Impugnação da matéria de facto; admissibilidade da revista;
ónus de alegação; dever de colaboração do tribunal
1. O sumário de 27/10/2016 STJ (3176/11.8TBBCL.G1.S1) é o seguinte:
I. Tendo a Relação rejeitado a impugnação da matéria de facto, o recurso de revista contra o assim decidido não aprecia uma decisão interlocutória nos termos e para os efeitos da alínea b) do nº 1 do art. 671º do CPCivil.
II. Neste caso estamos perante uma decisão criada ex novo no próprio tribunal recorrido, sem qualquer paralelo, afinidade ou contiguidade com a decisão produzida na 1ª instância, que admite revista normalmente.
III. Omitindo o recorrente o cumprimento do ónus processual fixado na alínea c) do nº 1 do art. 640º do CPCivil, impõe-se a imediata rejeição da impugnação da matéria de facto, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões.
IV. A rejeição da impugnação da matéria de facto não está dependente da observância prévia do contraditório no quadro dos art.s 655º e 3º do CPCivil.
V. A interpretação dos art.s 639º e 640º do CPCivil no sentido de a rejeição da impugnação da matéria de facto não dever ser precedida de um despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões não viola o art. 20º da Constituição da República Portuguesa.
2. Na fundamentação do acórdão encontra-se a seguinte passagem:
"[...] sustenta a Recorrente que a circunstância de não ter sido convidada a aperfeiçoar a sua alegação a privou da possibilidade da defesa (acesso ao recurso), de acesso aos tribunais e à realização do direito, tendo-se assim caído numa situação de denegação de justiça. Invoca a propósito o art. 20º da CRPortuguesa.
Mas não podemos concordar com tal ponto de vista.
Para além de a CRPortuguesa não garantir o direito ao recurso senão em matéria penal e (segundo alguns) relativamente a decisões que imponham restrições a direitos, liberdades e garantias, e não é o que se passa no caso vertente, a verdade é que o legislador dispõe de uma ampla margem de liberdade na concreta modelação do processo. Daqui que não é incompatível com a tutela constitucional do acesso à justiça a imposição de ónus processuais às partes. Só assim não será se o legislador impuser exigências desprovidas de fundamento racional e sem conteúdo útil ou excessivas, não sendo em particular admissível o estabelecimento de ónus desinseridos da teleologia própria da tramitação processual (v. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, I, pp. 200, 190 e 191). Sucede que a imposição do ónus processual em causa - o contido na alínea c) do nº 1 do art. 640º do CPCivil - e a cominação de rejeição da impugnação da matéria de facto em caso da sua inobservância cabem naturalmente no poder de modelação do processo que assiste ao legislador, da mesma forma que a interpretação desta norma no sentido de possibilidade de tal rejeição ter lugar sem a admissão de convite ao aperfeiçoamento das conclusões não representa uma opção legal desprovida de fundamento racional e sem conteúdo útil ou excessiva. Na realidade, e parafraseando Abrantes Geraldes (ob. cit., p. 134), “pretendendo o recorrente a modificação da decisão da decisão da 1ª instância em matéria de facto e dirigindo uma tal pretensão a um tribunal que nem sequer intermediou a produção da prova, é compreensível uma maior exigência no que concerne à impugnação da matéria de facto, impondo, sem possibilidade de paliativos, regras muito precisas.”
A este propósito, pode ler-se no acórdão deste Supremo Tribunal de 18 de junho de 2013 (processo nº 483/08.0TBLNH.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt), e passamos a citar, «(…) fora do Direito Penal não resulta da Constituição nenhuma garantia genérica de direito ao recurso de decisões judiciais. Por outro lado, o princípio constitucional do acesso ao direito e à justiça, expressamente consagrado no citado artigo 20º da Constituição (que “assegura a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”) não consagra o direito ao recurso para um outro tribunal, sendo também certo que não existe disposição expressa na Constituição que imponha o direito de recurso em processo civil, apesar de em processo e em matéria penal, o artigo 32º estabelecer o duplo grau de jurisdição. Alguns autores têm considerado como constitucionalmente incluído no princípio do Estado de direito democrático o direito ao recurso de decisões que afectem direitos, liberdades e garantias constitucionalmente garantidos, mesmo fora do âmbito penal. Em relação aos restantes casos (…) tem-se entendido que o legislador apenas não poderá suprimir ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer. Isto porque a Lei Fundamental prevê expressamente os tribunais de recurso. Mas considera-se que o legislador ordinário tem ampla margem de conformação do âmbito dos recursos. Neste sentido, refere-se no acórdão deste STJ de 6-12-2012 (…) que “são várias as decisões deste Tribunal que não julgaram violadoras da Constituição diversas normas contendo ónus processuais, cujo incumprimento conduz à rejeição de recursos, como, por exemplo, o Acórdão n.º 403/2000 (também disponível na página Internet do Tribunal, em www.tribunalconstitucional.pt e publicado no Diário da República, II Série, n.º 286, de 13 de Dezembro de 2000) - em que se apreciou a conformidade constitucional da exigência, constante do artigo 72.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho de 1981, de arguição de nulidades da sentença no próprio requerimento de interposição do recurso, sob pena de extemporaneidade – ou o Acórdão n.º 122/2002 (igualmente disponível em www.tribunalconstitucional.pt) – no qual o Tribunal não julgou inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 690.°-A do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de o recorrente, sob pena de rejeição do recurso tocante à matéria de facto, dever apresentar, em separado da alegação, a transcrição dactilografada das passagens da gravação em que funda o erro na apreciação das provas.»
