"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/02/2017

Jurisprudência (559)


Inspecção judicial;
poder discricionário


1. O sumário de RE 3/11/2016 (211/05.2TBARL-E.E1) é o seguinte: 

A decisão de o tribunal realizar uma inspecção ao local (art.º 490.º, Cód. Proc. Civil) não assenta no exercício de um poder discricionário pelo que é susceptível de recurso (art.º 630.º, n.º 1, a contrario). 

2. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte:

"2. Vejamos [...] como analisar a única questão em discussão no recurso – a de saber se o tribunal a quo estava, de algum modo vinculado, a proceder à realização da diligência de inspecção judicial pedida pelos AA., apesar de entender que a mesma não permitiria obter qualquer elemento relevante para a prova de factos em que pudesse assentar a procedência substantiva da pretensão formulada pelos AA. na presente acção.

Comece-se por situar a questão nos seus precisos parâmetros.

Desde logo, está em causa uma diligência de prova que tem o seu assento legal no actual artº 491º do NCPC (de redacção idêntica ao artº 612º do pretérito CPC): «O tribunal, sempre que o julgue conveniente, pode, por sua iniciativa ou a requerimento das partes, e com ressalva da intimidade da vida privada e familiar e da dignidade humana, inspecionar coisas ou pessoas, a fim de se esclarecer sobre qualquer facto que interesse à decisão da causa, podendo deslocar-se ao local da questão ou mandar proceder à reconstituição dos factos, quando a entender necessária.»

Aliás, já o artº 616º do CPC de 1939 apresentava redacção semelhante, com recurso a idêntica fórmula: «(…) sempre que o julgue conveniente, pode, por sua iniciativa ou a requerimento das partes (…)». Ora, o uso dessa fórmula legislativa permitia que ALBERTO DOS REIS sustentasse a natureza discricionária do poder de determinar ou não a realização da diligência, no que seria decisiva a menção à conveniência, permitindo ao tribunal que, ainda que a parte requeresse a diligência, a indeferisse, por entender que a mesma não teria utilidade (cfr. Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p. 315) – o que seria decidido sem possibilidade de haver recurso de tal decisão, por se enquadrar então no artº 679º (e que foi sendo reproduzido em artigo da mesma numeração no anterior CPC e actualmente no artº 630º, nº 1, do NCPC), segundo o qual «não admitem recurso os despachos (…) proferidos no uso legal de um poder discricionário».

Afirmava, a tal propósito, esse autor: «É discricionário o poder conferido ao juiz (…) de ordenar a prova por inspecção judicial; se o juiz indeferir o requerimento em que se peça a inspecção, do despacho não cabe recurso. (…) Se o juiz indefere o requerimento, por entender que não há conveniência alguma em que a inspecção se realize, somos de parecer que o despacho não admite recurso, porque se trata então de despacho proferido no uso de poder discricionário» (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p. 254).

Este entendimento foi retomado por LEBRE DE FREITAS et alii, já à luz do anterior CPC, que passou entretanto a caracterizar como «proferidos no uso legal de um poder discricionário os despachos que decidam matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador», conforme dispunha o artº 156º, nº 4, 2ª parte, desse CPC – numa fórmula que transitou para o actual artº 152º, nº 4, 2ª parte, do NCPC. Esses autores, em anotação ao artº 156º do anterior CPC, incluem, entre os exemplos de despachos proferidos no uso de poder discricionário, o fundado no artº 612º, nº 1, desse Código (Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 299); e, em anotação ao artº 612º do anterior CPC, afirmam que «a prova por inspecção caracteriza-se pela sua oficiosidade, pois só tem lugar quando o tribunal a julgue conveniente. (…) As partes podem requerer a inspecção judicial, mas o juiz pode indeferir o requerimento por, independentemente da atinência aos factos da causa e à seriedade do requerimento, não entender verificada a sua conveniência para a formação da convicção a formar, requisito este de cariz positivo, e já não negativo, do direito à prova por inspecção judicial.» (Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 559). Aliás, nesta anotação alude-se a que o próprio LEBRE DE FREITAS, em escrito anterior, «baseado na letra da lei, entendeu o poder como discricionário» (ibidem). E, ainda que com dúvidas, e dando nota de alguma divergência jurisprudencial, não deixam aqueles autores de reconhecer que «de qualquer modo, a justificação da norma é que, implicando normalmente a inspecção a deslocação do tribunal, esta só deve ter lugar quando tal se afigure útil para o esclarecimento dos factos» (idem, pp. 559-560) – o que sugere uma clara propensão dos autores para aceitar que, dada a menção a um juízo de conveniência do tribunal, se estará perante um poder discricionário, «não podendo consequentemente questionar-se em recurso a decisão de não efectuar a inspecção» (ibidem).

