"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/02/2017

Jurisprudência (548)


Insolvência;
resolução em benefício da massa insolvente
"padronização" de jurisprudência


1. O sumário de STJ 18/10/2016 (7/13.8TBFZZ-G.E1.S1) é o seguinte:


I - A jurisprudência e a doutrina dominantes têm entendido que, pese embora a epígrafe do art. 123.º do CIRE se referir à “prescrição do direito”, o seu n.º 1 consagra um genuíno prazo de caducidade para o exercício do direito de resolução.

II - Determinando o art. 329.º do CC que “o prazo de caducidade, se a lei não fixar outra data, começa a correr no momento em que o direito puder legalmente ser exercido”, o facto de o n.º 1 do art. 123.º do CIRE se ter referido aos seis meses seguintes “ao conhecimento do ato” não deve implicar a fixação de outra data que não aquele momento em que o direito pode legalmente ser exercido.

III - Partindo da presunção de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (art. 9.º, n.º 3, do CC, que também se refere à presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados), entende-se que a referência ao conhecimento do acto implica o conhecimento da plenitude do mesmo em tudo o que ele releva para efeitos de resolução do contrato.

IV - Apesar de se aceitar que o administrador da insolvência não deva ficar inteiramente inerte ou passivo ao momento em que tem conhecimento da existência dos actos praticados pelo devedor, devendo, por exemplo, pedir esclarecimentos e informações ao devedor – sobre quem incumbe um dever de colaboração –, afigura-se excessivo impor-lhe um dever de investigar ou de averiguar o real conteúdo dos mesmos – por exemplo, impondo-lhe o ónus de, sob pena de caducidade do direito, de pesquisar as conservatórias – sobretudo porque não dispõe de especiais poderes para o efeito.

V - A interpretação referida em III não representa uma ameaça excessiva para a segurança jurídica: (i) em primeiro lugar, além do prazo de seis meses a contar do conhecimento do acto pelo administrador da insolvência, a resolução nunca pode ter lugar decorridos dois anos sobre a data da declaração da insolvência (parte final do n.º 1 do art. 123.º do CIRE); (ii) em segundo lugar, porque a oponibilidade da resolução do acto a transmissários posteriores a título oneroso pressupõe a má fé destes (art. 124.º, n.º 1) e a protecção dos mesmos – que decorre do art. 126.º, n. os 4 e 5 – não deve prevalecer sobre os interesses dos restantes credores e da massa.
 

2. Na fundamentação do acórdão consta o seguinte:

"O presente recurso é admissível, porquanto o Recorrente satisfez o ónus que lhe cabia á luz do n.º1 do artigo 14.º do CIRE de demonstrar a existência de Acórdão contraditórios, no caso de Tribunais da Relação, sobre a mesma questão fundamental de direito.

Essa questão, de resto a única questão que se suscita no presente processo, respeita à fixação do momento inicial para a contagem do prazo previsto no n.º 1 do artigo 123.º do CIRE para o exercício do direito de resolução em benefício da massa insolvente. O Acórdão recorrido sustenta que “esse prazo conta-se desde o conhecimento do acto, ou seja, das partes que nele intervieram, da sua data, do seu objecto e das obrigações dele resultantes para cada uma das partes e não desde o conhecimento pelo administrador da insolvência dos pressupostos que podem fundamentar a resolução”. Em sentido diferente pronunciou-se, no entanto, o mesmo Tribunal da Relação de Évora em outros apensos da insolvência do mesmo Recorrido, AA. Assim, em Acórdão proferido a 30 de Junho de 2015, no âmbito do processo P.7/13.8TBFZZ-F.E1, o Tribunal da Relação decidiu que “o prazo de caducidade do direito de resolução apenas se inicia após o administrador da insolvência ter conhecimento das condições concretas em que o negócio se realizou e de que forma o contrato a resolver foi celebrado”.

É esta, pois, a questão que cumpre decidir.