E no acórdão de 7 de julho de 2016 (processo nº 220/13.8TTBCL.G1.S1, disponível igualmente em www.dgsi.pt) observa-se o seguinte: «(…) para que a Relação possa apreciar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, tem o recorrente que satisfazer os ónus que lhe são impostos pelo artigo 640º, nº 1 do CPC, tendo assim que indicar: os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, conforme prescreve a alínea a); os concretos meios de prova que impõem decisão diversa, conforme prescrito na alínea b); e qual a decisão a proferir sobre as questões de facto que são impugnadas, conforme lhe impõe a alínea c).
Mas não podemos concordar com tal ponto de vista.
Para além de a CRPortuguesa não garantir o direito ao recurso senão em matéria penal e (segundo alguns) relativamente a decisões que imponham restrições a direitos, liberdades e garantias, e não é o que se passa no caso vertente, a verdade é que o legislador dispõe de uma ampla margem de liberdade na concreta modelação do processo. Daqui que não é incompatível com a tutela constitucional do acesso à justiça a imposição de ónus processuais às partes. Só assim não será se o legislador impuser exigências desprovidas de fundamento racional e sem conteúdo útil ou excessivas, não sendo em particular admissível o estabelecimento de ónus desinseridos da teleologia própria da tramitação processual (v. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, I, pp. 200, 190 e 191). Sucede que a imposição do ónus processual em causa - o contido na alínea c) do nº 1 do art. 640º do CPCivil - e a cominação de rejeição da impugnação da matéria de facto em caso da sua inobservância cabem naturalmente no poder de modelação do processo que assiste ao legislador, da mesma forma que a interpretação desta norma no sentido de possibilidade de tal rejeição ter lugar sem a admissão de convite ao aperfeiçoamento das conclusões não representa uma opção legal desprovida de fundamento racional e sem conteúdo útil ou excessiva. Na realidade, e parafraseando Abrantes Geraldes (ob. cit., p. 134), “pretendendo o recorrente a modificação da decisão da decisão da 1ª instância em matéria de facto e dirigindo uma tal pretensão a um tribunal que nem sequer intermediou a produção da prova, é compreensível uma maior exigência no que concerne à impugnação da matéria de facto, impondo, sem possibilidade de paliativos, regras muito precisas.”
A este propósito, pode ler-se no acórdão deste Supremo Tribunal de 18 de junho de 2013 (processo nº 483/08.0TBLNH.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt), e passamos a citar, «(…) fora do Direito Penal não resulta da Constituição nenhuma garantia genérica de direito ao recurso de decisões judiciais. Por outro lado, o princípio constitucional do acesso ao direito e à justiça, expressamente consagrado no citado artigo 20º da Constituição (que “assegura a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”) não consagra o direito ao recurso para um outro tribunal, sendo também certo que não existe disposição expressa na Constituição que imponha o direito de recurso em processo civil, apesar de em processo e em matéria penal, o artigo 32º estabelecer o duplo grau de jurisdição. Alguns autores têm considerado como constitucionalmente incluído no princípio do Estado de direito democrático o direito ao recurso de decisões que afectem direitos, liberdades e garantias constitucionalmente garantidos, mesmo fora do âmbito penal. Em relação aos restantes casos (…) tem-se entendido que o legislador apenas não poderá suprimir ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer. Isto porque a Lei Fundamental prevê expressamente os tribunais de recurso. Mas considera-se que o legislador ordinário tem ampla margem de conformação do âmbito dos recursos. Neste sentido, refere-se no acórdão deste STJ de 6-12-2012 (…) que “são várias as decisões deste Tribunal que não julgaram violadoras da Constituição diversas normas contendo ónus processuais, cujo incumprimento conduz à rejeição de recursos, como, por exemplo, o Acórdão n.º 403/2000 (também disponível na página Internet do Tribunal, em www.tribunalconstitucional.pt e publicado no Diário da República, II Série, n.º 286, de 13 de Dezembro de 2000) - em que se apreciou a conformidade constitucional da exigência, constante do artigo 72.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho de 1981, de arguição de nulidades da sentença no próprio requerimento de interposição do recurso, sob pena de extemporaneidade – ou o Acórdão n.º 122/2002 (igualmente disponível em www.tribunalconstitucional.pt) – no qual o Tribunal não julgou inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 690.°-A do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de o recorrente, sob pena de rejeição do recurso tocante à matéria de facto, dever apresentar, em separado da alegação, a transcrição dactilografada das passagens da gravação em que funda o erro na apreciação das provas.»
