"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/12/2018

Jurisprudência 2018 (136)


Prova; dever de cooperação;
teste de ADN


1. O sumário de RP 11/7/2018 (624/12.3TVPRT.P1) é o seguinte:

I - Os tribunais portugueses, por força do princípio da coincidência consagrado no art. 62º, al. a) do Cód. de Proc. Civil, são internacionalmente competentes para conhecer de ação de investigação de paternidade relativamente a réu que tem o seu domicílio em território português.

II - O prazo de vinte dias para aditamento do rol de testemunhas, a que alude o art. 598º, nº 2 do Cód. do Proc. Civil, tem como referência a efetiva realização da audiência de julgamento, renovando-se perante cada nova marcação que tenha lugar.

III - Na atualidade, os testes de ADN aos pretensos pai e filho dão um grau de certeza sobre a filiação, quando esta se verifique, próximo dos 100%, excluindo-a quase completamente quando não ocorra, o que significa que tais exames constituem elementos essenciais para a descoberta da verdade.

IV - Aquele que culposamente impede a realização desses exames preenche a previsão do nº 2 do art. 344º do Cód. Civil, dando azo à inversão do ónus da prova.

V - A atitude do réu, pretenso progenitor, que não aceita submeter-se à recolha de sangue ou outro material biológico, sem que para tal apresente qualquer justificação válida, consubstancia recusa ilegítima e, consequentemente violação culposa do dever de cooperação.

VI - Porém, mesmo que não se proceda à inversão do ónus da prova, a recusa ilegítima de sujeição a testes de paternidade não pode deixar ser apreciada livremente pelo tribunal, sendo suscetível de conduzir ao estabelecimento da paternidade quando conjugada com os demais elementos probatórios produzidos nos autos.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

4) [...] No art. 1801º do Cód. Civil estabelece-se que «nas ações relativas à filiação são admitidos como meios de prova os exames de sangue e quaisquer outros métodos cientificamente comprovados.»

Na atualidade, os exames de sangue aos pretensos pai e filho dão um grau de certeza sobre a filiação, quando esta se verifique, próximo dos 100%, excluindo-a quase completamente quando não ocorra.

Significa isto que nas ações de investigação da paternidade tais exames constituem elementos importantes e até essenciais para a descoberta da verdade, secundarizando as outras provas, designadamente a testemunhal que se recorta como muito mais falível e aleatória.[Cfr. Ac. STJ de 16.10.2012, proc. 194/08.7 TBAGN.C1.S1 [...]]

O art. 417º do atual Cód. de Proc. Civil preceitua o seguinte:

«1 – Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados.

2 – Aqueles que recusem a colaboração devida serão condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal apreciará livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no nº 2 do art. 344º do Código Civil.

3 – A recusa é, porém, legítima se a obediência importar:

a) Violação da integridade física ou moral das pessoas;

b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações;

c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no nº 4.(…)».

Daqui resulta que as partes têm a obrigação de se sujeitarem aos exames laboratoriais pertinentes, como sejam os ordenados nos presentes autos, devendo prestar-se, até pela decisiva importância destes, aos procedimentos que visam a recolha de sangue ou até de outros materiais biológicos, como sejam saliva, cabelo ou unhas.

Por outro lado, há que ter em conta o art. 344º, nº 2 do Cód. Civil, onde se estatui o seguinte:

«2. Há também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei do processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações.»

Verifica-se o condicionalismo do art. 344º, n.º 2 do Cód. Civil, quando a conduta do recusante impossibilita a prova do facto a provar, a cargo da contraparte, por não ser possível consegui-la com outros meios de prova, já por a lei o impedir (exs.: art. 313º, n.º 1 e art. 364º do Cód. Civil), já por concretamente não bastarem para tanto os outros meios produzidos. Se outra prova dos factos em causa não existir ou, existindo, for insuficiente, a recusa pode dar lugar à inversão do ónus da prova, que ficará a cargo da parte não cooperante – cfr. Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 2ª ed., pág. 440.

Por seu turno, Lopes do Rego (in “Comentários ao Código de Processo Civil”, vol. I, 2ª ed., pág. 454) sobre a mesma questão escreve que “…se o exame se configurava como absolutamente essencial à determinação da filiação biológica – implicando, consequentemente, a recusa do pretenso pai a verdadeira impossibilidade de o autor fazer prova da invocada filiação biológica (por exemplo, em consequência de, no caso concreto, inexistirem meios probatórios que a possam demonstrar indirectamente) deverá aplicar-se o preceituado no n.º 2 do art.º 344.º, presumindo-se a paternidade e passando a incumbir ao recusante o ónus de criar “dúvidas sérias” sobre ela”.

Como já se referiu, nas ações de investigação de paternidade manifesto é o valor probatório dos exames de sangue, que tanto podem ser favoráveis ao autor como ao réu, pretenso progenitor.

Continuando, sempre terá que se salientar que neste tipo de ações está em causa o direito fundamental do menor D… ao estabelecimento da sua paternidade biológica e à sua “historicidade pessoal”, o que abrange o direito ao conhecimento da identidade dos seus progenitores.

