Cumulação de pedidos;
pressupostos
1. O sumário de RP 13/9/2018 (358/17.2T8SNT-2) é o seguinte:
I. Não havendo incompatibilidade substancial entre pedidos cumulados, não há ineptidão da petição inicial (art. 186/2-c do CPC).
II. Um pedido que é objecto de processo de jurisdição voluntária relativo a união de facto (atribuição de casa de morada de família em caso de ruptura da união de facto), não pode ser cumulado com pedidos que devem ser apreciados em processo declarativo comum, por tal ofender regras de competência em razão da matéria (arts. 3/-a e 4 da Lei 7/2001, 1793 do CC, 990, 555/1 e 37/1, do CPC, e 122/1-b da LOSJ).
III. Pedidos que deviam seguir a forma de processo de divisão de coisa comum não podem ser cumulados com pedidos que foram formulados num processo que tem de seguir a forma declarativa comum, porque eles seguem tramitação manifestamente incompatível (arts. 555/1 e 37, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC).
IV. A pretensão de pôr termo à indivisão de coisa em compropriedade de dois unidos de facto não está dependente da ruptura da união de facto, tal como não o está a pretensão de um deles exigir do outro, em direito de regresso, aquilo que pagou no lugar do outro no âmbito dos contratos de empréstimo para compra do prédio em compropriedade feitos a ambos os unidos de facto, comproprietários do imóvel.
V. Não haveria qualquer interesse na cumulação de pedidos relativos à divisão de coisa comum com pedidos relativos a créditos que um dos ex-unidos de facto tenha contra o outro, nem a apreciação conjunta de tais pedidos (e ainda de outros) seria indispensável para a justa composição do litígio; antes pelo contrário.
2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"N intentou a presente acção declarativa com processo comum contra O, pedindo, em síntese (de 13 pedidos formulados em 4 páginas), que (i) seja declarada cessada a união de facto existente entre autora e réu, com efeitos a Julho de 2013 e, em consequência [que não foi formulado em alínea autónoma para além da genérica sob (k)], (ii) o réu seja condenado a pagar à autora metade daquilo que a autora tem pago desde aquela data em cumprimento de dois contratos de empréstimo celebrados para a aquisição de um prédio que serve de casa de morada de família e o que ainda vier a pagar a esse título [correspondente aos pedidos sob (a), (d) e parte de (f) e (k)]; (iii) bem como metade das quantias pagas pela autora a título de despesas fixas com água, energia, gás, condomínio, IMI, taxas de esgoto, entre outras despesas e encargos comuns, bem como aquilo que ainda vier a pagar a esse título; tudo acrescido de juros [correspondente aos pedidos sob (b), (c), (e) e parte de (f) e (k)]; (iv) seja reconhecida a existência, em regime de compropriedade, do imóvel identificado na presente acção, bem como a sua natureza indivisível [correspondente aos pedidos sob (g) e parte de (k)]; e (v) seja atribuída a habitação do aludido imóvel à autora na pendência da acção até à divisão do bem comum [correspondente ao pedidos sob (h) e parte de (k)]; (vi) seja adjudicado o aludido imóvel à autora ou, quando assim não se entenda, seja designada conferência de interessados com vista a alcançar-se acordo sobre a pedida adjudicação, caso em que ficaria a autora como responsável pelo pagamento das restantes prestações bancárias devidas no âmbito dos contratos de mútuo com hipoteca [correspondente aos pedidos sob (i) e parte de (k)]; (vii) seja o crédito que a autora detém sobre o réu, subtraído à quota-parte que pertence ao réu na eventual venda do imóvel em questão (que tem natureza indivisível) ou do montante que lhe competiria receber no caso de o imóvel ser atribuído à autora [correspondente aos pedidos sob (j) e parte de (k)]. [...]
Do 1.º obstáculo à cumulação (art. 37/1, 1.ª parte, do CC)
O pedido relativo ao termo da indivisão de um prédio que está em compropriedade está sujeito a uma forma de processo especial, previsto nos arts. 925 e seguintes do CPC; isto por um lado.
Enquanto, por outro, a maior parte dos pedidos formulados pela autora neste processo seguem a forma de processo comum.
Há assim pedidos que correspondem a formas de processo diferentes, o que é um obstáculo à cumulação (art. 37/1 do CPC).
