Declarações de parte;
audiência final; adiamento
I. O sumário de RL 22/2/2018 (15056/16.6T8LSB.L1-6) é o seguinte:
1.– Da conjugação dos artºs 650º, nº4, 651º, 654º e 656º,nº2 , todos do CPC , imperioso é concluir que, o CPC, no que concerne à audiência de discussão e julgamento, estabelece por um lado um princípio básico ou regra geral, qual seja o da respectiva continuidade, mas, excepcionalmente, admite já em concretas e típicas situações, a possibilidade, quer da respectiva interrupção, quer do seu adiamento.
2.– A falta, justificada, da parte que haja requerido a prestação de declarações sobre factos em que tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento directo, deve consubstanciar fundamento para a interrupção da audiência, pois que, estando impossibilitada de comparecer, e , consequentemente de exercer um direito que lhe assiste [cfr. nº 1, do artº 466º, do CPC], não se descortina existir fundamento pertinente que obste à interrupção da audiência tendo em vista possibilitar-lhe a prestação de declarações de parte já requeridas e deferidas.
3.– De resto, não se descortina existir fundamento legal que permita distinguir [em termos discriminatórios e desiguais] a prova por depoimento de parte da prova por declarações de parte, a ponto de, permitindo o primeiro a interrupção da audiência para que seja prestado , já as segundas o não permitiriam.
4.– No seguimento do referido em 4.1 a 4.3., e ao não interromper a audiência de modo a possibilitar a sua continuação em nova data de forma a possibilitar a prestação do meio de prova pela autora requerido (prova por declarações de parte), em última análise incorreu o tribunal a quo na prática de irregularidade que, porque tem evidente influência no exame e decisão da causa, consubstancia o cometimento de uma nulidade (cfr. art.º 195º, n.º1, do CPC).
II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"3.–Motivação de Direito.
3.1.-Aferir se, impedido estava o tribunal de ter realizado o julgamento, antes devia ter deferido o requerido adiamento, nos termos do instrumento atravessado nos autos pela autora a 27/9/2017.
3.1.-Aferir se, impedido estava o tribunal de ter realizado o julgamento, antes devia ter deferido o requerido adiamento, nos termos do instrumento atravessado nos autos pela autora a 27/9/2017.
É entendimento da apelante que, tendo atravessado nos autos, em 27/9/2017 [dia anterior ao designado para a audiência], um requerimento a solicitar o adiamento da audiência, porque impedida de comparecer em razão de à mesma hora dever comparecer a uma consulta de senologia, imprescindível e inadiável em razão do seu estado de saúde, obrigado estava o tribunal a quo em ter adiado a audiência [o que não fez], tanto assim que, à mesma faltou também o seu mandatário e, ademais, foi a falta da autora considerada de imediato como justificada.
Pronunciando-se sobre o requerimento da autora de 27/9/2017, recorda-se, despachou o tribunal a quo [...], nos seguintes temos :
“Relativamente ao requerimento da autora de 27/09/2017, considera-se justificada a falta da autora, indicada que estava para prestar depoimento de parte, mas indefere-se o requerido adiamento desta audiência de julgamento por falta de fundamento legal, sem prejuízo da possibilidade da designação de outra data para a sua continuação com o depoimento de parte da autora.
Vão as testemunhas faltosas condenadas na multa de 1 Uc caso não justifiquem a sua falta no decurso do prazo legal”.
Será que, como o considera a apelante, obrigado estava o tribunal a quo em ter adiado a audiência?
Vejamos.
Sob a epigrafe de “ Realização da audiência “, reza o artº 603º do CPC que:
1- Verificada a presença das pessoas que tenham sido convocadas, realiza-se a audiência, salvo se houver impedimento do tribunal, faltar algum dos advogados sem que o juiz tenha providenciado pela marcação mediante acordo prévio ou ocorrer motivo que constitua justo impedimento.
2- Se a audiência for adiada por impedimento do tribunal, deve ficar consignado nos autos o respectivo fundamento; quando o adiamento se dever à realização de outra diligência, deve ainda ser identificado o processo a que respeita.
3- A falta de qualquer pessoa que deva comparecer é justificada na própria audiência ou nos cinco dias imediatos, salvo tratando-se de pessoa de cuja audição prescinda a parte que a indicou.
Por sua vez, dizem-nos os nºs 1 a 3, do artº 150º, do mesmo diploma legal, que :
1- A fim de prevenir o risco de sobreposição de datas de diligências a que devam comparecer os mandatários judiciais, deve o juiz providenciar pela marcação do dia e hora da sua realização mediante prévio acordo com aqueles, podendo encarregar a secretaria de realizar, por forma expedita, os contactos prévios necessários.
