"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/12/2018

Jurisprudência 2018 (137)


Desistência da penhora; 
reclamação de créditos

1. O sumário de RP 11/7/2018 (247/04.0TVPRT-C.P1) é o seguinte:

I - O credor reclamante vem ao processo executivo invocar um crédito de que é titular e, após a verificação do mesmo, passa a ter um estatuto processual próprio, passando a assumir a posição de parte na ação executiva.

II - A aplicação dos princípios constitucionais e infraconstitucionais aplicáveis à ação executiva, a análise do estatuto legal do credor reclamante e o elemento teleológico das normas jurídicas de proteção dos direitos dos credores reclamantes, levam-nos a concluir que, se a prossecução da penhora se justifica na situação de extinção da execução, nenhuma razão existe para, na situação de mera desistência da penhora pelo Exequente, não se aplicar a mesma solução legal.

III - Não existindo norma expressa, deve proceder-se à aplicação analógica dos art.º 809.º, n.º 4, e 850.º, n.º 2, do CP Civil, admitindo-se o prosseguimento da execução quanto ao bem penhorado, assumindo a Reclamante a posição de Exequente, para pagamento do seu crédito reclamado.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"No presente recurso, a Credora Reclamante/Recorrente sustenta – em síntese – que, com a admissão liminar da reclamação de créditos, nos termos do artigo 789.º, n.º 1, do Código de Processo Civil [...], o credor reclamante torna-se parte principal não só na ação de verificação e graduação de créditos, como, também, na ação executiva, com uma posição de co-exequente ou parte principal em litisconsórcio com o exequente.

Advoga que a desistência da penhora por parte do exequente não pode prejudicar a satisfação do crédito reclamado, já admitido liminarmente, pelo produto da venda do bem penhorado, sendo-lhe concedida, para tanto, a prerrogativa do prosseguimento da execução, com a manutenção da penhora daquele bem.

Defende que, não sendo a situação sub judice expressamente tratada nem prevista no CP Civil, torna-se necessário recorrer às regras de analogia de acordo com o disposto no artigo 10.º do Código Civil, aplicando-se-lhe o regime imposto pelo n.º 4 do artigo 809.º do CPC, segundo o qual “desistindo o exequente da garantia, o requerente assume a posição do exequente, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos n.º 2 a 4 do artigo 850.º”.

Cumpre decidir.

Os factos com interesse para a apreciação do presente recurso são os contantes do relatório.

A decisão do tribunal recorrido assenta na disposição legal do n.º 2 do art.º 850.º do CP Civil, a qual versa efetivamente e diretamente apenas situações de extinção da execução, ao definir que “Também o credor reclamante, cujo crédito esteja vencido e haja reclamado para ser pago pelo produto de bens penhorados que não chegaram entretanto a ser vendidos nem adjudicados, pode requerer, no prazo de 10 dias contados da notificação da extinção da execução, a renovação desta para efetiva verificação, graduação e pagamento do seu crédito.”´

No entanto, em termos práticos, esta posição implica a inutilidade da reclamação de créditos e obriga a Reclamante a intentar nova ação executiva para satisfação do seu crédito, com a repetição de todos os atos processuais já praticados nestes autos e com o inerente dispêndio quer de quantias pecuniárias suplementares, quer de tempo. Em síntese, diremos que o direito do credor reclamante à satisfação do seu crédto fica atingido com intensidade.

A questão pertinente é, portanto, a de decidir se esta será a solução conforme aos princípios e disposições legais aplicáveis às execuções.

Desde logo, em termos constitucionais, o Acórdão do Tribunal Constitucional de 28 de abril de 2010 [...] relembra que esse Tribunal “tem sempre dito, em jurisprudência firme, que o direito de propriedade a que se refere o artigo 62.º da Constituição “não abrange apenas a proprietas rerum, os direitos reais menores, a propriedade intelectual e a propriedade industrial, mas também outros direitos que normalmente não são incluídos sob a designação de «propriedade», tais como, designadamente, os direitos de crédito e os «direitos sociais» (Vejam-se, entre muitos outros, os Acórdãos n.ºs 491/02, 273/04 e 620/04, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Significa isto que, não havendo coincidência entre o conceito constitucional de propriedade e o correspondente conceito civilístico, e incluindo-se no âmbito de proteção da norma contida no n.º 1 do artigo 62.º da CRP situações patrimoniais outras que não apenas as respeitantes à propriedade das coisas e aos direitos reais menores, alguma tutela reservará a garantia constitucional da propriedade aos chamados direitos de crédito.”

Temos, pois, e antes de mais, que o legislador ordinário está vinculado a conformar os processos de execução aos princípios constitucionais, designadamente à proteção do direito de propriedade, na sua sub-vertente dos direitos de crédito.

Ora, o credor reclamante vem precisamente ao processo executivo invocar um crédito de que é titular e, após a verificação do mesmo, passa a ter um estatuto processual próprio.
 
Como explica António Carvalho Martins [
In Reclamação, Verificação e Graduação de Créditos, 1996, Coimbra Editora, pág. 16] “O fundamento do concurso de credores é o princípio de que o património do devedor é a garantia comum de todos os credores (art.º 601.º do Código Civil). Assim, promovida a execução por um credor, chamam-se os outros credores e admitem-se aqueles que estão nas condições legais, a fim da venda forçada dos bens do devedor não se realizar em proveito exclusivo do exequente, com sacrifício dos direitos dos restantes credores.”

