"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/02/2017

Jurisprudência (557)


Justo impedimento;
incompatibilidade informática


1. O sumário de RL 13/10/2016 (173123/14.0YIPRT.L1-2) é o seguinte:

I. Verifica-se ‘justo impedimento’ (arts. 139 e 140 do CPC) para o envio atempado do recurso através da plataforma citius, se ocorreu uma incompatibilidade entre o browser utilizado pelo advogado e o plug-in para Java usado por aquela plataforma e se prova que o recurso já estava elaborado e o advogado o estava a tentar enviar antes do termo do prazo, tendo a respectiva peça processual chegado ao tribunal 1h27 depois do prazo.
 
II. Um recurso que foi apresentado no primeiro dia depois do termo do prazo não pode ser recusado com fundamento na não verificação do ‘justo impedimento’. O que haveria a fazer, neste caso, seria notificar a parte para efectuar o pagamento da multa devida (art. 139, nºs. 4 a 6, do CPC).
 
2. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte:

"O que o casal de réus queria era que, por um lado, se considerasse que era possível interpor recurso através do envio do requerimento por correio electrónico e, por outro, se considerasse que tinha enviado o respectivo e-mail ainda dentro do prazo do recurso, ou seja, às 23h48 do dia 25/11/2015 [...].

Ora, por um lado, não é verdade que o recurso tenha sido enviado àquela hora. O e-mail das 23h48 de 25/11/2015 sugeria que anexava o recurso, mas não o fazia. O ficheiro electrónico com o recurso só veio com o e-mail da 01h27 de 26/11/2015.

Assim sendo, fica logo resolvida a questão da tempestividade do recurso (no sentido da sua intempestividade), e por isso não se chega a colocar a primeira questão que podia ser colocada, que era a do justo impedimento referido no art. 144/8 do CPC, que se refere a impedimento diferente daquele que está em causa nos arts 139 e 140 do CPC.

Isto é, o art. 144/8 refere-se ao impedimento para a prática dos actos processuais nos termos indicados no n.º 1 – isto é, para a prática de actos por escrito por transmissão electrónica de dados através da plataforma do citius – enquanto o justo impedimento dos arts. 139 e 140 do CPC se refere ao impedimento para a prática atempada dos actos.

Ora, não interessa discutir se, em caso de impedimento para a entrega do recurso através do citius, a parte pode apresentar o recurso através de correio electrónico, se, no caso, também esta apresentação ocorreu para além do prazo. E, tendo sido apresentado no mesmo dia que o recurso que acabou por ser apresentado através da plataforma citius, perdeu autonomia.

Não se deixa de dizer, no entanto, que dificilmente se encontraria justificação para impedir a interpretação, mesmo que extensiva, ou a aplicação analógica da regra do art. 144/8 do CPC, permitindo à parte, no caso de impedimento da entrega através do citius, que enviasse o recurso por correio electrónico, desde que a assinatura electrónica qualificada estivesse certificada nos termos legais (DL290-D/1999, com alterações, a última delas do DL 88/2009, de 09/04 – sobre a assinatura digital, entre o mais, veja-se Pedro Lacerda, A prova por documentos electrónicos, Cadernos de Direito Privado, n.º 54, Abril-Junho 2016, págs. 11 a 29, especialmente págs. 17 e segs). Se a parte, no caso daquele impedimento, o podia fazer através de correio e/ou através de telecópia, porque é que não o poderia fazer através de correio electrónico com assinatura electrónica qualificada e certificada? Neste sentido, aliás, veja-se o ac. do TRC de 20/10/2015, proc. 3389/13.8TBVIS.C1 [Tendo havido impossibilidade (justo impedimento) de a parte praticar o acto processual no sistema informático citius, é legalmente admissível a apresentação (da contestação) por correio electrónico.]. De qualquer modo, repare-se que nos autos também não há prova de que a assinatura do e-mail fosse electrónica qualificada e estivesse certificada.

*

Do justo impedimento dos arts. 139/5 e 140 do CPC.