2- Quando a marcação não possa ser feita nos termos do número anterior, devem os mandatários impedidos em consequência de outro serviço judicial já marcado comunicar o facto ao tribunal e identificar expressamente a diligência e o processo a que respeita, no prazo de cinco dias, propondo datas alternativas, após contacto com os restantes mandatários interessados.
3- O juiz, ponderadas as razões aduzidas, pode alterar a data inicialmente fixada, apenas se procedendo à notificação dos demais intervenientes no ato após o decurso do prazo a que alude o número anterior.
Conhecidas as disposições legais pertinentes para a solução da questão ora em análise, e descendo agora à tramitação dos autos, verifica-se que a audiência de julgamento foi designada em sede de diligência de audiência prévia, do dia 13/2/2017, e à qual não compareceu o ilustre mandatário da Autora, razão porque não foi então possível designar a audiência de julgamento com o acordo prévio de todos os mandatários judiciais (nos termos do nº1, do artº 151º, do CPC e tendo presente o disposto na alínea g), do nº1, do artº 591º, do mesmo diploma legal [dispondo a mesma que: Concluídas as diligências resultantes do preceituado no n.º 2 do artigo anterior, se a elas houver lugar, é convocada audiência prévia, a realizar num dos 30 dias subsequentes, destinada a algum ou alguns dos fins seguintes: g) Programar, após audição dos mandatários, os actos a realizar na audiência final, estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e designar as respectivas datas.].
Mais se constata que, designada em 13/2/2017 a data da audiência para o dia 28/9/2017 [com uma antecedência de mais de 6 meses], não veio o ilustre mandatário da autora, no prazo de 5 dias [cfr. nº 2, do artº 151º, do CPC], invocar qualquer impedimento profissional, propondo datas alternativas.
Consequentemente, devendo a data da audiência considerar-se como tendo sido acordada com os mandatários , pelo menos tacitamente e nos termos do nº2, do artº 151º, do CPC, e não existindo qualquer outro fundamento subsumível no artº 603º,nº1, do CPC, manifesto é que a falta do Advogado da Autora não consubstanciava motivo legal para o adiamento da audiência.
Neste conspecto, recorda-se que, como bem se nota em recente Ac. deste Tribunal da Relação de Lisboa (Cfr. Ac. de 06-12-2017, Proc. nº 1734/13.5TBTVD.L1-7, sendo Relator CARLOS OLIVEIRA [...]), “A reforma de 2013 restringiu as causas de adiamento da audiência final em caso de falta do advogado, apenas admitindo essa possibilidade no caso de a audiência não ter sido marcada com o acordo prévio dos mandatários ou em situações de justo impedimento “.
Por outra banda, e agora socorrendo-nos do entendimento do Tribunal da Relação de Guimarães (Cfr. Ac. de 25-06-2013 [Proc. nº 3771/11.5TBVCT.G1, sendo Relatora RAQUEL REGO] e de 07-01-2016 [Proc. nº 136696/14.6YIPRT-A.G1, sendo Relatora CONCEIÇÃO BUCHO] [...]), é outrossim nossa convicção que, não tendo a data da audiência de julgamento sido designada com o acordo prévio de todos os mandatários das partes, a sua designação configura-se como potencialmente provisória durante cinco dias [período durante o qual podem os mandatários vir aos autos comunicar o seu impedimento em consequência de outro serviço judicial já marcado], sendo que, caso nada digam/requeiram, deve entender-se, tendo em conta o seu dever de cooperação relativo à informação da existência de impedimento, tratar-se, de um acordo tácito. (Cfr. ainda Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, in Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2013, Vol. I, Os Artigos da Reforma, Almedina).
Não existindo fundamento legal para o adiamento da audiência em razão da falta do ilustre mandatário da autora, menos pertinência tem o alegado pela autora no sentido de que, com base na sua própria falta, de resto justificada, deveria a audiência ter sido adiada, e isto porque, além de ter sido requerido o seu depoimento de parte [pela parte contrária], requereu outrossim a prestação de declarações de parte , nos termos do artº 466º, do CPC.
É que, para todos os efeitos, os casos de adiamento da audiência [quando a mesma não chega a iniciar-se e a realizar-se na data designada, cfr. artº 604º,nº1, do CPC], são apenas os que se mostram expressis verbis elencados no n.º 1 do artº 603º do CPC, e, para todos os efeitos, da referida norma não consta a menção/indicação da falta da parte e/ou de testemunha, ou até de qualquer outra pessoa que à mesma deva comparecer.
