"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/09/2016

Jurisprudência (437)


Providência cautelar; apreensão de viatura;
caducidade


1. O sumário de RL 26/4/2016 (934/14.5TVLSB-A.L1-7) é o seguinte:

I–Não existe fundamento na lei para aplicar à providência cautelar não especificada o regime exclusivo da providência cautelar especificada de arresto e mormente o disposto no artigo 395º do Código de Processo Civil.
 
II–Nos termos do artigo 373º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Civil, o que determina a caducidade do procedimento cautelar respectivo é a improcedência da acção principal e não a sua procedência.
 
III-Não faz sentido obrigar a requerente (que anda há anos a pugnar denodadamente pela efectivação da diligência de apreensão do veículo automóvel) a encetar nova via sacra, dando à execução a sentença declarativa de teor essencialmente coincidente com a pretensão formulada em termos cautelares, com acréscimo de dispêndios de tempo e custos e inutilização do trabalho já realizado no plano deste procedimento, sendo certo que não ocorreu qualquer das causas de extinção por caducidade da providência cautelar consignadas no artigo 373º do Código de Processo Civil.
 

2. Segundo o seu relatório, o acórdão apreciou a seguinte situação:

"Intentou WZX Renting (Portugal), Lda. providência cautelar não especificada contra M.-Energias Solares, Unipessoal, Lda.

Essencialmente alegou:

Celebrou com a requerida um contrato de aluguer operacional que teve por objecto a viatura automóvel marca WZX X1 E84 20d, com a matrícula 56-..-16.

A requerida deixou de pagar os respectivos alugueres desde Dezembro de 2013 e não procedeu à devolução da viatura que se mantém em seu poder.

Conclui pedindo a imediata apreensão do veículo automóvel identificado.

Produzida prova, foi a providência julgada procedente e ordenada a imediata apreensão da viatura, por decisão datada de 16 de Junho de 2014.

Foram desenvolvidas diversas e aturadas diligências com vista à apreensão do veículo a qual, até ao momento, não se concretizou.

Nos autos principais, de que a providência é dependente, foi proferida sentença, datada de 30 de Outubro de 2015, julgando procedente o pedido formulado pelo A.

Em 24 de Fevereiro de 2016, enquanto continuavam a decorrer diligências com vista à apreensão do veículo identificado, foi proferido o seguinte despacho: 

[...] Extinção da providência cautelar (por efeito da procedência da acção principal)
 
Mas, se com as providências cautelares se visa salvaguardar a eficácia da futura decisão - supostamente - favorável ao requerente, então, sendo a acção definitiva julgada procedente, «a providência mantém-se ou transforma-se por força da decisão proferida na acção principal», cessando os seus efeitos para dar lugar aos da decisão definitiva (Professor Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Coimbra Editora, Limitada, 1983, 3ª edição, 639).

Por outras palavras, em tal hipótese, cessam normalmente os efeitos da providência, porque ficam substituídos pelos do julgamento definitivo, desaparecendo a necessidade da medida que visava acautelar o direito a fazer valer, ou a evitar os prejuízos da demora dessa decisão. A uma mera probabilidade da existência do direito, sucede-se a certeza da sua existência. 

Compreende-se assim que, nos caso de restituição provisória de posse e de embargo de obra nova, a sentença confira carácter definitivo à situação provisoriamente regulada na providência, justificando que se declare esta finda (Acs. do RP, de 07.05.99, Leonel Serôdio, e de 17.11.2005, José Ferraz, acessíveis emwww.dgsi.pt/jtrp ; e Ac. da RC, de 09.07.2002, Hélder Roque, acessível em www.dgsi.pt/jtrc). 

Contudo, existem situações em que a lei é expressa quanto à ultra-vigência da providência, lendo-se nomeadamente no art. 395º do C.P.C. (antes, 410º) que «o arresto fica sem efeito (…) no caso de, obtida na acção de cumprimento sentença com trânsito em julgado, o credor insatisfeito não promover execução dentro dos dois meses subsequentes». [...]

Compreende-se, por isso, que «sempre que a tutela cautelar vise afastar o risco de atraso da decisão principal, a emissão desta faz caducar,
ipso iure, a providência cautelar emitida, porquanto é neste momento que esta perde a sua razão de ser. Os respectivos efeitos passam agora a ser produzidos por força da sentença condenatória do réu» ([Rita Lynce de Faria, A função instrumental da tutela cautelar não especificada, Universidade Católica Editora, 2003,] p.138).

Já «sempre que a providência cautelar realize a função instrumental, através da garantia de exequibilidade da futura sentença, a caducidade daquela depende da verificação de um facto complexo de produção sucessiva: a emissão da sentença favorável ao autor, associada à prática do acto de execução que aquela providência visou assegurar. Só esta interpretação respeita a instrumentalidade das medidas cautelares não especificadas» (op. cit., p. 140). 

