"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/09/2016

Jurisprudência (416)



Procedimento de injunção;
âmbito de aplicação
 

1. O sumário de RL 21/4/2016 (184887/14.1YIPRT.L1-8) é o seguinte:

- Decorrendo a obrigação pecuniária seu objecto de entrega feita a título de adiantamento de proveitos, não estão reunidos os pressupostos do procedimento de injunção.

- Este uso indevido configura uma excepção inominada que obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância, nos termos do art. 576, nº2, do CPC de 2013.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Na senda do DL 404/93 de 10-12 , o DL 269/98 de 1/9 retomou a figura da injunção enquanto “providência que permite que o credor de uma prestação obtenha de uma forma célere e simplificada um título executivo (…) quando se consubstancie no cumprimento de uma obrigação pecuniária».

Este diploma, destinado, segundo o seu art 1º, a aprovar o regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1ª instância, afirmou-se no seu preâmbulo como especialmente vocacionado para as “acções de baixa densidade”, entendendo-se por tais, as que têm por objecto a cobrança de dívidas por parte dos “grandes utilizadores”, os ditos credores institucionais (bancos, seguradoras, operadoras telefónicas, instituições financeiras…).

Estava, pois, em causa com o mesmo, o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, contratos esses que não excedessem o valor da alçada do tribunal de 1ª instância, e foi designado por RPCOP.

O espírito deste diploma era o do credor poder utilizar um destes dois mecanismos à escolha - acção declarativa, ou injunção - de forma facultativa e alternativa, num caso e noutro, independentemente do próprio valor do contrato em causa, desde que o montante da prestação exigida fosse igual ou inferior ao valor da alçada do tribunal de 1ª instância e desde que declarasse haver renunciado à outra parte do crédito.

Surgiu, entretanto, o DL 32/2003 de 17/2, que pretendeu transpor a Directiva nº 2000/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho para a ordem jurídica interna, com a finalidade de «combater os atrasos de pagamento nas transacções comerciais» (art 1º).

Alargou a possibilidade de recurso às injunções a todos os pagamentos efectuados como remuneração de transacções comerciais (art 2º), e definiu “transacção comercial” (art 3º al a), como «qualquer transacção entre empresas, ou entre empresas e entidades públicas, qualquer que seja a respectiva natureza, forma ou designação, que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração», e, “empresa” (art 3º al b)), como«qualquer organização que desenvolva uma actividade económica ou profissional autónoma, mesmo que exercida por pessoa singular».

E determinou, que, estando em causa o “atraso de pagamento” em tais “transacções comerciais”, o credor teria direito a recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida (art 7º/1 do DL 32/2003 e art 7º RPCOP na redacção do DL 32/2003).

O DL 107/2005 de 1/7, que não revogou nenhum dos outros anteriores, apenas deu nova redacção a muitos dos preceitos do DL 269/98 e ao art 7º do DL 32/2003 de 17/2, veio introduzir alterações nesta matéria de formas processuais.

Do que resulta que desde que o art 8º do DL 32/2003 alterou a redacção do art 7º do DL 269/98, o procedimento da injunção passou a ser utilizável no caso do cumprimento das obrigações a que se refere o art 1º do diploma preambular – obrigações pecuniárias emergentes de contrato – e a obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo DL 32/2003 de 17/2, aqui independentemente do valor.

Mais recentemente, o DL 62/2013 de 10/5, cujo objectivo foi o de transpôr para a ordem jurídica nacional a Directiva nº 2011/7/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 16/2/2011, também ela a estabelecer medidas contra os atrasos de pagamento nas transacções comerciais, revogou o DL 32/2003 de 17/2, embora com excepção dos respectivos arts 6º e 8º, mas manteve-o relativamente aos contratos celebrados antes da sua entrada em vigor.

Cumpre, pois, saber o que é a transacção comercial.

Estabelece o art° 2.° deste diploma sob a epígrafe "Âmbito de aplicação" o seguinte: 
 
1-O presente diploma aplica-se a todos os pagamentos efetuados como remuneração de transações comerciais.

2-São excluídos do âmbito de aplicação do presente diploma: 
 
a) Os contratos celebrados com consumidores; 
 
b) Os juros relativos a outros pagamentos que não os efetuados para remunerar transações comerciais; 
 
c) Os pagamentos de indemnizações por responsabilidade civil, incluindo os efetuados por companhias de seguros. [...]". 
 
Por seu turno, a norma subsequente (art.º 3°) define o que se entende, para efeitos do diploma, como "transação comercial" esclarecendo que se trata de uma transação entre empresas ou entre empresas e entidades públicas destinada ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços contra remuneração". [...]

