Insolvência; Reg. 1346/2000;
efeitos; acções declarativas
1. O sumário de STJ 12/7/2018 (2153/08.0TVLSB.L1.S1) é o seguinte:
I - O Regulamento (CE) n.º 1346/2000, relativo aos processos de insolvência, que entrou em vigor em 31-05-2002 (art. 47.º), foi sujeito a um processo de revisão, em resultado do qual foi aprovado o Regulamento (UE) n.º 848/2015, de 20-05-2015. Porém, tendo este último entrado em vigor em 26-06-2017 (art. 92.º) e sendo apenas aplicável aos processos de insolvência abertos depois desta data (art. 84.º, n.os 1 e 2), aos processos de insolvência abertos em data anterior continua a ser aplicável o Regulamento (CE) n.º 1346/2000.
II - Os Regulamentos Comunitários referidos em I contêm, essencialmente, normas de Direito Internacional Privado, pelo que, não regulando os mesmos o processo de insolvência, os tribunais de cada Estado-membro continuam a aplicar o direito processual interno às insolvências internacionais.
III - Em regra, a lei aplicável ao processo de insolvência e aos seus efeitos sobre as acções individuais executivas é a lei do Estado-membro em cujo território é aberto o processo – lex fori concursus –, contudo, o Regulamento (CE) n.º 1346/2000 prevê excepções a essa regra geral (arts. 4.º e 5.º a 15.º); uma dessas excepções é a relativa aos efeitos do processo de insolvência nas acções declarativas pendentes relativas a um bem ou um direito de cuja administração ou disposição o devedor esteja inibido, os quais se regem exclusivamente pela lei do Estado-membro em que a referida acção se encontra pendente – lex fori processus (arts. 4.º, n.º 2, al. f), e 15.º).
IV - Em conformidade com o decidido pelo TJUE, em sede de reenvio prejudicial, suscitado no presente processo, “O artigo 15.º do Regulamento (CE) n.º 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, relativo aos processos de insolvência, deve ser interpretado no sentido de que se aplica a uma ação pendente num órgão jurisdicional de um Estado-Membro que tenha por objeto a condenação de um devedor no pagamento de uma quantia pecuniária, devida por força de um contrato de prestação de serviços, e de uma indemnização pecuniária por incumprimento da mesma obrigação contratual, no caso de este devedor ter sido declarado insolvente num processo de insolvência aberto noutro Estado-Membro e de esta declaração de insolvência abranger todo o património do referido devedor.”
V - De acordo com o entendimento do TJUE apenas os processos de execução estão excluídos do âmbito de aplicação do citado art. 15.º, estando por ele abrangidas as acções declarativas que tenham por objecto o reconhecimento de um direito de crédito, sem implicarem a sua cobrança coerciva, posto que estas não são susceptíveis de pôr em causa o princípio da igualdade do tratamento dos credores, nem a resolução colectiva do processo.
VI - Estando em causa os efeitos da declaração de insolvência, decretada pelo Tribunal de um Estado-Membro estrangeiro (no caso, do Luxemburgo), sobre a presente acção, pendente aquando da declaração da insolvência, que tem por objecto o reconhecimento de um direito de crédito, é aplicável o direito português.
VII - Não tendo ficado provado que o regime jurídico luxemburguês da insolvência careça de garantias quanto à possibilidade de reclamação e à tutela do crédito do autor, valem aqui as razões justificativas do AUJ n.º 1/2014, pelo que, a declaração de insolvência da ré pelo Tribunal do Comércio do Luxemburgo tem como consequência a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, da acção que se encontrava pendente.
VIII - Em consequência de VII, a orientação do STJ expressa no AUJ n.º 1/2014 – quando aplicável quer a insolvência tenha sido decretada por um tribunal português, quer por um tribunal estrangeiro – não viola o princípio da igualdade, nem o do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, não padecendo, como tal, de inconstitucionalidade.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"6.2. [...] a redacção do artigo 15º do Regulamento nº 1346/2000, ao referir-se a "acção pendente relativa a um bem ou um direito de cuja administração ou disposição o devedor está inibido", suscitou a dúvida de saber se no seu âmbito se inclui acção pendente, como a dos autos, num tribunal de um Estado-Membro para reconhecimento de obrigação de pagamento de quantia pecuniária devida por contrato de prestação de serviços e para condenação ao pagamento de indemnização pecuniária por incumprimento da mesma obrigação. [...]
