade e tem sido objecto de apreciações divergentes – não foi, nem tinha de ser, resolvida pelo Ac. 3/99, pela singela razão de, no caso que lhe estava subjacente, não ter ainda ocorrido qualquer venda executiva, circunscrevendo-se, por isso, o conflito de interesses a dirimir ao verdadeiro proprietário do imóvel e ao exequente, titular de penhora registada prioritariamente sobre tal bem."

4. O reparo que se faz não é exclusivo do acórdão em análise: nem sempre os acórdãos das Relações ou do STJ referem a jurisprudência dos tribunais superiores que é contrária àquela que neles obteve vencimento. Talvez neste aspecto fosse útil o confronto com a prática de outros tribunais superiores europeus.

MTS