"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/02/2017

Jurisprudência (564)


Resolução em benefício da massa insolvente;
impugnação; ónus da prova


1. O sumário de RP 7/11/2016 (581/12.6T2AVR-G.P1) é o seguinte:


I - A ação de impugnação da resolução de ato em benefício da massa insolvente em que não sejam invocados factos extintivos do direito de resolução e apenas se impugnem os factos invocados para fundamentar a resolução impugnada é uma acção declarativa de simples apreciação negativa.
 
II - A alegação de inexistência de prejuízo para a massa insolvente ou a inexistência de má fé da contraparte no negócio objeto de resolução não constituem factos extintivos do direito de resolução, mas antes a impugnação dos factos invocados para fundamentar o exercício do direito de resolução pelo administrador da massa insolvente.
 
III - O administrador da insolvência está onerado com a alegação e prova dos factos constitutivos do direito de resolução que exerceu em benefício da massa falida, sem prejuízo do que decorre do princípio da aquisição processual (artigo 515º do Código de Processo Civil).
 
IV - A declaração de resolução deve indicar os concretos fundamentos invocados para legitimar o exercício desse direito potestativo, não podendo a deficiência de fundamentação da declaração de resolução ser suprida na contestação à ação de impugnação da resolução.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O direito de resolução é um direito potestativo de natureza extintiva e, tratando-se de resolução em benefício da massa insolvente, o seu nascimento depende do preenchimento dos requisitos legais [...].

No caso em apreço, os negócios de arrendamento e de compra e venda, porque ocorridos dentro dos quatro anos anteriores ao início do processo de insolvência, são atos resolúveis em benefício da massa insolvente desde que se demonstre a sua prejudicialidade, porquanto não beneficia da presunção prevista no nº 3, do artigo 120º do CIRE.

A nosso ver, na senda da jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça expressa nos fundamentos do acórdão de uniformização de jurisprudência nº 15/2014 (veja-se o ponto 52 do citado acórdão) e de alguma doutrina [Vejam-se: Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris, 2015, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, páginas 301 e 302, anotação 2; Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina 2013, Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões página 165, anotação 3], a previsão do artigo 49º do CIRE é taxativa no que respeita às pessoas aí indicadas e dado que a relação especial relevante para a aplicação desse preceito (artigo 49º, nº 2, alínea c), do CIRE) se verificou mais de dois anos antes da instauração do processo de insolvência, não permite que se conclua pela existência de uma especial relação com o devedor.


Porém, essa relação societária, entrelaçada com relações familiares, associada a uma comunidade, ao menos parcial, do objeto do negócio, não pode deixar de relevar para a aferição do conhecimento da prejudicialidade dos atos resolvidos.

Se o nascimento do direito potestativo de resolução dos atos em benefício da massa insolvente depende dos [...] pressupostos legais, dir-se-á, de forma expedita, que o ónus da prova dos mencionados requisitos legais necessários àquele nascimento compete à massa insolvente [Neste sentido, quanto à prejudicialidade e à má-fé do terceiro veja-se, Resolução em Benefício da Massa Insolvente, Almedina 2008, Fernando de Gravato Morais, páginas 54 e 69], pois é esta entidade que invoca o direito potestativo extintivo a seu favor e que o pretende fazer valer em face da contraparte no negócio resolvido.

A questão que se pode colocar é a de saber se a circunstância de a resolução ser declarada por via extrajudicial e de ser atacada por via de impugnação judicial altera os dados da questão.

A resposta à questão que se acaba de enunciar implica, antes de mais, que se qualifique juridicamente a ação de impugnação da resolução de acto em benefício da massa insolvente.

No seu figurino geral [...], a impugnação, como até o próprio nome indica, visará a negação dos factos invocados pelo Administrador da Insolvência para fundamentar a resolução que extrajudicialmente declarou. Neste circunstancialismo, parece que a qualificação azada a esta ação é a de mera apreciação negativa, na medida em que no referido figurino geral visará tão-só a demonstração da inexistência ou inverificação dos pressupostos legais da resolução declarada pelo administrador da insolvência (artigo 10º, nº 3, alínea a), do Código de Processo Civil).

Na ação de impugnação, o impugnante está apenas, de modo antecipado, a exercer o seu direito à contraprova (artigo 346º do Código Civil), alegando factos que constituem negação dos factos invocados como fundamento do direito de resolução exercido pelo administrador da insolvência ou, noutra vertente, articulando factos extintivos do mesmo direito de resolução.