O já mencionado n.º 1 do artigo 123.º do CIRE estabelece que “a resolução pode ser efetuada pelo administrador da insolvência por carta registada com aviso de receção nos seis meses seguintes ao conhecimento do ato, mas nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência”, permitindo, no entanto o n.º 2 que a resolução possa ser declarada, por via de exceção, sem dependência de prazo enquanto o negócio não estiver cumprido.

A jurisprudência e a doutrina dominantes têm entendido que, pese embora a epígrafe do preceito se referir à “prescrição do direito”, o n.º 1 do artigo 123.º do CIRE consagra um genuíno prazo de caducidade para o exercício do direito de resolução. Aliás, os dois Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora, o Acórdão recorrido e aqueloutro proferido no âmbito de outro apenso da mesma insolvência, convergem neste ponto.

Sublinhe-se, também, que o artigo 329.º do Código Civil determina que “o prazo de caducidade, se a lei não fixar outra data, começa a correr no momento em que o direito puder legalmente ser exercido”. O facto de o n.º 1 do artigo 123.º do CIRE se ter referido aos seis meses seguintes “ao conhecimento do ato” implicará a fixação de outra data que não aquele momento em que o direito pode legalmente ser exercido?

O Acórdão recorrido, que cita, aliás, no mesmo sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10.04.2014, processo 738/12.0TBFAF-J.G1, e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.05.2014, processo 3324/10.5TBSTS-F.P1, invoca, desde logo, a letra da lei, para sustentar que o prazo de caducidade de seis meses “se conta a partir do conhecimento puro e simples, ou seja, do conhecimento das partes nele intervenientes, da sua data, do seu objecto e das obrigações dele resultantes para cada uma das partes”. Afirma-se, no Acórdão recorrido que “o sentido de que esse de seis meses se conta a partir do conhecimento dos pressupostos resolutórios não tem qualquer correspondência na letra da lei” e que se o legislador tivesse a intenção de consagrar tal regime teria optado por uma diferente redacção do preceito, “tendo em conta o efeito gravoso que daí resultava par as partes intervenientes nesses actos”. Esgrime-se, com efeito, o argumento da segurança jurídica e afirma-se que “perante o conhecimento do acto resolúvel, o administrador de insolvência tem que o analisar de forma a avaliar se o mesmo prejudicou a massa insolvente, de forma a poder, se for caso disso impugná-lo no prazo de seis meses, sob pena de caducidade”.

O Acórdão que serve de fundamento para a oposição sublinha que a resolução – como, de resto, este Supremo Tribunal de Justiça tem reiteradamente afirmado – tem que ser fundamentada. Tal resolução, com efeito, “embora não exija para a sua plena eficácia uma justificação completa que esgote todos os fundamentos, deverá (…) conter os elementos fácticos suficientes que permitam ao destinatário saber o porquê da resolução, e essa suficiência deverá ser objecto de análise casuística” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/04/2014). Desta necessidade de fundamentação decorreria que a contagem do prazo só deveria começar a fazer-se a partir do momento em que o administrador está em condições de poder exercer o seu direito de resolução. Em suma, e nas palavras do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25/06/2015, “o prazo de seis meses a que se refere o artigo 123.º do CIRE apenas se inicia após o Administrador da Insolvência ter conhecimento integral da factualidade inerente ao acto em crise”.