E no acórdão de 7 de julho de 2016 (processo nº 220/13.8TTBCL.G1.S1, disponível igualmente em www.dgsi.pt) observa-se o seguinte: «(…) para que a Relação possa apreciar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, tem o recorrente que satisfazer os ónus que lhe são impostos pelo artigo 640º, nº 1 do CPC, tendo assim que indicar: os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, conforme prescreve a alínea a); os concretos meios de prova que impõem decisão diversa, conforme prescrito na alínea b); e qual a decisão a proferir sobre as questões de facto que são impugnadas, conforme lhe impõe a alínea c).
No caso presente, ainda que se conceda que a apelante haja cumprido o ónus da alínea a) do preceito supra referido, fazendo menção aos concretos pontos de facto incorrectamente julgados (…), não satisfez, no entanto, a imposição da supracitada alínea c), pois não indicou a concreta decisão a proferir sobre os mesmos. Na verdade, a lei não se contenta em que o recorrente diga qual a matéria de facto que considera incorrectamente julgada, impondo-lhe além disso que indique a decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, devendo estas menções integrar o conteúdo das conclusões da sua alegação (…)».
No entanto, a recorrente apenas diz quais os pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, não mencionando em parte alguma das conclusões da sua alegação qual a decisão que deveria ser tomada na sequência da sua impugnação.
Ora, o incumprimento deste ónus tem a cominação prevista no nº 1 do mencionado preceito – rejeição do recurso nesta parte.
Por isso, bem decidiu a Relação ao considerar que a recorrente omitiu a menção à concreta decisão pretendida sobre os pontos da matéria de facto impugnados, pelo que só tinha que rejeitar o recurso nesta parte.
Sustenta a recorrente que ainda que assim fosse, deveria ter-se optado pelo convite à reformulação das conclusões, e não pela rejeição.
No entanto, a recorrente apenas diz quais os pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, não mencionando em parte alguma das conclusões da sua alegação qual a decisão que deveria ser tomada na sequência da sua impugnação.
Ora, o incumprimento deste ónus tem a cominação prevista no nº 1 do mencionado preceito – rejeição do recurso nesta parte.
Por isso, bem decidiu a Relação ao considerar que a recorrente omitiu a menção à concreta decisão pretendida sobre os pontos da matéria de facto impugnados, pelo que só tinha que rejeitar o recurso nesta parte.
Sustenta a recorrente que ainda que assim fosse, deveria ter-se optado pelo convite à reformulação das conclusões, e não pela rejeição.
Mas não tem razão.
Efectivamente, e conforme prescreve o nº 3 do artigo 639º do CPC, quando as conclusões sejam deficientes o relator deve convidar o recorrente a completá-las.
Mas este normativo não é aplicável face à cominação específica que a lei prevê para quem não cumpre os ónus impostos pelo artigo 640º, pois o nº 1 é inequívoco no sentido da rejeição, sem mais, do recurso quanto à impugnação da matéria de facto.
Alega ainda a recorrente que ao não apreciar as questões apresentadas na apelação no que respeita à impugnação da matéria de facto, o acórdão revidendo limitou o seu direito ao recurso, coarctando-lhe o direito de sindicar decisão desfavorável e o direito a tutela jurisdicional efectiva e direito de acesso aos tribunais, o que consubstancia inconstitucionalidade, por violação do artigo 20° da CRP.
Mas também não tem razão.
Efectivamente, é corolário do Estado de Direito a exigência de um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direito.
Por isso que, no artigo 20º/5 da Constituição da República se determina que «Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos»
No entanto, temos de distinguir as situações: de uma parte o direito de acesso aos meios judiciários com vista à salvaguarda e definição do direito para o caso concreto; e de outra, o procedimento definido pelo legislador ordinário quanto ao modo do exercício daquele direito.
Nesta questão da conformação constitucional, suscita a recorrente a questão de saber se as normas ínsitas no artigo 640º, nº 1, coarctam inadequada e irrazoavelmente o direito ao recurso.
Mas não tem razão.
Na verdade, o direito de acesso aos tribunais não impõe ao legislador ordinário que garanta aos interessados o acesso ao recurso de forma ilimitada, sendo por isso, conforme à Constituição da República Portuguesa a imposição de ónus para quem impugna a matéria de facto dada como provada pela 1ª instância.
Nesta conformidade, sem necessidade de mais considerações, imperioso se torna concluir que a posição da Relação de não tomar conhecimento da impugnação da matéria de facto por incumprimento dos ónus legais não viola o princípio do acesso ao direito invocado pela recorrente.»
3. [Comentário] Nem a recorrente, nem o STJ referem ao que está verdadeiramente em causa quando a parte recorrente não cumpre um dos vários ónus de alegação impostos pelo art. 640.º, n.º 1, CPC: o dever de colaboração do tribunal quanto a vícios que são susceptíveis de ser sanados (art. 7.º, n.º 1, e 6.º, n.º 2, CPC).
Discorda-se da posição que o STJ, mais uma vez, assume sobre a desnecessidade do convite ao aperfeiçoamento das alegações do recorrente quando este não tenha cumprido um dos ónus que decorrem do estabelecido no art. 640.º, n.º 1, CPC. Quanto a esta problemática, remete-se para o analisado e afirmado neste post e neste post.
MTS