Esse obstáculo, no entanto, é ultrapassável se as formas de processo, embora diversas, (i) não seguirem uma tramitação manifestamente incompatível e o juiz autorizar a cumulação, (ii-a) por nela haver interesse relevante ou (ii-b) quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio (art. 37/2 do CPC).
Antes de mais diga-se que, falando a lei de autorização, fundamentada, a autora, que queria a cumulação dos pedidos, deveria ter feito um requerimento para o efeito e fundamentado o mesmo. Ora, não só não o fez, como, quando foi chamada a atenção para o problema, nada disse.
Seja como for…
Das tramitações manifestamente incompatíveis
Primeiro, a forma do processo especial de divisão de coisa comum é manifestamente incompatível com a forma do processo comum. A autora, invocando o ac. de 2015 do TRP já referido, diz que não é assim, mas não convence minimamente.
O processo comum é um processo declarativo de tramitação linear, grosso modo com petição e contestação, produção de prova e decisão de facto e de direito.
O processo especial de divisão de coisa comum é um processo misto, parte declarativo (em que se define o direito) e parte executivo (em que se procura dar execução ao direito declarado – utilizam-se as expressões de Alberto dos Reis, no Processos especiais, vol. II, Coimbra Editora, reimpressão de 1982, pág. 23), com tramitação diferente, que pode ser sumária ou comum, consoante a coisa for divisível ou indivisível, questão que pode ser levantada oficiosamente pelo juiz ou pelos peritos no decurso do processo, e consoante haja ou não contestação e a revelia for ou não operante; e depois com perícias e conferência de interessados obrigatórias em que se concretizam os direitos e se dá execução aos mesmos, havendo possibilidade de posteriores adjudicações por acordo ou por sorteio, reclamações de tornas, e possível venda da coisa, seguindo-se as formas estabelecidas para o processo de execução, precedida das citações ordenadas no art. 786 do CPC e com reclamação e verificação de créditos (por força do art. 549/2 do CPC), tudo com possíveis recursos autónomos de apelação no decurso das várias fases da tramitação (conforme o disposto nos arts. 925 a 929 do CPC).
Enxertar num processo comum, em que se discutem direitos de crédito de uma parte contra a outra, um processo especial com aquelas características de tramitação, em que se visa apenas pôr termo à indivisão de um imóvel, é algo quase impossível, o que se diz como outra forma de afirmar a manifesta incompatibilidade, que não se confunde com impossibilidade de adaptação. Esta, bem ou mal, de forma mais ou menos forçada, é quase sempre possível, o que não quer dizer que a tramitação dos processos em causa seja compatível.
Daí que, por exemplo, o ac. do TRP de 2015, que entendeu o contrário do que aqui se defende e do que defendeu o despacho recorrido objecto desse acórdão e mandou o processo prosseguir com pedidos cumulados do mesmo tipo dos destes autos, não disse minimamente como é que se faria tal adaptação processual (o que devia ter feito tendo em conta que essa adaptação deve ser feita no despacho que dá a autorização: art. 37/3 do CPC e que o juiz recorrido tinha entendido que a tramitação era manifestamente incompatível; entendendo-se o contrário, devia ter sido demonstrada essa compatibilidade, especificando a adaptação necessária, para que o juiz recorrido pudesse cumprir tal acórdão).
Neste sentido, por exemplo, para uma situação que seria muito mais simples, veja-se Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, que a propósito da norma do art. 555/2 do CPC que permite que, num processo especial de divórcio, se cumule um pedido próprio de uma acção comum (de alimentos), dizem: “Ao invés, não é, em princípio, admissível que, no processo comum de condenação, em alimentos, o réu peça, reconvencionalmente, o divórcio. A cumulação é admissível – insista-se – na acção especial (e não na comum) e a tramitação originária do processo de divórcio (designadamente com uma tentativa obrigatória de conciliação logo no princípio do processo) é, em princípio, incompatível, para os efeitos do art. 37/2, com a tramitação da acção comum (vol. 2.º, pág. 506).
Nem se diga que nas acções de divisão de coisa comum se tem admitido que o réu deduza reconvenção com um pedido próprio de um processo comum. É que neste caso não há qualquer dificuldade de, quando se está a discutir o direito numa qualquer fase declarativa da tramitação do processo de divisão, se incluir a discussão da matéria própria do pedido do processo comum. O que é completamente diferente de, no processo declarativo comum, se estar a incluir a tramitação específica do processo especial, com as hipóteses e subhipóteses próprias do mesmo."
[MTS]