Tendo em conta que: (i) a resolução desta dúvida interpretativa se apresenta como essencial para o conhecimento do presente recurso; (ii) que os escassos elementos disponíveis (tanto doutrinais como jurisprudenciais, como ainda relativos ao processo de elaboração do Regulamento nº 1346/2000 e do Regulamento nº 848/2015) não permitem resolvê-la; (iii) e que as diversas versões em diferentes línguas do Regulamento nº 1346/2000 mais acentuam essa dúvida, após notificação das partes, decidiu-se, por despacho da relatora de fls. 4732:
a) “Suscitar perante o Tribunal de Justiça da União Europeia, nos termos do artigo 267º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, a seguinte questão prejudicial:
Deve a regra do artigo 15º do Regulamento (CE) nº 1346/2000, de 29 de Maio, ser interpretada no sentido de incluir na sua previsão uma acção pendente num tribunal de um Estado-Membro para condenação de devedor na obrigação de pagamento de quantia pecuniária, devida por contrato de prestação de serviços, e condenação ao pagamento de indemnização pecuniária por incumprimento da mesma obrigação, tendo em conta que: (i) o devedor foi declarado insolvente em processo aberto num tribunal de outro Estado-Membro; e (ii) a declaração de insolvência abrange todo o património do devedor?
b) Declarar a suspensão da instância, nos termos do artigo 269º, nº 1, alínea c), e do artigo 272º, ambos do Código de Processo Civil, até à resolução da questão prejudicial enunciada.”
6.3. Em resposta a esta questão prejudicial, o Tribunal de Justiça da União Europeia proferiu acórdão, em 06/06/2018 (no processo C-250/17), com a seguinte decisão:
“O artigo 15.° do Regulamento (CE) n.° 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio de 2000, relativo aos processos de insolvência, deve ser interpretado no sentido de que se aplica a uma ação pendente num órgão jurisdicional de um Estado-Membro que tenha por objeto a condenação de um devedor no pagamento de uma quantia pecuniária, devida por força de um contrato de prestação de serviços, e de uma indemnização pecuniária por incumprimento da mesma obrigação contratual, no caso de este devedor ter sido declarado insolvente num processo de insolvência aberto noutro Estado-Membro e de esta declaração de insolvência abranger todo o património do referido devedor.”
Para além da decisão, há que ter presente a advertência feita no ponto 34 da fundamentação do Acórdão do Tribunal de Justiça (para cuja compreensão importa transcrever também os pontos 28 a 33 da mesma):
“28 Resulta das considerações precedentes que o âmbito de aplicação do artigo 15.° do Regulamento n.° 1346/2000 não pode ser circunscrito apenas às ações pendentes que tenham por objeto um bem ou um direito determinado de cuja administração ou disposição o devedor esteja inibido.
29 No entanto, importa precisar que este artigo não pode ser indistintamente aplicado a todas as ações pendentes que tenham por objeto um bem ou um direito que integra a massa insolvente.
30 Como já foi salientado pelo Tribunal de Justiça, seria contraditório interpretar o artigo 15.° do Regulamento n.° 1346/2000 no sentido de que abrange igualmente os processos de execução, com a consequência de que os efeitos da abertura de um processo de insolvência ficariam sob a alçada da lei do Estado‑Membro em que esse processo de execução está pendente, ao passo que, em paralelo, o artigo 20.°, n.° 1, deste regulamento, ao impor expressamente a restituição ao síndico daquilo que tiver sido obtido «com caráter executório», retiraria, assim, ao artigo 15.° o seu efeito útil (Acórdão de 9 de novembro de 2016, ENEFI, C‑212/15, EU:C:2016:841, n.° 34).
31 Além disso, o Regulamento n.° 1346/2000 assenta no princípio segundo o qual a exigência de igualdade de tratamento dos credores, que está subjacente, mutatis mutandis, a qualquer processo de insolvência, se opõe, regra geral, às ações singulares através de processos de execução, desencadeados e tramitados na pendência de um processo de insolvência contra o devedor (Acórdão de 9 de novembro de 2016, ENEFI, C‑212/15, EU:C:2016:841, n.° 33).
