"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/12/2018

Jurisprudência 2018 (138)


Embargos de executado; prestação de caução;
substituição


1. O sumário de RL 11/9/2018 (2485/17.7T8OER-A.L1-1) é o seguinte:

I. Toda a actividade desenvolvida na pendência da acção executiva está sujeita ao princípio da proporcionalidade;

II. A idoneidade da caução desdobra-se em duas condições essenciais: a propriedade, caracterizada pela adequação do modo da sua prestação à realização dos fins da caução, e a suficiência, caracterizada por assegurar a satisfação integral da obrigação de que é garantia;

III. A prestação de caução pelo embargante para obter a suspensão da execução visa não só assegurar o ressarcimento dos prejuízos sofridos pelo exequente com o atraso na satisfação da obrigação exequenda ou com a impossibilidade dessa mas também garantir o pagamento do crédito exequendo;

IV. A hipoteca, mesmo que anteriormente constituída, não é abstractamente inidónea para servir de caução;

V. A prestação de caução para suspensão da execução processa-se segundo as regras estabelecidas para o processo especial de prestação de caução, assumindo, no entanto, o carácter de incidente processado por apenso;

VI. A prestação de caução para suspensão da execução é um ‘outro incidente’, na nomenclatura da tabela II anexa ao Regulamento das Custas Processuais, tributado de 0,5 a 5 UC’s.
 
2. Na fundamentação afirma-se o seguinte:
 
"A questão de saber se é adequada às finalidades da caução para a suspensão da execução garantia já anteriormente constituída – antes do processo ou através da penhora efectuada nos autos – levanta-se há muito na doutrina e na jurisprudência e tem sido controversa.

Sumariando essa querela jurisprudencial e doutrinária consta do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 31OUT2013, proferido no processo 5025/12.0YYPRT-B.P1:

A questão da idoneidade da caução para suspensão da execução, no caso de ser apresentada oposição a esta, é controversa e divide, desde há muito, a doutrina e a jurisprudência.

Com efeito, já assim acontecia perante o regime anterior do art. 818º nº 1 do CPC, onde se dispunha que o recebimento dos embargos não suspende a execução, salvo se o embargante prestar caução.

Discutia-se então se, existindo garantia anterior – constituída antes do processo ou através da própria penhora já efectuada nos autos – ela poderia ser suficiente para suspender a execução.

A jurisprudência, sem qualquer discrepância, respondia negativamente a tal questão [Cf. Acórdãos do STJ de 12.10.62, BMJ 120-333, de 18.01.66, BMJ 153-198, de 08.06.78, BMJ 278-135 e de 17.05.94, CJ STJ II, 2, 102], tendo essencialmente por pressuposto estarmos em presença de figuras distintas e com fins diversos:

"A garantia hipotecária de que goza a quantia exequenda tem uma finalidade própria dirigida directamente ao contrato feito entre o credor e o devedor e, portanto, funciona somente em relação ao crédito"; "a caução a prestar para a suspensão da execução tem outro objectivo: destina-se a garantir o exequente contra o retardamento da execução derivado da suspensão, pondo-o a coberto dos riscos da demora no seguimento da acção executiva"[Citado acórdão de 12.10.62].

Alinhavam então neste entendimento também Lopes Cardoso[Manual da Acção Executiva, 3ª ed.,279] e Rodrigues Bastos[Notas ao CPC, Vol. IV, 37].

A restante doutrina, por seu turno, seguia predominantemente caminho diverso [Cfr. Vaz Serra, RLJ 99-221; Anselmo de Castro, A Acção Executiva Singular, 2ª ed., 322; Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 2ª ed., 166; Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 104 e Remédio Marques, Curso do Processo Executivo Comum, 162 e 163], partindo do entendimento de que é "função estrita da caução a mera garantia da dívida exequenda e não também a de cobrir os prejuízos resultantes da demora no seguimento da acção executiva".

Assim, "não se torna necessária a prestação de caução se o crédito tiver garantia real constituída anteriormente à instauração da acção executiva, ou se houver já penhora efectuada, desde que uma e outra garantam o crédito exequendo e acessórios, incluindo os juros que se vençam em consequência da paragem do processo"[Amâncio Ferreira, Ibidem].

