"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/02/2017

Jurisprudência (556)


Direito de retenção; acórdão de uniformização;
aplicação no tempo


1. O sumário de RP 25/10/2016 (343/09.8TBILH-B.P1) é o seguinte:

I - A solução decretada pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014 deve ser alvo de uma aplicação restritiva, nos termos da qual o direito de retenção do promitente-comprador, nos termos da al. f) do nº 1 do art. 755º do C. Civil, em caso de insolvência do promitente-vendedor, depende, além da tradição do imóvel negociado, da sua qualidade de consumidor.

II – Por ser facto constitutivo do seu direito, é ao promitente-comprador que cabe a alegação e prova dessa qualidade de consumidor, a aferir em face do n.º 1 do art. 2.º da Lei n.º 24/96, de 31-07.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] a questão a resolver prende-se com a hipótese de não reconhecimento do direito de retenção ao impugnante, por este não destinar a fracção a uso pessoal, não podendo considerar-se um “consumidor” digno da específica tutela a esta classe conferida.

A este respeito, importa afirmar antes de mais que nenhum efeito se reconhece à referência dos apelantes [...] a uma incompreensão quanto ao juízo negativo proferido sob o quesito 20º da base instrutória, que resultou em dar-se por não provado que o impugnante sempre quis a fracção em causa para a vender. Com efeito, não foi impugnada a decisão sobre a matéria de facto quanto a tal factualidade, pelo que nada se deve acrescentar a esse respeito, não se devendo considerar esse facto na discussão. Tal como, aliás, se não poderá considerar a afirmação constante da conclusão 72ª, segundo a qual o impugnante C… não poderá ter-se por consumidor por se dedicar há largos anos à construção e arrendamento de imóveis. Tal matéria não consta dos factos provados.

Em qualquer caso, a questão prende-se com a subsunção do caso à solução definida pelo Ac. de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014, de 30/3/2014, que dispôs da forma seguinte: “No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil.”

Todavia, esclareceu-se ulteriormente em sucessivas decisões que tal solução jurisprudencial deve ser alvo de uma aplicação restritiva, fundada no escopo da solução legal em questão, nos termos da qual, para que se reconheça o direito de retenção do promitente-comprador, se tem de exigir que este, além de ter obtido a tradição do imóvel negociado, revista a qualidade de consumidor prevista no n.º 1 do art. 2.º da Lei n.º 24/96, de 31-07. É esse, por exemplo, o caso do Ac. do STJ de 14/10/2014, proferido no processo nº .2TBF
986/12AF-G.G1.S1, onde se afirmou competir ao credor reclamante (promitente-comprador) a alegação e prova da qualidade de consumidor, por aplicação da regra geral do art. 342º, nº 1 do C. Civil (no mesmo sentido, entre outros, cfr. o Ac. do STJ de 25/1/2014, proc. nº 7617/11.6TBBRG-C.G1.S1, em dgsi.pt).

Acresce que, a nosso ver, a asserção constante do Ac. do STJ de 29/5/2014 citado na decisão recorrida, nos termos da qual «do conceito de “consumidor” inserto no texto da uniformização só está excluído aquele que adquire o bem no exercício da sua actividade profissional de comerciante de imóveis» deve ser entendida no contexto da própria decisão, onde se discutia o reconhecimento da qualidade de consumidor a um promitente-comprador de uma fracção onde instalara um estabelecimento comercial de um qualquer ramo que não o imobiliário. Não pomos em causa a solução ali decretada, segundo a qual esse promitente-comprador era, quanto àquela fracção, um consumidor, pois que ela própria não era objecto da sua actividade comercial. Só que essa solução nos parece indiferente para o caso em apreço, onde uma tal qualidade de consumidor se não identificou para C…, como infra se verificará.

Entendemos, então, que o conceito de consumidor utilizado na jurisprudência em questão não pode deixar de ser o conceito legal de consumidor, estabelecido no nº 1 do art. 2º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho (Lei de Defesa do Consumidor), nos termos da qual se considera “consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.” Mal se compreenderia, aliás, que na definição de uma solução de uniformização de jurisprudência fosse utilizado um conceito com uma expressa definição legal, sem que fosse esse o conteúdo pressuposto para tal conceito.

Assim, tal como consta do Ac. do STJ de 14/10/2014 supra citado e se deixou antever no Acórdão de Uniformização nº 4/2014, para beneficiar do direito de retenção, o promitente-comprador - in casu o impugnante C… - está onerado com a alegação e demonstração da sua qualidade de consumidor, para o que deveria ter alegado e demonstrado que a fracção em questão não se destinava a qualquer aproveitamento comercial, mas sim ao seu uso ou da sua família."

3. [Comentário] Não se discute a interpretação restritiva que (habitualmente) é feita do Ac. STJ 4/2014, de 19/5. O único reparo que se pode fazer ao acórdão da RP é o de não ter controlado se a aplicação do estabelecido no Ac. STJ 4/2014 a factos anteriores à sua publicação era justificada. 

Dado que a aplicação dos acórdãos de uniformização a factos anteriores à sua publicação é uma questão sensível, não parece que a RP pudesse ter decidido como decidiu sem ter analisado a aplicação no tempo do Ac. STJ 4/2014. O controlo teria sido necessário, mesmo que fosse para concluir pela aplicação da doutrina estabelecida no Ac. STJ 4/2014 ao caso concreto.

MTS