Os factos descriminados demonstram, no entanto, o seguinte: uma hora e meia depois do termo do prazo, a advogada do casal de réus já tinha enviado para o tribunal o recurso. Este facto é importante, porque indicia desde logo que a advogada dos réus não está a utilizar o ‘justo impedimento’ para alongar o prazo de recurso. O recurso já estava elaborado e ela acabou por o apresentar - bem ou mal não importa neste momento – 1h27 depois do prazo. E no dia a seguir ao termo do prazo ele foi introduzido no citius e foi notificado ao mandatário da outra parte, pelo que o facto, em si, em nada contribuiria para o atraso do processo.

Também aponta nesse sentido, o comportamento processual anterior deste casal de réus e dos seus mandatários, já que nada existe que lhes possa ser apontado no sentido de estarem a tentar atrasar o processo ou a alongar os prazos.

Os outros factos apurados também apontam inequivocamente para o facto de a advogada do casal dos réus ter tentado juntar o recurso pelo menos às 23h48 do último dia do prazo e que não o conseguiu porque o plug-in para Java da plataforma citius não era compatível com o browser que a advogada estava a utilizar. Sendo que esta incompatibilidade existiu a nível geral, como decorre da referência a ter sido objecto de um aviso do organismo que gere o citius em Julho de 2015, ou seja, em termos práticos, cerca de 3 meses antes da situação.

Não há razão nenhuma para se dizer que a Srª advogada soubesse em concreto, na hora, qual a dificuldade técnica que estava a ocorrer; nem que fosse fácil de superar tal dificuldade; também não se sabe o suficiente para dizer que a Srª advogada ao longo dos três meses anteriores já tinha tido a possibilidade de constatar a incompatibilidade em causa. Nem se essa incompatibilidade se manifestava necessariamente em todas as situações de utilização do browser em causa. Por outro lado, não há também razões para pôr em causa o que esta diz de (a) a (g) na sua pronúncia transcrita no ponto 29, atento também o contexto dos factos e o facto de o tipo de situação em causa ser comum a qualquer utilizador deste tipo de tecnologias.

Ora, como diz Lebre de Freitas (já citado pela decisão recorrida) “basta para que estejamos perante o justo impedimento, que o facto obstaculizador da prática do acto não seja imputável à parte ou ao seu mandatário, por ter tido culpa na sua produção. Tal não obsta à possibilidade de a parte ou o seu mandatário ter tido participação na ocorrência, desde que, nos termos gerais, tal não envolva um juízo de censurabilidade.”

E a seguir este autor dá um exemplo significativo do seu entendimento, com particular aplicação ao caso dos autos: “constitui justo impedimento a transmissão electrónica que não se logra fazer minutos antes das 24h por excepcional lentidão do computador do advogado.” (CPC anotado com Isabel Alexandre, 3ª edição, 2014, Coimbra Editora, vol. 1º. págs. 274/275).

É certo, entretanto, que se considera que o advogado, como qualquer titular de uma empresa, deve ter o cuidado de assegurar o regular funcionamento de todos os elementos (incluindo os seus auxiliares) da sua organização que utiliza para a realização do trabalho para que foi mandatado [...].

Daí que, por exemplo, o ac. do TRC de 30/06/2015, 39/14.9T8LMG-A.C1, tenha dito que: “IV - Não integra justo impedimento a avaria do computador do Sr. Advogado subscritor da peça processual, impeditiva da expedição ou remessa da peça processual por transmissão electrónica de dados.” (este acórdão, tal como o anterior, contém inúmeros elementos úteis e extensa fundamentação).

Mas, considera-se, mesmo assim, que, sem prova de mais alguma coisa no caso concreto (por exemplo, algumas daquelas circunstâncias referidas no 4º parágrafo desta parte do acórdão), daqui não decorre que ele seja responsável pela existência de um problema de incompatibilidade de um browser que estava a utilizar com um plug-in utilizado pela plataforma citius, para mais tendo em conta as circunstâncias apuradas (sintetizadas nos dois primeiros §§ desta parte do acórdão)."
 
[MTS]