Por isso, tal como se consigna na decisão “… Está, portanto, em causa a cobrança do preço correspetivo ao valor dos bens fornecidos ou dos serviços prestados.”

É, assim, pressuposto objectivo genérico do procedimento da injunção, a presença de obrigações pecuniárias geradas por um contrato, melhor, por um negócio jurídico plurilateral de natureza onerosa.

Obrigações pecuniárias essas que , para o efeito pretendido - de determinação do conceito de obrigação pecuniária actualizável pela via da injunção –consiste numa quantia em dinheiro e são de quantidade (aquelas que têm por objecto uma prestação em dinheiro a qual é destinada a proporcionar ao credor o valor da quantia devida e não de determinada espécie monetária); cf artº 550 do CC .

Porém, a obrigação pecuniária que aqui está em análise só pode ser vista em sentido estrito, ou seja, como aquela em que a quantia pecuniária é o próprio objecto da prestação. E não aquela prestação em que o valor pecuniário é perspectivado como meio de liquidação ,tal como ocorre na obrigação de indemnização.

Conclusão ainda mais sustentada, se atentarmos no seguinte, tal como é assinalado na sentença impugnada:

“…., se bem virmos, as transacções comerciais que o legislador teve em mente são as que dão origem à emissão de uma factura (documento emitido pelo vendedor ou prestador de serviço) como se colhe dos Considerandos 2), 3) e 18) da DIRECTIVA 20 1117/UE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 16 de Fevereiro de 2011 que o Decreto-Lei 62/2013, de 10 de maio transpôs.

Aí se pode ler : "(2) A maior parte dos bens e serviços é fornecida no mercado interno por operadores económicos a outros operadores económicos e a entidades públicas em regime de pagamentos diferidos, em que o fornecedor dá ao cliente tempo para pagar a factura, conforme acordado entre as partes, ou de acordo com as condições expressas na factura do fornecedor ou ainda nos termos da lei.

(3) Nas transacções comerciais entre operadores económicos ou entre operadores económicos e entidades públicas, acontece com frequência que os pagamentos são feitos mais tarde do que o que foi acordado no contrato ou do que consta das condições comerciais gerais. Ainda que os bens sejam entregues ou os serviços prestados, as correspondentes facturas são pagas muito depois do termo do prazo. Atrasos de pagamento desta natureza afectam a liquidez e complicam a gestão financeira das empresas. 
 
Também põem em causa a competitividade e a viabilidade das empresas, quando o credor é forçado a recorrer a financiamento externo devido a atrasos de pagamento. O risco destes efeitos perversos aumenta grandemente em períodos de recessão económica, quando o acesso ao crédito é mais difícil. ". ( ... )

(18) As facturas constituem avisos de pagamento e são documentos importantes na cadeia de valor das transacções para o fornecimento de bens e a prestação de serviços, nomeadamente para determinar os prazos de pagamento.

Para efeitos da presente directiva, os Estados-Membros deverão promover sistemas que contribuam para a certeza jurídica no que respeita à data exacta da recepção das facturas pelos devedores, incluindo a facturação em linha, em que a recepção das facturas pode produzir prova electrónica, a qual é em parte regulada pelas disposições relativas à facturação da Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado ".

Daí que, em consonância com tal regime, o DL nº 62/2013 estatui que o "montante devido" integra "as taxas, direitos ou encargos aplicáveis que constam da factura'", atribuindo ainda relevância jurídica à data da recepção da factura pelo devedor:cf.artº 4º nº 3 al a) e 5º nº 1 al b) do referido Diploma.

Atento este quadro conceptual , a questão que se coloca é se a quantia de € 300.000,00 que a requerente pretende cobrar da requerida constitui dalguma sorte, na acepção do diploma, uma remuneração de uma transacção comercial entre ambas.

Relendo o contrato firmado com a requerida, concluímos que esta e a sociedade O[…] SGPS, SA se associaram com o objectivo de desenvolver no imóvel, pertença da requerida, um projecto imobiliário .

Projecto este a concretizar mediante as tarefas enumeradas na cláusula 1ª do contrato datado de 19/6.

Como proveitos do negócio as partes estipularam o constante na cláusula 4ª, pelo que os €300.000,00 adiantados pela antecessora da requerente à requerida o foram como antecipação do pagamento que caberia a esta aquando da distribuição dos lucros da parceria que ambas encetaram e na qual a requerente se obrigava a prestar uma série de serviços para desenvolver um projeto imobiliário num imóvel da requerida [...].

Na verdade, chegado o momento de repartir os proveitos ,a quota parte da requerida começará por ser entregue à sociedade até perfazer aquele montante de € 300.000,00 [...].

