Convenção de arbitragem; apreciação da sua validade pelo tribunal judicial
1.
Segundo o respectivo sumário, RG 25/9/2014 (1403/13.0TCGMR.G1)
decidiu o seguinte:
"I - Os tribunais arbitrais são competentes para conhecer
da sua própria competência, devendo os tribunais estaduais absterem-se de
decidir sobre essa matéria antes da decisão do tribunal arbitral, e isto mesmo
que, para o efeito, haja necessidade de apreciar a existência, a validade ou a
eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela está
inserida.
II - Destarte, uma vez instaurada a acção nos
tribunais estaduais e invocada a excepção de preterição de tribunal arbitral,
apenas em casos de manifesta nulidade, ineficácia ou de inaplicabilidade da
convenção de arbitragem - ou seja, que não necessita de mais prova para ser
apreciada, recaindo apenas na consideração dos requisitos externos da
convenção, como a forma ou a arbitrabilidade -, pode o juiz declará-lo e,
consequentemente, julgar improcedente a excepção.
III - A quebra do monopólio do Estado na
função judicial (ao permitir a arbitragem voluntária) apenas se mostra
permitida e justificada quando através dela possam ser conseguidos (pelo menos)
os mesmos objectivos que através dos órgãos de soberania tribunais o Estado
tende a conseguir.
IV - Por essa razão, sendo o direito de
acesso à justiça um direito fundamental, que se encontra em plano superior ao
direito potestativo a exigir a arbitragem, unicamente a verificação da
existência de uma situação de absoluta impossibilidade, e não tão-somente de
mera difficultas praestandi
(em respeito pela autonomia privada), que
torne inexigível que seja cumprido o acordo de arbitragem, constitui legitimo
fundamento justificativo do seu incumprimento."
2. O sumário do acórdão não levanta nenhuns problemas: todos os
seus itens podem ser subscritos sem
dificuldade. O acerto da decisão torna-se, no entanto, bastante discutível
quando se tem presente a factualidade que a RG teve de decidir.
O que estava em causa era uma cláusula compromissória constante de
uma cláusula contratual geral de um contrato de swap celebrado entre uma
sociedade e um banco. Segundo a descrição que consta do acórdão (que, aliás,
parece conter alguns lapsos de escrita), a sociedade propôs uma acção de
resolução daquele contrato num tribunal judicial; o banco defendeu-se alegando
a incompetência deste tribunal com base na referida cláusula compromissória; a sociedade autora respondeu que a cláusula
contratual geral da qual consta a convenção de arbitragem não era aplicável, porque
não tinha sido devidamente informada dessa cláusula pelo banco; o tribunal de 1.ª instância
considerou procedente a excepção de incompetência absoluta e absolveu o réu da instância (cf. art.
96.º, al. b), e 99.º, n.º 1, CPC).
Inconformada com esta decisão, a sociedade autora interpôs recurso
de apelação para a RG. Perante a alegação pela sociedade demandante da inaplicabilidade
da referida cláusula contratual geral, afirmou a RG, como forte apoio na
decisão recorrida, o seguinte:
"No
que concerne à alegada invalidade do compromisso arbitral, muito pouco, ou
mesmo nada, haverá a acrescentar à pertinente e consistente fundamentação
aduzida na decisão recorrida a esse respeito, quando refere que, “de acordo com o n.º 4 daquele mesmo preceito (do
artigo 5.º, n.º 1, da Lei 63/2011), as questões da nulidade, ineficácia e
inexequibilidade de uma convenção de arbitragem não podem sequer ser discutidas
autónoma e judicialmente em acção de simples apreciação, nem em procedimento
cautelar que tenha como finalidade impedir a constituição e funcionamento de um
tribunal arbitral. [...]
Os
árbitros são, assim, os primeiros juízes da sua competência, estabelecendo-se
uma regra de prioridade cronológica quanto à tomada de decisão sobre a
competência, vigorando, entre nós, o princípio lógico e jurídico da competência
dos tribunais arbitrais para decidirem sobre a sua própria competência, que, na sua acepção negativa, impõe a prioridade do tribunal
arbitral no julgamento da sua própria
competência, obrigando os tribunais estaduais a absterem-se de decidir sobre
essa matéria antes da decisão do tribunal arbitral. [...].
A nulidade manifesta é a invalidade
que não necessita de mais prova para ser apreciada, recaindo assim apenas na
consideração dos requisitos externos da convenção, como a forma ou a
arbitrabilidade."
3. É possível que, em certos casos, o carácter manifesto da
nulidade, da ineficácia ou da inexequibilidade da convenção arbitral possa ser
entendido como aquele que é patente em função da própria convenção. É discutível,
no entanto, que esse entendimento pudesse ter sido seguido no caso que foi
apreciado pela RG, dado que a solução deste caso deveria ter implicado a
consideração da protecção que é devida ao contraente que adere a uma cláusula
contratual geral.
Como é sabido, o regime das cláusulas contratuais gerais institui
um regime de protecção do contraente que adere a uma cláusula proposta pelo
outro contraente. Ora, é contrário a este propósito de protecção do contraente
aderente que a validade de uma convenção arbitral que consta de uma cláusula
contratual geral não possa ser apreciada, com a prova que for necessária, no
tribunal judicial no qual esse contraente propôs a acção, porque isso implica para
este contraente -- que é aquele que a lei pretende proteger – uma de duas
coisas:
– A necessidade de, primeiro, discutir a validade da cláusula contratual
geral que contém a convenção de arbitragem no tribunal arbitral e de, depois de
obter o reconhecimento por este tribunal da invalidade da cláusula, instaurar a
acção de resolução no tribunal judicial;
– De modo a obstar a esta “dupla via”, a propositura da acção no
tribunal arbitral e a renúncia a invocar neste a invalidade da convenção
arbitral e a consequente incompetência do tribunal arbitral.
Assim, a solução adoptada pela RG traduz-se ou na imposição de uma
dupla litigância ao contraente aderente ou na impossibilidade de este discutir
a incompetência do tribunal arbitral. Como facilmente se compreende, nenhuma
destas soluções é compatível com a protecção que é dispensada ao contraente que
adere a uma cláusula contratual geral.
Como a RG considerou que os tribunais judiciais são incompetentes
para a acção de resolução, no caso em análise não está afastado que o mesmo
contraente tenha de vir a propor três acções: aquela que já propôs num tribunal
judicial, aquela que terá de propor num tribunal arbitral e ainda aquela que terá de instaurar novamente nos tribunais judiciais no caso de aquele tribunal arbitral vir a considerar inválida a convenção de arbitragem que consta da
cláusula contratual geral em função da prova que a RG entende que nele deve ser
produzida quanto à observância do dever de informação pelo banco proponente.
Em conclusão: o acórdão em análise elimina pela via processual a
protecção que a lei substantiva pretende assegurar ao contraente que adere a
uma cláusula contratual geral que contém uma convenção de arbitragem.
MTS