Ora, sobre esta questão escreve-se o seguinte no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 401/11 [...]:

«O direito ao conhecimento da paternidade biológica, assim como o direito ao estabelecimento do respectivo vínculo jurídico (…), cabem no âmbito de protecção quer do direito fundamental à identidade pessoal (artigo 26.º, n.º 1, da Constituição), quer do direito fundamental de constituir família (artigo 36.º, n.º 1, da Constituição).

A identidade pessoal consiste no conjunto de atributos e características que permitem individualizar cada pessoa na sociedade e que fazem com que cada indivíduo seja ele mesmo e não outro, diferente dos demais, isto é, “uma unidade individualizada que se diferencia de todas as outras pessoas por uma determinada vivência pessoal” (Jorge Miranda/Rui Medeiros, em “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, pág. 609, da 2.ª ed., da Coimbra Editora).

Este direito fundamental pode ser visto numa perspectiva estática – onde avultam a identificação genética, a identificação física, o nome e a imagem – e numa perspectiva dinâmica – onde interessa cuidar da verdade biográfica e da relação do indivíduo com a sociedade ao longo do tempo.

A ascendência assume especial importância no itinerário biográfico, uma vez que ela revela a identidade daqueles que contribuíram biologicamente para a formação do novo ser. O conhecimento dos progenitores é um dado importante no processo de auto - definição individual, pois essa informação permite ao indivíduo encontrar pontos de referência seguros de natureza genética, somática, afectiva ou fisiológica, revelando-lhe as origens do seu ser. É um dado importantíssimo na sua historicidade pessoal. Como expressivamente salienta Guilherme de Oliveira, «saber quem sou exige saber de onde venho» (em “Caducidade das acções de investigação”, ob. cit., pág. 51), podendo, por isso dizer-se que essa informação é um factor conformador da identidade própria, nuclearmente constitutivo da personalidade singular de cada indivíduo.

Mas o estabelecimento jurídico dos vínculos da filiação, com todos os seus efeitos, conferindo ao indivíduo o estatuto inerente à qualidade de filho de determinadas pessoas, assume igualmente um papel relevante na caracterização individualizadora duma pessoa na vida em sociedade. A ascendência funciona aqui como um dos elementos identificadores de cada pessoa como indivíduo singular. Ser filho de é algo que nos distingue e caracteriza perante os outros, pelo que o direito à identidade pessoal também compreende o direito ao estabelecimento jurídico da maternidade e da paternidade.

Por outro lado, o direito fundamental a constituir família consagrado no artigo 36.º, n.º 1, da Constituição, abrange a família natural, resultante do facto biológico da geração, o qual compreende um vector de sentido ascendente que reclama a predisposição e a disponibilização pelo ordenamento de meios jurídicos que permitam estabelecer o vínculo da filiação, com realce para o exercitável pelo filho, com o inerente conhecimento das origens genéticas.

Na verdade, o direito a constituir família, se não pode garantir a inserção numa autêntica comunidade de afectos – coisa que nenhuma ordem jurídica pode assegurar – implica necessariamente a possibilidade de assunção plena de todos os direitos e deveres decorrentes de uma ligação familiar susceptível de ser juridicamente reconhecida. Pela natureza das coisas, a aquisição do estatuto jurídico inerente à relação de filiação, por parte dos filhos nascidos fora do matrimónio, processa-se de forma diferente da dos filhos de mãe casada, uma vez que só estes podem beneficiar da presunção de paternidade marital. Mas essa aquisição deve ser garantida através da previsão de meios eficazes. Aliás a peremptória proibição de discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (artigo 36.º, n.º 4, da CRP) não actua só depois de constituída a relação, projecta-se também na fase anterior, exigindo que os filhos nascidos fora do casamento possam aceder a um estatuto idêntico aos filhos nascidos do matrimónio. A infundada disparidade de tratamento, em violação daquela proibição, tanto pode resultar da atribuição de posições inigualitárias, em detrimento dos filhos provenientes de uma relação não conjugal, como, antes disso, e mais radicalmente do que isso, do estabelecimento de impedimentos desrazoáveis a que alguém que biologicamente é filho possa aceder ao estatuto jurídico correspondente.

É, pois, pacífica a previsão constitucional dos direitos ao conhecimento da paternidade biológica e do estabelecimento do respectivo vínculo jurídico, como direitos fundamentais.
Isso não impede, contudo, que o legislador possa modelar o exercício de tais direitos em função de outros interesses ou valores constitucionalmente tutelados. Não estamos perante direitos absolutos que não possam ser confrontados com valores conflituantes, podendo estes exigir uma tarefa de harmonização dos interesses em oposição, ou mesmo a sua restrição.»

Como tal, em sintonia com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.5.2016 (proc. 8928/11.6 TBOER.L2.S1 [...]), há que concluir que sendo os testes de ADN como que uma prova plena da paternidade do ponto de vista científico, ou seja do ponto de vista da realidade factual, manifesto é que aquele que culposamente impede a sua realização está a preencher a previsão do nº 2 do art. 344º do Cód. Civil, assim dando azo à inversão do ónus da prova. [...] 