Para decidir entre estas duas posições jurisprudenciais, importa ter presente, desde logo, que os pressupostos para o exercício da resolução em benefício da massa insolvente são muito variáveis. Em princípio, exige-se a má fé do terceiro (artigo 120 n.º 4), ainda que esta se presuma nos casos em que tenha participado no acto ou dele tenha beneficiado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, mas em outras situações previstas no artigo 121.º n.º 1 não é requisito para a resolução a má fé do terceiro (com o caveat do n.º 2 do mesmo artigo 121.º). Exige-se, também, o carácter prejudicial do acto (n.º 1 do artigo 120.º), mas certos actos presumem-se prejudiciais à massa sem admissão de prova em contrário (n.º 3 do artigo 120.º) e a resolução “incondicional” prescinde por completo de tal requisito. Em resultado, existem situações em que o simples conhecimento do acto praticado pelo devedor e da data em que ocorreu possibilita a resolução do mesmo: pense-se na hipótese de o devedor ter efectuado a doação de um prédio dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência. Embora a eventual boa fé do donatário tenha interesse em sede dos efeitos da resolução, o simples conhecimento da existência da doação e do seu momento temporal é suficiente para que o administrador possa resolver a doação. Mas mesmo no âmbito do artigo 121.º e do que a lei designa por resolução “incondicional” a situação pode ser muito diversa: assim, mesmo que o devedor tenha vendido um bem no ano anterior à data do início do processo de insolvência o mero conhecimento da venda não é suficiente para que o administrador possa resolver esse contrato. Terá, por exemplo, de averiguar se as obrigações assumidas pelo devedor excedem – e excedem manifestamente (artigo 121.º, n.º 1, alínea h)) – as da contraparte e até qual o modo de pagamento utilizado (artigo 122.º do CIRE). Não será, por conseguinte, suficiente para poder optar pela resolução o mero conhecimento da existência do acto.

Esta heterogeneidade de situações tem que ser tida em conta ao interpretar o artigo 123.º n.º 1. Interpretar o preceito como fixando o prazo de seis meses para o exercício do direito de resolução a partir do conhecimento da mera existência do acto teria como resultado um prazo manifestamente excessivo para certas situações (por exemplo, a resolução de uma doação), mas que se poderia revelar muito curto e até insuficiente para outras, em que se torna necessário determinar, designadamente, quem contratou (caso se trate de um contrato) com o devedor, qual a relação entre eles, qual o conteúdo do acto… Partindo da presunção de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (artigo 9.º n.º 3 do Código Civil, que também se refere à presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados) entendemos que a referência ao conhecimento do acto implica o conhecimento da plenitude do mesmo em tudo o que ele releva para efeitos de resolução do contrato. E atenda-se a que mesmo o Acórdão recorrido, ainda que se refira ao conhecimento puro e simples do acto acaba por atender também ao “conhecimento das partes nele intervenientes, da sua data, do seu objecto e das obrigações dele resultantes para cada uma das partes”.

A divergência entre as duas posições jurisprudenciais resulta de uma diferente concepção dos deveres do administrador nesta sede. Recorde-se, aliás, que alguma doutrina – é o caso de FERNANDO DE GRAVATO MORAIS, em estudo monográfico dedicado a este instituto da resolução em benefício da massa insolvente – defende que ao conhecimento pelo administrador da insolvência deveria ser equiparado o “dever de conhecimento”.

Afirma este autor, com efeito, o seguinte: “Suponhamos, v.g., que o administrador da insolvência porventura tomou conhecimento, em abstracto, da prática de vários actos, mas descurou a sua apreciação em concreto. Parece dever entender-se que essa falta de actuação não pode prejudicar a contraparte dos que negociaram com aquele que se encontra numa situação de insolvência” [FERNANDO DE GRAVATO MORAIS, Resolução em benefício da massa insolvente, Almedina, Coimbra, 2008, p.159]. E acrescenta, ainda, o mesmo autor. “É certo que tal interpretação não é a que mais favorece os credores da massa insolvente, porque esta fica sem bens ou valores que doutra sorte a poderiam integrar. Mas o legislador foi peremptório na fixação de um prazo. E se se negligenciasse o momento em que o administrador da insolvência devia conhecer o circunstancialismo isso significaria, em concreto, um excessivo alargamento do prazo”. Outra doutrina critica o referido prazo de seis meses referindo-se á “necessidade de rapidamente se pôr termo á incerteza quanto ao destino dos atos em causa, tanto mais que em certos casos eles revestem natureza onerosa”, e pondo reservas quanto ao alargamento do prazo operado pelo legislador, de três para seis meses.