32 Consequentemente, há que considerar que os processos de execução não estão abrangidos pelo âmbito de aplicação do artigo 15.° do Regulamento n.° 1346/2000 (Acórdão de 9 de novembro de 2016, ENEFI, C‑212/15, EU:C:2016:841, n.° 35).
33 No entanto, as ações declarativas de obrigações pecuniárias que se limitem a determinar os direitos e as obrigações do devedor, sem implicar a sua realização, e que, por conseguinte, contrariamente às ações individuais de execução, não são suscetíveis de pôr em causa o princípio da igualdade de tratamento dos credores nem a resolução coletiva do processo de insolvência, estão abrangidas pelo âmbito de aplicação do referido artigo 15.º
34 Assim, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, antes de aplicar o artigo 15.° do Regulamento n.° 1346/2000, se a ação de AA é uma ação sobre o mérito que tem precisamente por objeto um pedido de pagamento de um crédito e se a mesma se distingue, enquanto tal, do processo que visa a cobrança coerciva deste crédito.”
Dando cumprimento a esta advertência, confirma-se que, tendo a presente acção natureza declarativa, nela não está em causa a cobrança coerciva do crédito invocado pelo A., mas apenas a pretensão de reconhecimento deste direito do A. (pedido a)), com a consequente pretensão de condenação da R. devedora no pagamento de indemnização pelo não cumprimento da obrigação a que se encontra adstrita (pedidos b) e c)).
Deste modo, conclui-se ser aplicável ao caso dos autos o regime do artigo 15º do Regulamento nº 1346/2000, que determina que os efeitos da declaração de insolvência da R. devedora se regem pelo direito do Estado-Membro em que a referida acção se encontra pendente, isto é, pelo direito português.
7. Tendo-se concluído pela aplicação do direito português, importa conhecer da questão subsidiária de saber se, à luz deste direito, a declaração de insolvência da R. deve produzir o efeito da inutilidade superveniente da presente lide, tendo em conta que a mesma foi decretada por Tribunal do Luxemburgo.
O acórdão da Relação apreciou a questão nos seguintes termos desenvolvidos, que se subscrevem:
“Vejamos, agora, a questão da inutilidade superveniente da lide.
A remissão para a lei portuguesa implica a aplicação do regime da insolvência inserto no CIRE, nos artigos 275.º a 296.º.
Destacando-se, desde logo, o artigo 275.º, donde resulta a prevalência do Regulamento sobre as normas internas, prescrevendo expressamente o artigo 285.º do CIRE quanto às ações pendentes de modo idêntico ao artigo 15.º do Regulamento (“Os efeitos da declaração de insolvência sobre as acção pendente relativa a um bem ou um direito integrante da massa insolvente regem-se exclusivamente pela lei do Estado em que a referida acção corra os seus termos.”).
O CIRE estabelece nos artigos 85.º a 89.º os efeitos processuais da declaração de insolvência.
O artigo 85.º regula os efeitos da declaração de insolvência sobre as ações pendentes, mas apenas na perspetiva da sua apensação ao processo de insolvência (em que situações ocorre a apensação e como se despoleta a ordem de apensação), prescrevendo, ainda, que quer as ações sejam apensadas ou não ao processo de insolvência, nas mesmas, o insolvente é substituído pelo administrador da insolvência (n.º 3 do preceito).
O que significa que o preceito não regula diretamente o destino das ações pendentes que não sejam apensadas ao processo de insolvência, por não se encontrarem preenchidos os pressupostos da apensação.
Quanto tal situação se verificar (tenha a insolvência sido decretada por um tribunal português ou por um tribunal de algum dos Estados-Membros), coloca-se efetivamente a questão da inutilidade superveniente da lide relativamente a essas ações.
Esta questão foi motivo de controvérsia jurisprudencial e foi objeto de uniformização de jurisprudência através do acórdão uniformizador n.º 1/2014, lavrado em 08/05/2013, aplicado na decisão recorrida, nos seguintes termos: “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.”
Os fundamentos subjacentes a tal uniformização reconduzem-se, no essencial, à aplicação do regime que emerge dos artigos 1.º, 46.º, n.º1, 47.º, n.º 1, 90.º, 128.º, n.ºs 1 e 3, 129.º, 130.º,n.º 1 e 139.º, todos do CIRE, do qual resulta o princípio que rege esta matéria – o da plenitude da instância falimentar.