Perante estes elementos doutrinários, tenderíamos a propender para a não-admissão do presente recurso do despacho de indeferimento do pedido de realização da diligência de inspecção judicial, por considerarmos estar-se perante despacho proferido no uso de poder discricionário. Porém, no quadro da querela jurisprudencial a que logo aludem LEBRE DE FREITAS et alii, o certo é tem vindo a ganhar algum ascendente a orientação de que se tratará antes de um poder judicial vinculado. Essa linha de pensamento tem sido enunciada, com escassas variações, nos seguintes termos: «(…) o poder de efectuar a inspecção não é, a nosso ver, um poder discricionário ou arbitrário. É antes um poder-dever, que só poderá deixar de ser exercido no caso da diligência requerida se mostrar de todo desnecessária ou inútil para a descoberta da verdade, o que deverá constar de despacho fundamentado e susceptível de recurso, sob pena de o direito à prova por inspecção, reconhecido no art. 390º do Cód. Civil, ficar na dependência da livre vontade do juiz» (assim, Ac RP de 26/11/2013, Proc. 309/07.2TBLMG.P1, in www.dgsi.pt; e, em sentido idêntico, v. Acs. RE de 12/2/2015, Proc. 487/14.4T2STC.E1, e RG de 12/5/2016, Proc. 190/12.0TBAVV.G2, idem).

Ora, o reforço desta corrente jurisprudencial – que, aliás, se filia em aresto fundador na matéria do nosso Tribunal Supremo (cfr. Ac. STJ de 19/4/95, in CJ/STJ, ano III, tomo II, p. 43 s.) – aconselha prudencialmente a admitir alguma nota de vinculatividade (em homenagem a um direito à prova, como ainda sugerem LEBRE DE FREITAS et alii, ob. cit., vol 2º, p. 559) no exercício desse poder de decisão em relação a requerimento da parte de realização da diligência de inspecção judicial, para desse modo aceitar a recorribilidade de tal decisão.

Mas, mesmo admitindo essa nota de vinculatividade, também se nos afigura que não se deve cair no pólo oposto (em que parece incorrer alguma da mencionada jurisprudência) – o de passar a aceitar como que uma automaticidade na realização da diligência apenas porque requerida pela parte ou ser quase uma impossibilidade o indeferimento da diligência. É que não podemos olvidar que o pertinente preceito legal continua, como antes (e desde o CPC de 1939), a usar a fórmula «sempre que [tribunal] o julgue conveniente» (que já ALBERTO DOS REIS considerava decisiva, segundo a sua própria expressão) e, no fundo, a dizer que a diligência só é realizada quando o tribunal lhe reconheça conveniência para a formação da sua convicção: trata-se do tal requisito positivo, já supra mencionado (e de que falam LEBRE DE FREITAS et alii), o que só pode significar que incumbe à parte demonstrar essa conveniência, e não ao tribunal argumentar no sentido da inconveniência. Ou seja: não sendo inequívoca essa conveniência, não haverá fundamento para a realização da diligência.

Diríamos, pois, que o deferimento da diligência só deve ocorrer quando a mesma se revele manifestamente necessária e útil para a descoberta da verdade. Ou, dito de outro modo: só se impõe a realização da diligência de inspecção judicial quando, perante os elementos de prova disponíveis, seja de admitir uma possibilidade consistente de tal diligência ter relevância na formação da decisão do tribunal sobre a matéria de facto. Apenas com este critério se encontra conteúdo útil para a menção da norma em questão a um juízo de conveniência e se respeita o seu espírito, enquanto nela ainda se remete a aferição dessa conveniência para o prudente juízo do julgador.

Transpondo esta perspectiva das coisas para o caso em apreço, diremos o seguinte: está aqui em causa, afinal, saber se, já depois de produzida toda a demais prova em audiência (como se faz notar no próprio despacho recorrido), ainda seria de admitir que a realização da diligência de inspecção judicial poderia ter utilidade para a formação da convicção do julgador no sentido de ser formulada uma resposta positiva ao quesito 33º («O réu Tobias actuou deste modo para que os requerentes acreditassem que o terreno era edificável e a construção de licenciamento garantido e assim celebrassem os contratos constantes dos autos?»), com pretenderia o recorrente, tanto quanto este revela ser, no fundo, o desiderato último do seu recurso, atento o teor das conclusões IV e V.