Por isso, aquando da celebração do contrato datado de 9-12 se tenha designado a entrega dos tais e 300.000,00 como caução ,no caso de cessação do contrato ;é que o que estava em causa era um adiantamento de proveitos por banda da sociedade, por via do pagamento dessa quantia à requerida , uma vez que já tinha usufruído da mesma.

Concluímos, então, que o litígio acerca do pagamento desta quantia prende-se com a distribuição de proveitos, por força da resolução contratual levada a cabo pela requerida, ainda que ,anteriormente, tenha havido uma entrega à requerida de € 300.000,00, a título de adiantamento de lucros.

O que significa que esta obrigação pecuniária é encarada como meio de liquidação dos proveitos, e não em sentido estrito, tal como explanamos; termos em que não poderia ser objecto de injunção.

Aliás, à mesma conclusão se pode chegar ,caso o apelante entenda “ divorciar” a entrega da referida quantia da distribuição de proveitos ,para a perspectivar como uma mera transferência para a esfera patrimonial da requerida : é que também nesta hipótese não estaria em discussão a transacção comercial ,tal como o citado diploma a entende.

Pelo exposto, improcedem as conclusões.

Poderia o Tribunal conhecer do pedido ,ainda que não se aplicassem os pressupostos do recurso ao procedimento de injunção?

O processo simplificado que o legislador teve em vista com a criação do regime especial da injunção, com vista a facultar ao credor de forma célere a obtenção de um título executivo , em acções que normalmente se revestem de grande simplicidade, não é adequado a decidir litígios decorrentes de contratos que revestem alguma complexidade, como é o caso:
 
-há que analisar e avaliar clausulado complexo; há que analisar e avaliar a resolução levada a cabo pela requerida ; há que analisar e ponderar as consequências da resolução ; há que conceder á requerida a possibilidade de deduzir pedido de reconhecimento de um crédito ,por via da reconvenção ( artº 266 nº 2 al c) CPC).

Por isso, concordamos com o explanado na decisão impugnada:

“(…) Porém, com todo o respeito por esta posição, essa transmutação não tem a virtual idade de sanar as diferenças incontornáveis entre:

- o requerimento de injunção, cujos contornos estão estabelecidos no art.º 10.° do anexo ao DL n.º 269/98, e a petição inicial que despoleta uma ação de processo comum, a qual, em forma articulada, há de conter os fundamentos de facto e de direito que sustentam a pretensão formulada, desde logo instruída com os pertinentes documentos e, tratando-se a ação com o valor da presente, impondo-se a constituição de mandatário judicial; 
 
- a notificação para pagamento em 15 dias ou para dedução de oposição em 15 ou 20 dias, consoante o valor (art.s 12.° n." 1, 13.° e 15.° do anexo ao DL n." 269/98) e a citação para contestar no prazo de 30 dias, com possibilidade de prorrogação e de dedução de reconvenção, acompanhada dos documentos que sustentam a pretensão do demandante, com indicação para constituir mandatário, se for o caso; 
 
 - a oposição à injunção, que não carece de forma articulada (art.s 15.° e 1º nº 3 do já referido anexo) e uma contestação que obedeça aos formalismos enunciados no art." 572.° do CPC. 
 
Tais diferenças que são, portanto, tão acentuadas nas fases vitais do processo, reforçam a conclusão de que o recurso ao procedimento injuntivo só pode ocorrer quando se verifiquem na íntegra os pressupostos da sua admissibilidade, v.g. dívida proveniente de transacção comercial.

O requerimento de injunção com a linearidade prevista no art° 10° do [anexo ao] D.L. 269/98 de 1 de Setembro é uma notificação para pagar ou deduzir oposição em 15 dias, e com o conteúdo descrito no art° 13° do mesmo diploma (com uma advertência como a prevista na alínea e) do respectivo nº 1) só são compagináveis quando os pressupostos que presidiram à criação deste expediente célere e simples de cobrança de dívidas se verifiquem efectivamente (...). Caso contrário, estava encontrado o meio para, com pensado propósito de, ilegitimamente, se tentar obter título executivo, se defraudar as exigências prescritas nas disposições legais que disciplinam o procedimento de injunção" (Cfr. neste sentido Acórdão da Relação de Coimbra de 20.5.2014 relatado pelo Desembargador Fonte Ramos, consultável na Base de Dados do IGFEJ) e de se coarctar direitos de defesa dos demandados (acrescentamos nós)”.

Assim, foi feito um uso indevido pela Requerente do procedimento de injunção, o que configura uma excepção inominada que obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância, nos termos do art. 576º, nº 2 ( art. 577º) do CPC de 2013."
 
[MTS]