"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/09/2016

Jurisprudência (434)


Processo de insolvência; verificação e graduação de créditos; 
comunhão conjugal; venda em caso de comunhão ou compropriedade


1. O sumário de RC 17/5/2016 (836/14.5T8ACB-C.C1) é o seguinte:

I – Nos termos do artº 634º do nCPC, o recurso interposto por uma das partes aproveita aos seus compartes no caso de litisconsórcio necessário (vide n.º 1). Fora do caso de litisconsórcio necessário, o recurso interposto aproveita ainda aos outros “se estes, na parte em que o interesse seja comum, derem a sua adesão ao recorrente”.

II - Dispõe o nº 3 do art.º 130º do CIRE, disposição legal que se ocupa da “impugnação da lista de credores reconhecidos”, que não havendo impugnações “é de imediato proferida sentença de verificação e graduação de créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste dessa lista”.

III - Não se discute que a letra da lei parece atribuir efeito cominatório à falta de impugnações, salvo o caso de erro manifesto. Todavia, cedo foi notada a inadequação da solução, quando entendida como redutora do papel do juiz a uma mera formalidade, competindo-lhe apenas apor a chancela à lista elaborada pelo Sr. AI, e isto desde logo face à constatação de que, tratando-se de matéria de enorme relevo e idêntica complexidade jurídica, a ausência de impugnações não dá quaisquer garantias de que a lista se encontre correctamente elaborada.

IV – No nº 3 do artº 130º do CIRE deve interpretar-se em termos amplos o conceito de erro manifesto, não podendo o juiz abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes da lista que vai homologar, para o que pode e deve solicitar ao administrador os elementos de que necessite, fazendo-se ainda notar que o erro de que aqui se fala pode respeitar “à indevida inclusão do crédito na lista, ao seu montante ou às suas qualidades”.

V - A comunhão conjugal constitui um património de mão comum ou propriedade colectiva, dando origem a um único direito encabeçado pelos dois cônjuges: não se trata, portanto, de cada cônjuge ter direito a metade de cada bem concreto dos que integram o património comum do casal, mas antes do direito ao valor de metade deste património. “O direito a metade é (…) um direito ao valor de metade” (cf. art.º 1730.º, n.º 1 do CC).

VI - É de admitir a realização da venda dos bens que compunham o património comum de um ex-casal de insolventes, com partilha do produto da venda por ambas as massas insolventes, a despeito de estas serem compostas, num e outro processo, pelo direito à meação nos bens comuns de cada um dos ex-cônjuges.

VII - Recusando embora a atribuição da natureza exclusivamente executiva ao processo insolvencial, atendendo aos “importantes efeitos substantivos da declaração de insolvência”, e concluindo portanto pela sua natureza mista, é isento de dúvida que os “actos do processo relativos ao activo da massa insolvente têm natureza prevalentemente executiva”.

VIII - Inexiste assim obstáculo à aplicação do disposto no art.º 743º do CPC, nomeadamente da solução consagrada no seu n.º 2, aos processos de insolvência nos quais foi arrolado o “direito à meação” de cada um dos ex-cônjuges (cf. art.º 17º do CIRE).

IX - Tal solução não contraria as disposições do CIRE, que acolhe regime idêntico quando está em causa uma situação de insolvência envolvendo os dois cônjuges, prevendo a liquidação dos bens comuns - e não do direito de cada um à meação - ainda que separada da liquidação dos bens próprios de um e outro cônjuges, caso existam, sendo inegável a identidade entre esta situação e aquela outra em que o divórcio foi decretado antes da declaração de insolvência que atingiu ambos os membros do dissolvido casal, sendo comuns os credores e o património comum não tenha sido partilhado.

X - Efectuada a venda dos bens comuns por escritura na qual intervieram ambos os administradores, deverá a mesma manter-se, e tendo o produto revertido a favor das massas insolventes na proporção de metade para cada uma, será sobre ele que será feita a graduação, mantendo a credora recorrente a garantia hipotecária nos termos do n.º 3 do artigo 823.º do CC e, consequentemente, o direito a ser paga com a preferência que a lei lhe atribui (cf. art.º 686º do mesmo diploma legal).
 

2. Da fundamentação do acórdão consta o seguinte: 

"O art.º 1.º do CIRE afirma ser o processo de insolvência um processo de execução universal, tendo como finalidade a satisfação dos credores “pela forma prevista num plano de insolvência, baseada, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor e repartição do produto obtido pelos credores”. 