Impõe-se, assim, formular um juízo de prognose: trata-se de nos colocarmos na posição do tribunal a quo e de indagarmos se, com o conhecimento da prova já produzida de que aquele dispunha, existiria a possibilidade de ser dado como provado aquele quesito. Como não temos acesso directo à prova produzida (nem tal seria admissível no âmbito do presente recurso), apenas podemos recorrer ao juízo que o próprio tribunal formou sobre a prova apresentada para demonstração do facto inscrito naquele quesito (e que fez constar a posteriori da motivação da decisão de facto, a fls. 218-223 da sentença de fls. 204-234). Ora, quanto às razões pelas quais o tribunal a quo considerou como não provado o quesito 33º (que surge no elenco dos factos não provados sob a al. ab)), ficaram as mesmas muito claras nessa motivação: por um lado, afirmou-se que «a versão do Autor – único a sustentar, de forma directa, a factualidade em causa – perante os restantes elementos de prova já mencionados, o Tribunal não se convenceu do seu desconhecimento relativamente às circunstâncias em que contratou com o Réu e, assim, que os negócios tenham resultado de uma actuação enganosa por parte do Réu que não encontra sustentação na prova produzida, para além das próprias afirmações do Autor»; e, por outro lado, na parte da motivação relativa ao facto não provado sob a al. g), para que o tribunal também remete a propósito da fundamentação quanto à al. ab), e depois de declarar que «independentemente do que os Autores alegam, a verdade é que sabiam, desde o início, a natureza do prédio que se propunham comprar, celebrando a escritura pública nos termos apurados», conclui-se que a «convicção do Tribunal de que o Autor sabia e pretendeu realizar os negócios celebrados nos termos em que o fez, resultantes dados elementos referidos, tornam irrelevante uma deslocação ao local, para verificação do enquadramento da construção em causa. Ainda que lá existam várias construções, concretamente casas habitadas ou prontas a habitar, tal circunstância não apaga as evidências do conhecimento que o Autor tinha da efectiva proibição de construir». Não havendo motivo para qualquer suspeição quanto à genuinidade deste juízo do tribunal a quo, tem de se aceitar como fundada a avaliação do próprio tribunal sobre a insuficiência da prova para a formulação da resposta positiva pretendida pelo recorrente.

Por aqui fica patente, ainda que por esta via indirecta, que o estado da produção da prova, e da formação da convicção do tribunal a partir dessa prova produzida, no momento em que foi considerado o requerimento dos AA. de realização da diligência de inspecção judicial, permitia concluir que a «inspecção judicial ao prédio em causa nos autos e observação das várias construções e habitações existentes na proximidade» (como se referia naquele requerimento) nada acrescentaria à decisão de facto, sendo um mero acto inútil, sem virtualidade para produzir qualquer alteração relevante na formação da convicção do tribunal. E, logicamente, ao claudicar a demonstração da conveniência da diligência, era lícito ao tribunal a quo recusar a realização da mesma, sendo congruente com esse juízo de falta de conveniência a fundamentação que se fez verter no despacho recorrido.

A rematar, diga-se ainda que essa decisão de indeferimento da diligência pelo tribunal a quo não contrariou a anterior decisão desta Relação, determinativa da repetição do julgamento, porquanto, não obstante aí se mencionar a hipótese de realização de uma inspecção judicial, não se deixou também de sublinhar que esta teria lugar eventualmente e apenas se do novo julgamento resultasse tal realização como necessária para a justa composição do litígio – ou seja, e mais uma vez, conferindo ao tribunal a quo o poder de aferição da conveniência da diligência, num integral respeito do critério do legislador de remeter essa aferição para o prudente juízo do julgador. 

Neste conspecto, e por não se vislumbrar razão para pôr em crise a concreta valoração do tribunal a quo quanto à não verificação da conveniência na realização da requerida diligência de inspecção judicial, com os fundamentos que constam da decisão recorrida, entende-se não haver motivo para alterar essa decisão. E, como tal, deverá improceder integralmente a presente apelação."

3. [Comentário] A primeira observação que importa fazer é a de que o sumário não reflecte o decidido no acórdão: ao contrário do que se diz no sumário, o acórdão não entendeu que a decisão de o tribunal realizar uma inspecção ao local não assenta no exercício de um poder discricionário.

A solução do problema analisado no acórdão fica mais facilitada se se tiver presente que, nos termos do art. 630.º, n.º 1, CPC, só não admitem recurso os despachos "proferidos no uso legal de um poder discricionário". Disto resulta que é sempre admissível a interposição de recurso de uma decisão proferida com base num poder discricionário com fundamento em que a mesma é ilegal. Por exemplo: se a recusa da realização de uma inspecção judicial não foi fundamentada ou foi fundamentada no incómodo que a realização da mesma representa para o juiz, a decisão de recusa é recorrível nos termos gerais. 

A orientação adoptada no acórdão, embora sem o referir expressamente, não diverge deste entendimento: a realização da inspecção judicial é, realmente, um poder discricionário do tribunal; no entanto, a legalidade do uso deste poder discricionário é susceptível de ser controlada em recurso.

MTS