Em suma, nada obrigava [com base na falta da autora e do seu ilustre mandatário] ao adiamento da audiência, devendo a mesma realizar-se, porque não existindo razões para tal - cfr. nº1, do artº 604º, do CPC.
Mas, devendo a audiência iniciar-se com a realização dos actos elencados nos nºs 2 e 3 do artº 604º do CPC, a questão que agora se suscita/coloca é a de saber se não deveria a mesma ter sido interrompida antes das alegações orais, designando-se uma data para a sua continuação e tendo em vista possibilitar a prestação pela autora das declarações de parte que requereu, e as quais foram objecto de despacho de deferimento proferido em sede de audiência prévia e com o seguinte conteúdo “Admitem-se as declarações de parte da autora a toda a matéria, assim como o rol de testemunhas apresentado com a petição inicial (fls.28), e o rol de testemunhas apresentado pela Ré Allianz na sua contestação (fls. 143).
Ora bem.
Com relevância para a referida matéria, diz-nos o nº 2, do artº 606º, do CPC [com a epígrafe de Publicidade e continuidade da audiência], que “A audiência é contínua, só podendo ser interrompida por motivos de força maior ou absoluta necessidade ou nos casos previstos no n.º 1 do artigo anterior”.
E, o nº 3, do mesmo dispositivo, logo acrescenta que, “Se não for possível concluir a audiência num dia, esta é suspensa e o juiz, mediante acordo das partes, marca a continuação para a data mais próxima; se a continuação não ocorrer dentro dos 30 dias imediatos, por impedimento do tribunal ou por impedimento dos mandatários em consequência de outro serviço judicial já marcado, deve o respectivo motivo ficar consignado em acta, identificando-se expressamente a diligência e o processo a que respeita”.
Aqui chegados, e da conjugação de todas as disposições legais acima indicadas, imperioso é concluir, desde logo, que o CPC, no que concerne à audiência de discussão e julgamento, estabelece por um lado um princípio básico ou regra geral, qual seja o da respectiva continuidade, mas , excepcionalmente, admite porém em concretas e típicas situações, a possibilidade, quer da respectiva interrupção, quer do seu adiamento.
Analisada já a última situação referida, e relativamente à possibilidade de interrupção da audiência, diversas são as situações conjecturáveis que a podem provocar , v.g. a junção de documento e existindo grave inconveniente no prosseguimento da audiência nos termos do artº 424º,do CPC, a falta de testemunha não prescindida e que não tenha comparecido por impedimento legítimo - cfr. artº 508º,nº3, alínea b), do CPC - e, também a apresentação de um novo articulado ( superveniente) e não prescindindo a parte contrária do prazo de 10 dias para a resposta ( cfr. artº 589º,nº2, alínea b), do CPC .
No nosso entendimento, também a falta, justificada, da parte que haja requerido a prestação de declarações sobre factos em que tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento directo, deve consubstanciar fundamento para a interrupção da audiência, pois que, estando impossibilitada de comparecer, e , consequentemente de exercer um direito que lhe assiste [cfr. nº1, do artº 466º, do CPC], não se descortina existir fundamento pertinente que obste à interrupção da audiência tendo em vista possibilitar-lhe a prestação de declarações de parte já requeridas e deferidas. (É o entendimento que prima facie defende Elizabeth Fernandes, in Um Novo Código de Processo Civil? , Em busca das diferenças, 2014, pág. 35..)
Acresce que, pertinente não é que as declarações de parte devam à partida ser consideradas como um meio de prova menor, devendo por regra ser desvalorizadas e prematuramente arredadas e desprovidas de qualquer utilidade em termos de valor probatório, e com base em raciocínio/preconceito de que “ não acredito na parte porque é parte “ , pois que, ao julgador compete, em primeiro lugar, valorar a declaração da parte e, só depois, a pessoa da parte, sob pena de estar a prejulgar as declarações e a incorrer no viés confirmatório (Cfr. Luís Filipe Pires de Sousa, in Prova Testemunhal, 2013, Almedina, págs. 363 e segs.).
De resto, nada obsta sequer que, “ em última instância, possam as declarações de parte constituir o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação“. (Cfr. Luís Filipe Pires de Sousa, ibidem, pág.)
Isto dito, compulsados os autos, verifica-se que o tribunal a quo, não obstante ab initio ter ponderado/admitido a possibilidade de ter de interromper a audiência para , em nova data a designar, permitir a prestação do depoimento de parte da autora, vem posteriormente a dar como concluída a instrução da causa, concedendo a palavra ao mandatário presente da Ré para alegações, e isto porque, este último, acaba por prescindir do requerido depoimento de parte da autora faltosa.