A posição de Teixeira de Sousa é algo diferente e, de certo modo, concilia os dois referidos entendimentos, afirmando que a caução "pode cumprir funções distintas": não existindo garantia real (penhora ou garantia constituída anteriormente), a caução "visa não só garantir o pagamento do crédito exequendo, mas também assegurar o ressarcimento dos prejuízos sofridos pelo exequente com o atraso na satisfação da obrigação exequenda ou com a impossibilidade dessa satisfação".

Se existir aquela garantia real, "a caução destina-se apenas a assegurar a reparação dos danos causados por aquele atraso ou impossibilidade, pois que o pagamento do crédito exequendo é garantido por aquela penhora ou garantia".

Acrescenta o mesmo Autor que "o montante da caução é distinto em cada uma destas situações, pois que ele deve adequar-se à função concretamente cumprida pela caução. Em regra, a garantia real apenas é suficiente para garantir o pagamento do crédito exequendo, mas, se se verificar que ela também pode cobrir os danos causados pelo atraso na satisfação daquele ou pela impossibilidade da sua satisfação, então a prestação de caução pode ser realizada pela extensão da garantia a essa indemnização"[A Acção Executiva Singular, 187, onde se pronuncia sobre a afirmação frequente de que a existência de garantia real torna desnecessária a prestação de caução (posição doutrinária dominante), esclarecendo que “do que se trata não é de dispensar a prestação de caução atendendo à suficiência da garantia, mas de a prestar através da extensão desta”.].

O citado art. 818º foi entretanto alterado pela Reforma de 2003, passando a dispor:

1. Havendo lugar à citação prévia do executado, o recebimento da oposição só suspende o processo de execução quando o opoente preste caução (…).

2. Não havendo lugar à citação prévia, o recebimento da oposição suspende o processo de execução, sem prejuízo do reforço ou substituição da penhora. (…)

Desta norma do nº 2 decorre claramente que a questão anterior ficou resolvida em relação à penhora: a oposição que venha a ser deduzida depois de ela ser efectuada determina a imediata suspensão da execução, sem prejuízo do reforço ou substituição da penhora.

No que toca à garantia real constituída anteriormente à instauração da execução, a controvérsia mantém-se, com identidade de argumentos de cada posição.

Assim, na jurisprudência tem sido acentuado que:

- "A caução, quando exigida por lei, deve constituir um «mais» em relação às garantias pré-existentes".

- Enquanto condição para a suspensão, são-lhe "associadas finalidades específicas que vão além da garantia de pagamento da quantia exequenda, e que visam colocar o exequente a coberto dos riscos da demora no prosseguimento da acção executiva, obviando a que, por virtude de tal demora, o executado possa empreender manobras delapidatórias do seu património".

- Apesar de conhecer a divergência de entendimentos existente, o legislador veio alterar o regime legal, mas continuou a impor, como regra, nas situações de citação prévia, a não suspensão da execução por mero efeito da oposição, apenas admitindo, em termos claramente excepcionais, a possibilidade de suspensão, mas condicionada à prestação de caução [Neste sentido o Acórdão da Relação do Porto de 02.04.2009, que reproduzimos nos excertos assinalados no texto; no mesmo sentido, os Acórdãos da Rel. do Porto de 11.01.2005 e de 28.04.2011 e da Rel. De Lisboa de 28.06.2007, todos em www.dgsi.pt].

Rodrigues Bastos adere, com razões similares, a este entendimento [Notas ao CPC, Vol. IV, 3ª ed., 39].

Outros Autores, porém, mantêm a tese que anteriormente haviam defendido, agora confortada pelo regime legal aplicável à penhora prévia: "a ideia decorrente do princípio da proporcionalidade ou da adequação a observar na penhora é invocável para as outras garantias, constituídas antes do processo, que não há razão para duplicar, pelo que terão de ser tomadas em conta quando se põe a questão do montante da caução a prestar".