No entanto, alguma jurisprudência [Vejam-se os acórdãos da Relação de Lisboa de 24 de Setembro de 2009, relatado pelo Sr. Desembargador António Valente, no processo nº 725/06.7TBTVD-I.L1-8 e de 09 de Março de 2010, relatado pelo Sr. Desembargador Pires Robalo, no processo nº 520/06.3TBLNH-F.L1-7, ambos acessíveis no site da DGSI] e pelo menos um autor [Veja-se, Resolução em Benefício da Massa Insolvente, Almedina 2008, Fernando de Gravato Morais, página 167, que começa por referir, de forma correta, a nosso ver, que cabe ao impugnante o encargo de provar todos os factos extintivos do direito de resolução invocado, para depois afirmar, inexplicavelmente e em contradição com o que anteriormente afirmara na página 54, que compete ao impugnante a demonstração de que o ato não foi prejudicial à massa insolvente], sustentam que cabe aos impugnantes a demonstração da inexistência de prejuízo para a massa insolvente e de má-fé da sua parte [...], olvidando-se quer a natureza da ação de impugnação da resolução em benefício da massa insolvente, quer ainda a natureza de simples contraprova das alegações de inexistência de prejudicialidade no acto resolvido [...] ou da má-fé por parte do terceiro interveniente no acto objeto de resolução, neste último caso sempre que o autor da resolução não beneficie de uma presunção legal juris tantum de má-fé.

Ora, a alegação de inexistência de prejuízo para a massa insolvente ou a inexistência de má-fé da contraparte no negócio objeto de resolução não constituem factos extintivos do direito de resolução, mas antes a impugnação dos factos invocados para fundamentar o exercício do direito de resolução pelo administrador da massa insolvente.

Só se pode falar de um facto extintivo de um direito quando previamente existem um ou vários factos constitutivos que originaram esse direito. 

É manifesto que a alegação da inexistência de prejudicialidade ou de má-fé não constituem factos extintivos do direito de resolução, sendo antes a negação dos factos necessários ao nascimento do direito de resolução que por via extrajudicial foi exercido pelo administrador da insolvência. 

A inexistência de prejudicialidade ou de má-fé alegadas pela impugnante, a provarem-se, não determinam a extinção de um direito potestativo, antes contendem com o nascimento desse direito, pois integram a negação dos factos constitutivos daquele direito.

Se o nascimento desse direito potestativo depende da prejudicialidade do acto e da má-fé do terceiro, a alegação da inexistência de prejudicialidade ou de má-fé não constituem qualquer facto impeditivo do nascimento do direito em apreço. É que em tal caso não se trata de defesa por exceção peremptória, mas antes e simplesmente de uma defesa por impugnação antecipada que pode ou não ser motivada [...].

Na verdade, tais alegações, ainda que envolvam a alegação de factos novos, o que sucede em regra na impugnação motivada, caso se provem, não obstam à produção ab initio dos efeitos jurídicos próprios do direito de resolução [...], antes contendem com o próprio nascimento do direito em apreço [No sentido que nos parece correcto em termos de repartição do ónus da prova, veja-se, ainda que de forma assertiva, o acórdão do Tribunal de Guimarães de 05 de Novembro de 2009, relatado pela Sra. Desembargadora Conceição Bucho, no processo nº 5583/05.6TBBCL.G1, acessível no site da DGSI].

Assim, por tudo quanto precede, sustentamos que compete ao administrador da insolvência a alegação e prova dos factos constitutivos do direito de resolução que exerceu, sem prejuízo do que decorre do princípio da aquisição processual (artigo 515º do Código de Processo Civil)."


3. [Comentário] Ainda que se admita que a acção de impugnação da resolução em benefício da massa insolvente possa ser qualificada como uma acção de apreciação negativa, não se pode aceitar que o ónus da prova caiba ao administrador de insolvência demandado naquela acção.

A repartição do ónus da prova nas acções de apreciação negativa não pode replicar o regime próprio das acções de jactância medievais, nas quais competia ao demandado provar a veracidade das suas afirmações. O disposto no art. 343.º, n.º 1, CC tem de ser interpretado à luz desta realidade, devendo entender-se -- aliás, de acordo com o próprio sentido literal do preceito -- que o ónus da prova só cabe ao réu quanto aos factos constitutivos que ele alegar (mas já não quanto aos factos invocados pelo autor e que ele impugnar). 

Aliás, se, como se diz no acórdão, a acção de impugnação visa a "demonstração da inexistência ou inverificação dos pressupostos legais da resolução declarada pelo administrador da insolvência", não se percebe como é o que o ónus da prova pode competir ao administrador da insolvência, porque então o que este pode provar é a existência ou a verificação dos pressupostos legais da resolução por ele declarada. Sendo assim, é indiscutível que aquelas "inexistência ou inverificação" só podem ser provadas pelo autor impugnante.

MTS