Ou seja, para o tribunal a quo, apenas não prescindindo a Ré do depoimento de parte da autora, haveria lugar à interrupção da audiência, o que já não deveria ocorrer em relação às declarações de parte pela própria autora requeridas e para todos os efeitos pelo tribunal admitidas.
No nosso entendimento, não se descortina existir fundamento legal que permita distinguir [em termos discriminatórios e desiguais] a prova por depoimento de parte da prova por declarações de parte, a ponto de, permitindo o primeiro a interrupção da audiência para que seja prestado , já as segundas o não permitem, sendo que, para todos os efeitos, e ao invés do depoimento de parte [ que apenas pode ser requerido em relação à parte contrária ou ao comparte - cfrº artº 453º,nº3, do CPC], já a prestação de declarações de partepode ser requerida pela própria parte [que não pela parte contrária (Cfr. CAROLINA MARTINS, in Declarações de Parte, Universidade de Coimbra, 2015, pág. 27)] até ao início das alegações orais em 1ª instância - cfr. artº 466º, nº1, do CPC.
Ou seja, não faz qualquer sentido que o tribunal a quo, ainda que implicitamente,tenha desvalorizado o meio de prova das declarações de parte, considerando-o como irrelevante e inútil enquanto meio capaz de provocar a interrupção da audiência.
E menos sentido faz ainda a referida e implícita desvalorização quando, em face do objecto do processo, alguns factos integrantes do thema probandum são por natureza revéis à prova documental, testemunhal e mesmo pericial, nomeadamente porque relacionados com “factos de natureza estritamente doméstica e pessoal que habitualmente não são percepcionados por terceiros de forma directa“ (Cfr. ELIZABETH FERNANDEZ, “Nemo Debet Essse Testis in Propria Causa? Sobre a (in)Coerência do Sistema Processual a Este Propósito”, in Julgar Especial, Prova Difícil, 2014, pág. 37), e factos respeitantes a “acontecimentos do foro privado, íntimo ou pessoal dos litigantes“ (Cfr. REMÉDIO MARQUES, in “A Aquisição e a Valoração Probatória de Factos (Des) Favoráveis ao Depoente ou à Parte”, Julgar, jan-abr. 2012, Nº16, pág. 168), caso em que a recusa do tribunal em admitir e valorar livremente as declarações favoráveis do depoente pode implicar “ uma concreta e intolerável ofensa do direito à prova, no quadro da garantia de um processo equitativo e da tutela jurisdicional efectiva dos direitos subjectivos e das demais posições jurídicas subjectivas “ (Cfr. REMÉDIO MARQUES, ibidem, pág. 168) .
Por último, e socorrendo-nos das doutas considerações explanadas em Acórdão proferido por este mesmo Tribunal da Relação de Lisboa, de 29/4/2014 (Proferido no Proc. nº 211/12.6TVLSB.L1-7, sendo Relatora CONCEIÇÃO SAAVEDRA [...]), recorda-se que “Estamos, por conseguinte, no âmbito mais amplo do direito que assiste à parte de provar os factos por si alegados e que sustentam a sua pretensão, ou mesmo de fazer a contraprova dos factos contra si invocados, no quadro do direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efectiva (art. 20º da C.R.P.), pelo que, nessa medida, é a cada uma das partes que incumbe eleger os meios de prova adequados à demonstração com que está onerada ou que, de algum modo, convém à prossecução dos seus interesses”.
Aqui chegados, no seguimento das considerações acabadas de aduzir, e ao não interromper a audiência de modo a possibilitar a sua continuação em nova data de forma a possibilitar a prestação do meio de prova pela autora requerido ( prova por declarações de parte ), em última análise incorreu o tribunal a quo na prática de irregularidade que, porque tem evidente influência no exame e decisão da causa, consubstancia o cometimento de uma nulidade ( cfr. art.º 195º, n.º1, do CPC).
E, estando a referida irregularidade acobertada em expresso despacho judicial proferido, pertinente é que possa a mesma ser invocada em sede de apelação interposta para a sentença judicial proferida pelo tribunal a quo e que pôs termo à acção.
Em suma, a apelação procede, impondo-se a revogação da sentença apelada, e, consequentemente, a obrigatoriedade de o tribunal a quo reabrir a audiência de julgamento, em nova data a designar, de forma a possibilitar a prestação do meio de prova [pela parte requerido, e deferido pelo tribunal a quo, não tendo porém sido possível ter sido prestado por impedimento/falta justificada da própria parte] a que alude o artº 466º, do CPC."
[MTS]