Não obstante a definição legal, não tem sido aceite sem reserva a atribuição da natureza executiva ao processo insolvencial. Na consideração de que tais concepções “menosprezam a fase declarativa do processo de insolvência”, e fazendo relevar os “importantes efeitos substantivos da declaração de insolvência”, vem sendo entendido que tais traços são quanto basta para que lhe seja atribuída a natureza mista de acção declarativa e executiva. Todavia, é, em qualquer caso, isento de dúvida que os “actos do processo relativos ao activo da massa insolvente têm natureza prevalentemente executiva” [Prof. Lebre de Freitas, “Apreensão, Separação, Restituição e Venda”, cit. [acessível em http://recil.grupolusofona.pt/bitstream/handle/10437/6397/jurismat5_15-25.pdf?sequence=1.]]. 

Nos termos do disposto no art.º 743.º do CPC, que se ocupa da penhora em caso de comunhão ou compropriedade, ressalvado o disposto no n.º 4 do art.º 781.º [...] “(…) na execução movida apenas contra alguns dos contitulares de património autónomo ou bem indiviso, não podem ser penhorados os bens compreendidos no património comum ou uma fracção de qualquer deles, nem uma parte especificada do bem indiviso” (n.º 1). Todavia, logo se prevê no n.º 2 que “Quando, em execuções diversas, sejam penhorados todos os quinhões no património autónomo ou todos os direitos sobre o bem indiviso, realiza-se uma única venda, no âmbito do processo em que se tenha efectuado a primeira penhora, com posterior divisão do produto obtido”. 

Embora o n.º 1 do preceito se afigure hoje destituído de interesse prático no âmbito dos processos executivos no que se refere à comunhão conjugal, dada a possibilidade conferida ao credor pelo artigo 740.º do CPC (e, antes deste, pelo art.º 825.º do CPC cessante) de, na execução movida contra apenas um dos cônjuges, e na insuficiência de bens próprios do devedor, nomear à penhora bens comuns do casal - caso em que se procederá à citação do outro cônjuge para, em 20 dias, requerer a separação de bens ou fazer prova de a já ter requerido - nada obsta, em nosso entender, à sua aplicação, designadamente da solução consagrada no n.º 2, ao processo de insolvência no qual se procedeu à apreensão do “direito à meação” (cf. art.º 17.º do CIRE). Trata-se de solução que não contraria as disposições deste diploma, que acolhe regime idêntico quando está em causa uma situação de insolvência envolvendo os dois cônjuges, prevendo a liquidação dos bens comuns (e não do direito de cada um à meação), ainda que separada da liquidação dos bens próprios de um e outro cônjuges, caso existam. E é inegável a identidade de situações, ainda que nos presentes autos o divórcio tenha sido decretado antes da declaração de insolvência que atingiu ambos os membros do dissolvido casal. 

Resulta do exposto que a venda realizada deverá manter-se [...] e, tendo o produto revertido a favor das massas insolventes na proporção de metade para cada uma, será sobre ele que será feita a graduação, mantendo a credora recorrente a garantia hipotecária nos termos do n.º 3 do artigo 823.º do CC e, consequentemente, o direito a ser paga com a preferência que a lei lhe atribui (cf. art.º 686.º do mesmo diploma legal)." 

3. Apenas um apontamento. É verdade que o art. 634.º, n.º 1, CPC (à semelhança do que já se dispunha no art. 683.º CPC/1939) estabelece que, no caso de litisconsórcio necessário, o recurso interposto por um dos litisconsortes aproveita aos demais. No entanto, o critério para aferir se o recurso aproveita a um não recorrente não pode ser o de o litisconsórcio ser necessário, mas antes o de ele ser unitário: o que é relevante é saber se tem de haver uma mesma e única decisão para todos os litisconsortes. Isto é muito fácil de demonstrar em dois exemplos:

-- Se um comproprietário propuser uma acção de divisão da coisa comum contra os dois outros comproprietários, este litisconsórcio passivo é necessário (e natural: art. 33.º, n.º 2, CPC); no entanto, é evidente que o recurso interposto por um destes litisconsortes não aproveita ao outro litisconsorte; pelo contrário: pode suceder que o que o recorrente venha a obter a mais no recuso interposto da decisão de divisão seja precisamente à custa do seu litisconsorte;

-- Se vários sócios propuserem uma acção de anulação de uma deliberação social, o litisconsórcio é voluntário; apesar disto, é claro que a decisão proferida em recurso sobre a validade da deliberação social vale igualmente para os litisconsortes não recorrentes (bem como, aliás, para todos os sócios, mesmo não litigantes).

MTS