5) Retornando ao caso dos autos, verifica-se que o réu depois de por várias vezes não ter comparecido no INML nas datas que tinham sido designadas para recolha de amostras biológicas (sangue) veio, através do seu advogado, comunicar que não se sujeitaria a tal tipo de exame.

Isto é, deu conhecimento ao tribunal que não se submeteria àquele que é hoje em dia o exame decisivo, do ponto de vista científico, para o estabelecimento da paternidade, sem que adiantasse qualquer razão válida para tal conduta, além de considerar estar a ser perturbado pela alegação de paternidade feita pela autora.

Após vicissitudes várias relacionadas com o facto da declaração de recusa de submissão aos exames hematológicos estar subscrita não pelo réu mas pelo seu advogado, e que revelam, pela inércia evidenciada, espírito obstrutivo, o Mmº Juiz “a quo” entendeu proferir o despacho de 10.10.2016 (fls. 329), no qual, depois de condenar o réu em multa, procedeu à inversão do ónus da prova nos termos do art. 417º, nº 2 do Cód. do Proc. Civil que remete para o nº 2 do art. 344º do Cód. Civil. 

Inversão do ónus da prova que foi corroborada no posterior despacho judicial de 14.9.2017, sem prejuízo da possibilidade do réu requerer ele próprio a realização dos exames.

Acontece que o réu confrontado com estes despachos, onde, pela sua recusa de submissão a exames hematológicos, se procedeu à inversão do ónus da prova, com eles se conformou.

Sucede que tal recusa não se mostra justificada.

Com efeito, o réu limita-se a afirmar que a sua submissão aos referidos exames seria conceder à requerente e a qualquer putativa progenitora, o privilégio de, potestativamente, poder perturbar quem quer que seja pela simples alegação de paternidade.

Nada mais invoca.

Ora, se estávamos perante uma alegação gratuita e infundada feita pela mãe do menor D…, não se compreende porque razão o réu não se submeteu aos referidos exames de sangue que, com toda a certeza, afastariam a sua paternidade.

E afastada esta, tinha o réu à sua disposição meios processuais que lhe permitiriam responsabilizar a autora pela sua afirmação destituída de fundamento e pelas perturbações que a mesma introduzira na sua vida.

Não enveredando pelo caminho simples e escorreito da sua sujeição aos exames, face à inequívoca valia científica que têm hoje os testes de ADN para o estabelecimento da paternidade, antes os recusando de forma perentória e ilegítima, o réu violou de forma culposa o dever de cooperação para a descoberta da verdade.

Culpa esta que decorre da sua atitude de inequívoca recusa de submissão aos exames, sem apresentar para tal qualquer razão atendível, escudando-se em argumentos vagos e genéricos, o que assim tornou desnecessária a realização de novas diligências com vista à efetivação desses exames e plenamente justificou a inversão do ónus da prova através do despacho de fls. 329, posteriormente confirmada no despacho de fls. 661, despachos com os quais o réu se conformou.

Por isso, não se vê fundamento para neste momento processual, em que a audiência de julgamento já foi efetuada, sendo que o réu de forma clara se tinha oposto à realização dos exames de sangue e ciente estava da inversão do ónus da prova, para diligenciar novamente no sentido da realização de tais exames com marcação de data para esse efeito e notificação do réu com advertência das consequências do art. 344º, nº 2 do Cód. Civil.

A inversão do ónus da prova, já decidida nos despachos de fls. 329 e 661, e retomada pelo Mmº Juiz “a quo” na sentença recorrida, mostra-se pois isenta de censura.

Como tal, tendo em atenção o teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas e das declarações de parte da autora, que acima se deixaram sintetizados, o que se conjuga com a inversão do ónus da prova resultante da recusa de sujeição a exames de sangue, entendemos que a matéria de facto provada e não provada não deve ser objeto de qualquer alteração.

Conforme se afirma na sentença recorrida, por força da inversão do ónus da prova, cabia ao réu a prova de que não era o pai da criança, o que ele poderia fazer se demonstrasse, por exemplo, que nunca tinha mantido relações sexuais com a autora (ou que tal não acontecera no período legal de conceção), ou que, apesar de ter mantido relações, sempre tinha utilizado contracetivo ou que não era fértil.

Manifestamente essa prova não foi feita.

Mas mesmo que não se tivesse procedido à inversão do ónus da prova, a recusa ilegítima de sujeição a testes de paternidade não poderá deixar de ser livremente apreciada pelo tribunal nos termos do art. 519º, nº 2 do Cód. de Proc. Civil e, no caso “sub judice”, conjugada esta recusa com os demais elementos probatórios reunidos nos autos, somos levados à mesma conclusão factual, no sentido do estabelecimento da paternidade com a necessária segurança. [Cfr. Ac. Rel. Porto de 19.6.2012, proc. 530/10.6 TVPRT.P1 [...]]

Deste modo, mantendo-se nos seus precisos termos a factualidade provada e não provada, forçoso é concluir pela procedência da ação, inclusive com fundamento na presunção estabelecida no art. 1817º, nº 1, al. e) do Cód. Civil. [...]"
 
[MTS]