Afigura-se excessivo impor ao administrador da insolvência um dever de investigar ou de averiguar o real conteúdo dos atos praticados pelo devedor, mal chegue ao seu conhecimento a existência dos mesmos. Aceita-se que não deva ficar inteiramente inerte ou passivo, devendo, por exemplo, pedir esclarecimentos e informações ao devedor sobre quem incumbe um dever de colaboração, de acordo com o artigo 83.º do CIRE. Mas seria excessivo, sobretudo porque não dispõe de especiais poderes de investigação impor-lhe o ónus, sob pena de caducidade do direito, de pesquisar as conservatórias, a tentar apurar o verdadeiro conteúdo dos actos praticados pelo devedor. Recorde-se que no caso dos autos foi dada como provada a alienação pelo devedor de pelo menos nove prédios, sitos em diferentes localidades, sendo que alguns nem sequer estavam descritos nas competentes conservatórias do registo predial. A tese de que o prazo de seis meses começaria a correr do mero conhecimento da existência do acto conduziria a beneficiar o devedor que praticasse múltiplos actos prejudiciais à massa, mais ou menos complexos, na expectativa de o administrador da insolvência não conseguir descobrir o real conteúdo de todos ou de alguns deles no prazo dos seis meses.

A tese que aqui se acolhe – a de que o prazo de seis meses só deve contar a partir do conhecimento pelo administrador do acto na sua íntegra e, portanto, dos pressupostos de que depende o exercício do direito de resolução não representa, ao contrário do que se pretende, uma ameaça excessiva para a segurança jurídica.

Em primeiro lugar, porque além do prazo de seis meses a contar do conhecimento do acto pelo administrador da insolvência, há sempre que ter em conta que a resolução nunca pode ter lugar “depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência” (n.º 1 do artigo 123.º do CIRE, parte final). Depois porque a oponibilidade da resolução do acto a transmissários posteriores a título oneroso pressupõe a má fé destes (n.º 1 do artigo 124.º). Quanto à contraparte do devedor que veio a ser declarado insolvente, se se tratar de um adquirente a título gratuito, a obrigação de restituir só existirá “na medida do seu enriquecimento, salvo o caso de má fé, real ou presumida” (n.º 6 do artigo 126.º), solução muito criticada pela doutrina mas que permite proteger adequadamente o donatário nos casos, por exemplo, de doação modal ou de doação remuneratória, negócios que a maior parte da doutrina considera serem gratuitos. Relativamente à contraparte a título oneroso – que até pode ser, no caso concreto, a contraparte de um negócio gravemente desequilibrado, como previsto na alínea h) do n.º 1 do artigo 121.º – a sua tutela decorre dos números 4 e 5 do artigo 126.º.

Em suma, a protecção da contraparte que adquiriu a título oneroso não deve prevalecer sobre os interesses dos restantes credores e da massa.

Subscreve-se, pois, a asserção do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25/06/2015, de que “o prazo de seis meses a que se refere o artigo 123.º do CIRE apenas se inicia após o Administrador da Insolvência ter conhecimento integral da factualidade inerente ao acto em crise”. 

3. [Comentário] Chama-se a atenção para que, atendendo ao filtro que consta do art. 14.º, n.º 1, CIRE (a revista só é admissível se o acórdão recorrido estiver em oposição com um outro de uma das Relações ou do STJ), o STJ é chamado a dirimir esse conflito jurisprudencial e a "padronizar" a jurisprudência.

Por razões óbvias que se prendem com o âmbito de aplicação do recurso para uniformização de jurisprudência, o uso das expressões "uniformizar" e "uniformização" deve ser evitada neste contexto. Certo é, no entanto, que a referida "padronização" não deixa de resolver um conflito jurisprudencial e de "uniformizar" a jurisprudência, embora a resolução fique limitada ao caso sub iudice e não possua nenhuma eficácia externa.

O mesmo sucede, naturalmente, em todas as situações em que funcione um semelhante filtro quanto à admissibilidade da revista.

MTS