Assim, declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, aí exercendo os seus direitos em conformidade com as referidas normas falimentares, carecendo de ali reclamarem os seus créditos independentemente dos mesmos estarem reconhecidos judicialmente noutro processo, razão pela qual os processos onde se discutem questões relativas a dívidas do insolvente, perdem a sua utilidade.
A obtenção de uma decisão condenatória no processo declarativo, com consequente obtenção de título executivo, só forma caso julgado material quanto às partes da ação declarativa, donde resulta que, não obstante tenha havido reconhecimento judicial do crédito, sempre carece de ser reclamado no processo de insolvência se nele o credor quiser obter pagamento (artigo 128.º, n.º 3, do CIRE), podendo sempre ser impugnado por qualquer interessado, conforme decorre do artigo 130.º do CIRE.
A jurisprudência uniformizadora reporta-se apenas às ações destinadas a obter o reconhecimento de créditos, isto é, aquelas em que se discutem direitos de natureza patrimonial sobre o insolvente.
A natureza da insolvência como processo universal, o princípio da universalidade (todos os créditos são reclamados na insolvência por todos os credores), o princípio par conditio creditorium, como emanação do princípio da igualdade, em conexão com o princípio do contraditório vigente no processo insolvencial, visto na perspetiva de processo-liquidação, determinam a solução acolhida, conduzindo à inutilidade superveniente da lide dos processos declarativos pendentes à data da declaração de insolvência.
A inutilidade superveniente da lide, conforme tem sido assinalado pela doutrina, verifica-se quando circunstâncias acidentais/anormais determinem o desinteresse na solução do litígio pendente, ou seja, “[q]uando em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, a decisão a proferir já não possa ter qualquer efeito útil, ou porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo, ou porque o escopo visado com a acção foi atingido por outro meio.”"
[MTS]
"6.2. [...] a redacção do artigo 15º do Regulamento nº 1346/2000, ao referir-se a "acção pendente relativa a um bem ou um direito de cuja administração ou disposição o devedor está inibido", suscitou a dúvida de saber se no seu âmbito se inclui acção pendente, como a dos autos, num tribunal de um Estado-Membro para reconhecimento de obrigação de pagamento de quantia pecuniária devida por contrato de prestação de serviços e para condenação ao pagamento de indemnização pecuniária por incumprimento da mesma obrigação. [...]
Tendo em conta que: (i) a resolução desta dúvida interpretativa se apresenta como essencial para o conhecimento do presente recurso; (ii) que os escassos elementos disponíveis (tanto doutrinais como jurisprudenciais, como ainda relativos ao processo de elaboração do Regulamento nº 1346/2000 e do Regulamento nº 848/2015) não permitem resolvê-la; (iii) e que as diversas versões em diferentes línguas do Regulamento nº 1346/2000 mais acentuam essa dúvida, após notificação das partes, decidiu-se, por despacho da relatora de fls. 4732:
a) “Suscitar perante o Tribunal de Justiça da União Europeia, nos termos do artigo 267º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, a seguinte questão prejudicial:
Deve a regra do artigo 15º do Regulamento (CE) nº 1346/2000, de 29 de Maio, ser interpretada no sentido de incluir na sua previsão uma acção pendente num tribunal de um Estado-Membro para condenação de devedor na obrigação de pagamento de quantia pecuniária, devida por contrato de prestação de serviços, e condenação ao pagamento de indemnização pecuniária por incumprimento da mesma obrigação, tendo em conta que: (i) o devedor foi declarado insolvente em processo aberto num tribunal de outro Estado-Membro; e (ii) a declaração de insolvência abrange todo o património do devedor?
b) Declarar a suspensão da instância, nos termos do artigo 269º, nº 1, alínea c), e do artigo 272º, ambos do Código de Processo Civil, até à resolução da questão prejudicial enunciada.”
