"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/09/2016

Jurisprudência (433)


Sonegação de bens; ónus da prova; 
"não prova de que"; consequências


I. O sumário de STJ 28/4/2016 (155/11.9TBPVZ.P1.S1) é o seguinte:

1. À Relação é legítimo integrar oficiosamente na decisão factos que se encontram plenamente provados, o que, no entanto, não envolve a conclusão inscrita num relatório pericial grafológico acerca da autenticidade da assinatura aposta num documento que foi examinado pelo perito.

2. As conclusões do relatório subscrito pelo perito, no âmbito da prova pericial, não constituem factos que possam ser autonomamente considerados, sendo apenas o resultado de um meio de prova que o Tribunal deve valorar no processo de formação da convicção sobre a matéria de facto controvertida.

3. A resposta “não provado” dada relativamente a um facto controvertido não permite afirmar a prova do facto contrário.

4. A sonegação de bens prevista no art. 2096º do CC pressupõe a prova de actos de ocultação dolosa de bens da herança por parte do herdeiro a quem é imputada.

5. O facto de não se provar a doação de dinheiro depositado em contas bancárias que foi alegada pelo herdeiro a quem é imputada a sonegação de bens da herança é insuficiente para o fazer incorrer na sanção civil prevista no art. 2096º do CC, ou seja, da perda a favor dos demais co-herdeiros do direito sobre tal numerário. 

II. a) Apesar da qualidade a que os subscritores do acórdão nos habituaram, é duvidoso que o STJ tenha decidido bem a questão respeitante à não prova da doação alegada por um dos Réus.

O que, no essencial, estava em causa era o seguinte: uma herdeira propôs uma acção em que pediu, contra outros herdeiros, o reconhecimento de que certos bens pertenciam a uma determinada herança; um dos herdeiros demandados invocou que uma certa quantia depositada numa conta de que era titular lhe pertencia, porque a de cujus lhe tinha doado essa quantia.

No resumo efectuado pelo STJ:

"Na presente acção a controvérsia está centrada no facto de a mãe da A. e do R. Isaac ter outorgado ou não uma “doação” a este de determinadas quantias depositadas. Enquanto o R. EE alegou ser beneficiário dessa doação, a A. negou a sua existência, divergência que foi explicitada nos articulados e que acabou espelhada no ponto 65º da base instrutória [...].

Submetido esse ponto controvertido a instrução, o Tribunal de 1ª instância concluiu que resultara “não provado” [...], com indicação dos motivos assentes em factos circunstanciais e na ponderação de depoimentos testemunhais e da perícia grafológica que incidiu sobre a autoria da assinatura aposta no documento que titularia tal “doação”. Tal decisão não foi questionada por nenhuma das partes." 



b) A propósito da não prova da doação, afirmou o STJ o seguinte:

"Malgrado a junção ao autos de um documento titulando uma “doação” e do qual constava uma assinatura imputada à alegada doadora, as instâncias consideraram “não provada” a sua existência [...].

Porém, da falta de prova desse facto não é legítimo inferir a prova do facto inverso, ou seja, a falta de prova da doação não permite afirmar que a mesma não ocorreu e que o R., alegado donatário, pretendeu apropriar-se, por essa via, de um bem que deveria entrar no acervo hereditário."

Com o devido respeito pelo Relator e restantes subscritores do acórdão, não se pode acompanhar esta conclusão. Se um facto é dado como não provado pelo tribunal (por exemplo, se a celebração de um contrato é considerada não provada), isso só pode ser entendido como significando que, para efeitos do processo em que o facto tenha sido alegado, esse facto não pode ser considerado verdadeiro (ou seja, não pode ser considerado que o contrato tenha sido celebrado). Disto decorre naturalmente que a regra a cuja previsão é subsumível o facto não provado não pode ser aplicada no caso concreto.

Perante a produção de prova de um facto, é de admitir que, em termos de decisões negativas, o tribunal aprecie essa prova concluindo o seguinte:

-- O facto não está provado, isto é, "não está provado que"; por exemplo: o tribunal decide que o pagamento alegado pelo réu não está provado (decisão negativa "negativa");

-- Está provado que o facto não é verdadeiro, ou seja, "está provado que não"; por exemplo: o tribunal considera que está provado que não houve nenhum pagamento pelo réu (decisão negativa "positiva");.embora mais raro -- também porque mais difícil -- do que o "não provado que", o "está provado que não" verifica-se sempre que esteja provado um facto (por exemplo, estadia em Lisboa numa certa data) incompatível com o facto a provar (estadia no Porto na mesma data).

No entanto, para efeitos de decisão da causa a "não prova de que" não pode deixar de ser equivalente à "prova de que não". Por exemplo: o autor alega que emprestou uma certa quantia ao réu; a "não prova de que" tenha havido empréstimo tem de ser equivalente, para efeitos de pronúncia do tribunal, à "prova de que não" houve empréstimo. Dito de outra forma: para efeitos de pronúncia do tribunal sobre o mérito da causa, a decisão negativa "negativa" não pode deixar de produzir as mesmas consequências da decisão negativa "positiva".