Ora, constituindo o arresto o paradigma deste segundo tipo de providência cautelar de índole essencialmente executiva, e encontrando-se esta matéria regulada art. 395º do C.P.C. (antes, art. 410º), deverá a solução aí consagrada aplicar-se, por analogia, a todas as outras do mesmo cariz, não havendo razões de tutela do requerido que permitam solução diferente (op. cit., p. 142). 

Por outras palavras, «o preceito do art. 410º, na sua dupla vertente (prazo para a propositura da execução; diligência a observar no decurso desta), deve ser analogicamente aplicado a outras providências cautelares que antecipem um acto executivo de apreensão (…), como o arrolamento ou a apreensão e o depósito de bem devido. A analogia impõe-se, tendo designadamente em conta o disposto na alínea b) [do nº1 do art. 389º do C.P.C.]» (Lebre de Freitas e Outros, Código de Processo Civil Anotado, I Vol., p. 53). 

Secunda-se aqui esta interpretação, não só por melhor respeitar o carácter instrumental do procedimento cautelar, como ainda por respeitar o regime legal do arresto (que indubitavelmente constitui o paradigma da providência de índole essencialmente executiva). 

Concretizando, a aqui Requerente, WZX Renting (Portugal), Limitada, intentou esta providência cautelar peticionando a apreensão de um veículo automóvel. 

Está, por isso, em causa uma providência de índole essencialmente executiva. 

Produzida a prova arrolada, a providência foi decretada consoante requerido. 

Todavia, ainda não se logrou efectivar a apreensão do dito veículo automóvel. 

A aqui Requerente intentou, entretanto, uma acção declarativa de condenação, contra a aqui Requerida, onde impetrou a restituição pela mesma da viatura em causa nestes autos de procedimento cautelar.

Na dita acção principal foi proferida sentença, julgando procedente a pretensão da ali Autora, sentença que já transitou em julgado há mais de sessenta dias. 

Logo, das duas uma: ou a Requerente já intentou uma acção executiva para entrega de coisa certa (em que, não sendo encontrada a viatura a restituir-lhe, poderão aqueles autos ser convertidos, por sua iniciativa, em execução para pagamento do valor respectivo, nos termos do artigo 931º do C.P.C.); ou não o fez, devendo tê-lo feito no prazo de trinta dias a contar do trânsito em julgado da decisão proferida na acção principal (art. 395º do C.P.C., aqui aplicável por analogia, conforme se expôs supra). 

Em qualquer destas hipóteses, terá sempre sido praticado acto, ou verificada omissão, que importa que a presente providência cautelar tenha ficado sem efeito. [...]

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, declaro extinta a providência cautelar decretada nestes autos. [...].


3. Na fundamentação do acórdão lê-se o seguinte: 

"Nos termos do artigo 373º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Civil, o que determina a caducidade do procedimento cautelar respectivo é a improcedência da acção principal e não a sua procedência.

O interesse primordial dos presentes autos cautelares – a apreensão do veículo automóvel, cujas sucessivas tentativas têm-se revelado infrutíferas – subsiste incólume e deverá ser empenhadamente prosseguido, com celeridade e eficácia, sob pena de irreversível frustração do direito substantivo gravemente em risco.

Assim, o que está aqui em causa é a efectivação do direito do requerente, que urge, sem delongas, acautelar, e que por circunstâncias que lhe são absolutamente alheias, ainda não foi assegurado pelo ordenamento jurídico ao qual se dirigiu e que acolheu inteiramente a sua pretensão.

Afigura-se-nos, por isso, incompreensível e ilógico que se obrigue a requerente (que anda há anos a pugnar denodadamente pela efectivação da diligência de apreensão do veículo automóvel) a encetar nova via sacra, dando à execução a sentença declarativa de teor essencialmente coincidente com a pretensão formulada em termos cautelares, com o inerente acréscimo de dispêndios de tempo e custos e inutilização do trabalho já realizado no plano deste procedimento.

Isto para impulsionar exactamente a mesmíssima actividade processual que estava em curso há longo tempo.

No fundo, refazer o que já estava a ser feito, inútil e cansativamente."

4. O acórdão decidiu com um indispensável bom senso, podendo talvez acrescentar-se que uma providência cautelar de apreensão de um veículo nunca pode caducar enquanto estiver em execução essa apreensão (ou a tentativa de a realizar). Não é, aliás, outra a posição que se retira da transcrição de Lebre de Freitas et al. constante do despacho da 1.ª instância, dado que a analogia com a caducidade do arresto só se pode verificar quando o requerente da providência não instaure, dentro de certo prazo, a execução (da sentença proferida na acção principal ou -- se for o caso -- da própria providência). Ora, não era isso que sucedia no caso em análise, dado que a execução da providência ainda estava em curso no momento do proferimento da decisão condenatória.
 
Assim, em vez de se falar de caducidade da providência em virtude do proferimento da decisão condenatória, do que se deveria falar era de consolidação dessa mesma providência e da respectiva execução (em curso) por essa decisão.

MTS