6.3. Em resposta a esta questão prejudicial, o Tribunal de Justiça da União Europeia proferiu acórdão, em 06/06/2018 (no processo C-250/17), com a seguinte decisão:
“O artigo 15.° do Regulamento (CE) n.° 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio de 2000, relativo aos processos de insolvência, deve ser interpretado no sentido de que se aplica a uma ação pendente num órgão jurisdicional de um Estado-Membro que tenha por objeto a condenação de um devedor no pagamento de uma quantia pecuniária, devida por força de um contrato de prestação de serviços, e de uma indemnização pecuniária por incumprimento da mesma obrigação contratual, no caso de este devedor ter sido declarado insolvente num processo de insolvência aberto noutro Estado-Membro e de esta declaração de insolvência abranger todo o património do referido devedor.”
Para além da decisão, há que ter presente a advertência feita no ponto 34 da fundamentação do Acórdão do Tribunal de Justiça (para cuja compreensão importa transcrever também os pontos 28 a 33 da mesma):
“28 Resulta das considerações precedentes que o âmbito de aplicação do artigo 15.° do Regulamento n.° 1346/2000 não pode ser circunscrito apenas às ações pendentes que tenham por objeto um bem ou um direito determinado de cuja administração ou disposição o devedor esteja inibido.
29 No entanto, importa precisar que este artigo não pode ser indistintamente aplicado a todas as ações pendentes que tenham por objeto um bem ou um direito que integra a massa insolvente.
30 Como já foi salientado pelo Tribunal de Justiça, seria contraditório interpretar o artigo 15.° do Regulamento n.° 1346/2000 no sentido de que abrange igualmente os processos de execução, com a consequência de que os efeitos da abertura de um processo de insolvência ficariam sob a alçada da lei do Estado‑Membro em que esse processo de execução está pendente, ao passo que, em paralelo, o artigo 20.°, n.° 1, deste regulamento, ao impor expressamente a restituição ao síndico daquilo que tiver sido obtido «com caráter executório», retiraria, assim, ao artigo 15.° o seu efeito útil (Acórdão de 9 de novembro de 2016, ENEFI, C‑212/15, EU:C:2016:841, n.° 34).
31 Além disso, o Regulamento n.° 1346/2000 assenta no princípio segundo o qual a exigência de igualdade de tratamento dos credores, que está subjacente, mutatis mutandis, a qualquer processo de insolvência, se opõe, regra geral, às ações singulares através de processos de execução, desencadeados e tramitados na pendência de um processo de insolvência contra o devedor (Acórdão de 9 de novembro de 2016, ENEFI, C‑212/15, EU:C:2016:841, n.° 33).
32 Consequentemente, há que considerar que os processos de execução não estão abrangidos pelo âmbito de aplicação do artigo 15.° do Regulamento n.° 1346/2000 (Acórdão de 9 de novembro de 2016, ENEFI, C‑212/15, EU:C:2016:841, n.° 35).
33 No entanto, as ações declarativas de obrigações pecuniárias que se limitem a determinar os direitos e as obrigações do devedor, sem implicar a sua realização, e que, por conseguinte, contrariamente às ações individuais de execução, não são suscetíveis de pôr em causa o princípio da igualdade de tratamento dos credores nem a resolução coletiva do processo de insolvência, estão abrangidas pelo âmbito de aplicação do referido artigo 15.º
34 Assim, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, antes de aplicar o artigo 15.° do Regulamento n.° 1346/2000, se a ação de AA é uma ação sobre o mérito que tem precisamente por objeto um pedido de pagamento de um crédito e se a mesma se distingue, enquanto tal, do processo que visa a cobrança coerciva deste crédito.”
Dando cumprimento a esta advertência, confirma-se que, tendo a presente acção natureza declarativa, nela não está em causa a cobrança coerciva do crédito invocado pelo A., mas apenas a pretensão de reconhecimento deste direito do A. (pedido a)), com a consequente pretensão de condenação da R. devedora no pagamento de indemnização pelo não cumprimento da obrigação a que se encontra adstrita (pedidos b) e c)).
Deste modo, conclui-se ser aplicável ao caso dos autos o regime do artigo 15º do Regulamento nº 1346/2000, que determina que os efeitos da declaração de insolvência da R. devedora se regem pelo direito do Estado-Membro em que a referida acção se encontra pendente, isto é, pelo direito português.
7. Tendo-se concluído pela aplicação do direito português, importa conhecer da questão subsidiária de saber se, à luz deste direito, a declaração de insolvência da R. deve produzir o efeito da inutilidade superveniente da presente lide, tendo em conta que a mesma foi decretada por Tribunal do Luxemburgo.