A não se entender assim, então haveria que concluir que o tribunal só poderia tomar como base da sua apreciação da causa a não verdade de um facto se estivesse provado que o facto não é verdadeiro, ou seja, se estivesse "provado que não". Ora é claro que, para que o tribunal decida com base na não verdade do facto, é suficiente que o facto não esteja provado ("não prova de que"). Embora correspondam a enunciados linguísticos (bem) distintos, a "não prova de que" e a "prova de que não" valem o mesmo para efeitos da inadmissibilidade da utilização do facto probando como fundamento da apreciação da causa.

Basta atentar no regime do non liquet para se perceber que tem de ser assim. O argumento é o seguinte:

-- Se o tribunal tiver dúvidas sobre se o facto a provar é verdadeiro, esse tribunal ultrapassa o non liquet considerando (ou ficcionando) verdadeiro o facto contrário (cf. art. 414.º CPC), assim, se o tribunal, depois da produção da prova, tiver dúvidas sobre o facto x (isto é, não formar nenhuma convicção nem sobre a verdade, nem sobre a falsidade do facto x), o tribunal decide com base no facto não x (ou como se o facto não x fosse verdadeiro);

-- Logo, se o tribunal dá como não provado um facto (ou seja, forma a convicção de que o facto não está provado e, por isso, não é verdadeiro), isso só pode significar que o tribunal tem de decidir a causa como se o facto contrário fosse verdadeiro; ou seja, se o tribunal considera não provado o facto y, o tribunal tem de decidir a acção com base no facto não y (ou como se o facto não y fosse verdadeiro).

Se assim não se entendesse, chegar-se-ia à conclusão de que, se o tribunal tem dúvidas sobre o facto x, tem de decidir com base no facto não x, mas se o facto x não ficar provado, o tribunal não tem de decidir com base no facto não x. Não pode ser assim: a dúvida sobre a verdade de um facto (x) não pode ter uma consequência mais forte (não x) do que a decisão de não prova de um facto (x). Dito de outra forma: a convicção do tribunal sobre a não prova de um facto -- isto é, a decisão de não prova de um facto -- não pode produzir uma consequência menos forte do que a dúvida do tribunal sobre a verdade desse facto -- ou seja, do que a ausência de decisão sobre a prova desse facto. A convicção de que o facto não é verdadeiro nunca pode produzir um efeito menos forte do que dúvidas sobre a verdade ou não verdade desse mesmo facto. 

Sendo assim, há que concluir que, se o STJ entende que a doação alegada pelo Réu não está provada, só pode decidir a causa como se essa doação não se tivesse verificado. Em concreto, perante a não prova da doação, o tribunal não pode admitir que a doação afinal pode ter ocorrido e que tenha sido com base nela que se procedeu à transferência de uma certa quantia para uma conta bancária do Réu..

III. a) Na parte final do acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] constituindo pressuposto essencial da sonegação de bens a sua ocultação dolosa por parte do herdeiro, a actuação que os factos revelam não permite tal qualificação.

O que ressalta da matéria de facto é apenas uma situação de dúvida emergente do confronto de duas posições antagónicas, com afirmações de cada uma das partes que não ultrapassaram o plano da verosimilhança mas que não foram suficientes para a prevalência de qualquer das teses.

Assim, constituindo a sonegação o pressuposto do reconhecimento do direito reclamado pela A., a dúvida quanto à verificação dos factos integrantes (ocultação de bens e actuação dolosa) deve ser resolvida contra a parte que invoca o direito."

Se o que acima se afirmou está correcto, então não se pode dizer que, quanto à doação alegada pelo Réu, haja uma qualquer "verosimilhança": o que se deve concluir é que, perante a não prova da doação, esta doação não ocorreu. Assim, não tendo sido demonstrada a doação que, na perspectiva do Réu, justifica o depósito da quantia na sua conta, havia fundamento suficiente, pelo menos nesta base, para concluir pela sonegação dessa quantia. Afinal, não estando provada a doação, não está provado nenhum título de aquisição dessa quantia.

b) Note-se que isto não quer dizer que, apesar de se dever ter considerado que a doação alegada pelo Réu não ocorreu, não fosse de manter a decisão de improcedência proferida pelo STJ. Esta decisão sempre seria de proferir se o STJ considerasse -- como parece que efectivamente considerou -- que os factos alegados e provados pela Autora não eram suficientes para assegurar a procedência da acção. 

Se esta era efectivamente a posição do STJ, então talvez tivesse sido melhor ter seguido uma outra metodologia na elaboração do acórdão. Em vez de ter começado por analisar a matéria da doação e depois concluir que, afinal, os factos alegados e provados pela Autora não eram suficientes para o proferimento de uma decisão de procedência, talvez tivesse sido melhor começar por analisar a suficiência destes factos para a procedência da causa. A conclusão de que esta suficiência não se verificava teria prejudicado a necessidade de analisar a problemática da prova da doação alegada pelo Réu, pelo menos com o pormenor que consta do acórdão.

MTS