Em concretização deste estatuto próprio, o CP Civil determina designadamente que o Credor Reclamante se possa substituir ao Exequente na prática que atos que ele tenha negligenciado (cf. art.º 763.º, n.º 3); possa requerer a adjudicação de bens penhorados (Cf. art.º 799.º, n.º 2); seja ouvido sobre a modalidade da venda, o valor base dos bens a vender e sobre a eventual formação de lotes (cf. art.º 812.º do CP Civil); possa requerer o prosseguimento da execução após acordo de pagamento a prestações (cf. art.º 809.º); requerer a dispensa do depósito do preço (cf. art.º 815.º); apreciar as propostas de venda em carta fechada (cf. art.º 820.º), suscitar irregularidades verificadas no ato de abertura das propostas (cf. art.º 822.º) e propor a modalidade de venda de estabelecimento comercial (cf. art.º 829.º, todos do CP Civil).´

Em face deste feixe de direitos e ónus, deve entender-se que o credor reclamante, após a verificação do seu crédito, passa a assumir a posição de parte na ação executiva.
 
Numa vertente puramente processual, releva atentar cumulativamente no princípio da economia processual, o qual impõe, usando as palavras de Lebre de Freitas [
In “Introdução ao Processo Civil – Conceito e princípios gerais à luz do novo código, 3.ª Edição, 2013, Coimbra Editora, pág. 203 e ss.] que “o resultado processual deve ser atingido com a maior economia de meios. Esta economia de meios exige que cada processo, por um lado, resolva o maior número possível de litígios (economia de processos) e, por outro, comporte só os atos e formalidades indispensáveis ou úteis (economia de atos e formalidades).”

Em aplicação deste princípio à ação executiva encontramos precisamente as disposições legais relativas à reclamação e verificação de créditos, que permitem o aproveitamento da ação proposta e, consequentemente, a desnecessidade de interposição de ações executivas autónomas – transformando-a numa ação global de pagamento de todos os créditos sobre o Executado.

Tal como se explica no Acórdão desta Relação de 16/03/2006, tendo como Relator Ataíde das Neves [...]: “A ratio do artigo 920.º [
Leia-se agora 850.º, n.º 2, do CP Civil] do CPC baseia-se na aplicação do princípio de menor esforço ou da economia de meios (princípio da economia processual), permitindo que se aproveite tudo o que relevantemente tiver sido processado antes da prolação da sentença de extinção, para tanto se conferindo ao credor reclamante a dignidade de parte principal.”

Em face de tudo quanto até aqui ficou exposto, concordamos com a posição adotada no Acórdão da Relação de Lisboa de 05/06/2013, tendo como Relatora Francisca Mendes [...]: “Em caso de desistência da penhora por parte do exequente, o credor reclamante pode requerer a manutenção da penhora, por aplicação analógica dos arts. 885.º, n.º 4 e 920.º, n.º 2, do CPC, a fim de evitar a inutilidade da sua reclamação de créditos.”

Bem como com a posição adotada no Acórdão desta Relação de 16/03/2006, acima citado: “Em caso de desistência da penhora por parte do exequente, pode o credor reclamante (cujo crédito ainda não foi graduado), requerer o prosseguimento da execução, com a manutenção da penhora para pagamento do seu crédito, assumindo a partir desse momento a posição de parte principal, de exequente.”

Aderindo a esta posição, subscrevemos – da mesma forma – a solução nelas adotada de considerar que, não existindo norma expressa, se deve proceder à aplicação analógica dos art.º 809.º, n.º 4, e 850.º, n.º 2, do CP Civil.

A aplicação dos princípios constitucionais e infra-constitucionais aplicáveis à ação executiva, a análise do estatuto legal do credor reclamante e o elemento teleológico das normas jurídicas citadas de proteção dos direitos dos credores reclamantes, levam-nos necessariamente a concluir que, se a prossecução da penhora se justifica na situação de extinção da execução, nenhuma razão existe para, na situação de mera desistência da penhora pelo Exequente, não se aplicar a mesma solução legal.

Assim, por aplicação analógica dos dispositivos legais citados (cf. art.º 10.º do C Civil), deve, na situação presente, admitir-se o prosseguimento da execução quanto ao bem penhorado, assumindo a Reclamante a posição de Exequente, para pagamento do seu crédito reclamado.

A conclusão necessária é, portanto, a da procedência do recurso apresentado, prosseguindo a execução com a apreciação da proposta de aquisição apresentada pelo Recorrente e, em caso de indeferimento da mesma, assumindo este a posição de Exequente no que àquele bem respeita."

3. [Comentário] Não se pode ter a certeza de que a RP tenha decidido bem, porque do acórdão não consta a consideração de um aspecto essencial. Efectivamente, o decidido pela RP só pode ser considerado correcto, se o crédito do credor reclamante já se encontrar vencido.

É fácil verificar que tem de ser assim. O credor pode reclamar o seu crédito, porque, para satisfazer o crédito (vencido) do exequente, há que proceder à venda do bem sobre o qual aquele credor tem uma garantia real. O crédito reclamado pode não estar vencido (cf. art. 787.º, n.º 7, CPC), porque, como o bem onerado vai ser vendido na execução pendente, há que assegurar a satisfação do credor que beneficia da garantia real sobre esse bem.

A situação passa a ser completamente diferente quando o credor exequente desiste da penhora do bem sobre o qual o credor reclamante tem a sua garantia real. A situação que justificou a reclamação desapareceu: dado que o bem já não vai ser vendido, não há que assegurar a posição do credor reclamante.

Assim, depois da desistência da penhora, o credor reclamante só pode assumir a posição de exequente nas mesmas condições em que poderia instaurar uma execução. Ora, uma dessas condições é, como bem se sabe, a de que o crédito exequendo se encontre vencido (cf. art. 713.º CPC).

Em conclusão: dado que a RP não se preocupou em analisar se o crédito do credor reclamante já se encontrava vencido, não é possível concluir que a sua decisão seja correcta.

MTS