O acórdão da Relação apreciou a questão nos seguintes termos desenvolvidos, que se subscrevem:
“Vejamos, agora, a questão da inutilidade superveniente da lide.
A remissão para a lei portuguesa implica a aplicação do regime da insolvência inserto no CIRE, nos artigos 275.º a 296.º.
Destacando-se, desde logo, o artigo 275.º, donde resulta a prevalência do Regulamento sobre as normas internas, prescrevendo expressamente o artigo 285.º do CIRE quanto às ações pendentes de modo idêntico ao artigo 15.º do Regulamento (“Os efeitos da declaração de insolvência sobre as acção pendente relativa a um bem ou um direito integrante da massa insolvente regem-se exclusivamente pela lei do Estado em que a referida acção corra os seus termos.”).
O CIRE estabelece nos artigos 85.º a 89.º os efeitos processuais da declaração de insolvência.
O artigo 85.º regula os efeitos da declaração de insolvência sobre as ações pendentes, mas apenas na perspetiva da sua apensação ao processo de insolvência (em que situações ocorre a apensação e como se despoleta a ordem de apensação), prescrevendo, ainda, que quer as ações sejam apensadas ou não ao processo de insolvência, nas mesmas, o insolvente é substituído pelo administrador da insolvência (n.º 3 do preceito).
O que significa que o preceito não regula diretamente o destino das ações pendentes que não sejam apensadas ao processo de insolvência, por não se encontrarem preenchidos os pressupostos da apensação.
Quanto tal situação se verificar (tenha a insolvência sido decretada por um tribunal português ou por um tribunal de algum dos Estados-Membros), coloca-se efetivamente a questão da inutilidade superveniente da lide relativamente a essas ações.
Esta questão foi motivo de controvérsia jurisprudencial e foi objeto de uniformização de jurisprudência através do acórdão uniformizador n.º 1/2014, lavrado em 08/05/2013, aplicado na decisão recorrida, nos seguintes termos: “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.”
Os fundamentos subjacentes a tal uniformização reconduzem-se, no essencial, à aplicação do regime que emerge dos artigos 1.º, 46.º, n.º1, 47.º, n.º 1, 90.º, 128.º, n.ºs 1 e 3, 129.º, 130.º,n.º 1 e 139.º, todos do CIRE, do qual resulta o princípio que rege esta matéria – o da plenitude da instância falimentar.
Assim, declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, aí exercendo os seus direitos em conformidade com as referidas normas falimentares, carecendo de ali reclamarem os seus créditos independentemente dos mesmos estarem reconhecidos judicialmente noutro processo, razão pela qual os processos onde se discutem questões relativas a dívidas do insolvente, perdem a sua utilidade.
A obtenção de uma decisão condenatória no processo declarativo, com consequente obtenção de título executivo, só forma caso julgado material quanto às partes da ação declarativa, donde resulta que, não obstante tenha havido reconhecimento judicial do crédito, sempre carece de ser reclamado no processo de insolvência se nele o credor quiser obter pagamento (artigo 128.º, n.º 3, do CIRE), podendo sempre ser impugnado por qualquer interessado, conforme decorre do artigo 130.º do CIRE.
A jurisprudência uniformizadora reporta-se apenas às ações destinadas a obter o reconhecimento de créditos, isto é, aquelas em que se discutem direitos de natureza patrimonial sobre o insolvente.
A natureza da insolvência como processo universal, o princípio da universalidade (todos os créditos são reclamados na insolvência por todos os credores), o princípio par conditio creditorium, como emanação do princípio da igualdade, em conexão com o princípio do contraditório vigente no processo insolvencial, visto na perspetiva de processo-liquidação, determinam a solução acolhida, conduzindo à inutilidade superveniente da lide dos processos declarativos pendentes à data da declaração de insolvência.
A inutilidade superveniente da lide, conforme tem sido assinalado pela doutrina, verifica-se quando circunstâncias acidentais/anormais determinem o desinteresse na solução do litígio pendente, ou seja, “[q]uando em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, a decisão a proferir já não possa ter qualquer efeito útil, ou porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo, ou porque o escopo visado com a acção foi atingido por outro meio.”"
[MTS]