Assim, "a caução só se justifica pela diferença presumível, eventualmente existente, entre o seu valor (do bem dado em garantia) e o do crédito exequendo e acessórios, incluindo os juros que, em estimativa, se preveja que venham a vencer em resultado da paragem do processo executivo" [Lebre de Freitas, CPC Anotado, Vol.3º, 327; no mesmo sentido, Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 11ª ed., 196.].

Para completo enquadramento da questão, resta dizer que o novo regime introduzido pela Lei 41/2013, de 26/6, aqui não aplicável (art. 6º) operou nova alteração nos efeitos do recebimento dos "embargos", mas, no que aqui interessa, continua a dispor no art. 733º nº 1, que o recebimento dos embargos só suspende o prosseguimento da execução se: a) o embargante prestar caução.

Saliente-se que, mesmo nos casos em que seja dispensada a citação prévia (art. 727º), apenas se prevê a possibilidade de substituir a penhora efectuada por caução (art. 856º nº 4), mas não que, nessa situação (penhora realizada), os embargos impliquem automaticamente a suspensão da execução (como até aqui, depois da Reforma de 2003).

Nesse mesmo aresto veio a concluir-se:

Reconhece-se, por outro lado, que, existindo garantia real, esta será em regra suficiente para garantir a satisfação do crédito exequendo.

Assim, a caução, imposta como condição para a suspensão da execução, visará nesse caso (garantia real anteriormente constituída) cobrir o que acresce ao crédito exequendo em resultado do retardamento na sua satisfação e eventuais danos que sobrevenham desse atraso.

Ora, desta conclusão não decorre, parece-nos, que, existindo garantia real anterior, possa, por este motivo, ser sempre dispensada a prestação de caução; mas tal conclusão também não impõe que, pelo contrário, seja sempre necessário prestar uma nova e distinta caução e, muito menos, que o deva ser pela totalidade do crédito exequendo. Nada parece justificar esta duplicação e sobrecarga para o executado.

Uma nova caução já será necessária, no entanto, em caso de insuficiência do valor do bem dado em garantia, se este nada cobre para além do crédito exequendo.

Esse entendimento tem logrado aceitação generalizada na doutrina.

Para além dos Autores já acima referidos podemos encontrar, ainda, a pronúncia de Lopes do Rego [“É evidente que, se tratar de execução de débito provido de garantia real que assegure integralmente aquele interesse do credor, não haverá (demonstrada tal circunstância no procedimento de prestação de caução) lugar à constituição de nova garantia, julgando-se, nos termos do art.º 986º, ‘prestada’ a caução através da mera subsistência da garantia real pré-existente” [Comentário ao Código de Processo Civil, 1999, 543]] e de Rui Pinto [“Não havendo ainda penhora a caução deve cobrir o pagamento da dívida, mais os juros se estes tiverem sido pedidos, incluindo o tempo de mora acrescido pela suspensão tendo o opoente o ónus de alegar e provar a dita suficiência. Havendo penhora ou garantia real, a caução cobrirá apenas o eventual diferencial estimado entre o valor garantido pela penhora e o estimado, após a mora processual, se necessário reforçando ou substituindo a penhora, nos termos do art. 818º, nº 2 in e fine, não se duplicando as garantias na parte já coberta. Mas também por isso mesmo se não houver diferencial, pode ser dispensada a prestação de caução por já haver penhora ou garantia real suficientes mesmo para a mora processual.” [Manual da Execução e Despejo, 2013, 434-435]]

E tem logrado, igualmente, a adesão da jurisprudência, como decorre dos Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 28FEV2012 [...] [… “o legislador considerou que o facto de os direitos do exequente se encontrarem acautelados pela penhora já efectuada (…) torna desnecessária a prestação de caução, dado o que com esta se pretende acautelar já se encontra contido na penhora efectuada.(…) tais considerações valerão, por maioria de razão, para o exequente já munido de hipoteca prévia (…)”] e de 16ABR2015 [] [(…) se o crédito exequendo se mostra suficientemente garantido pelo direito real de garantia (hipoteca) que incide sobre o imóvel, iniciando-se a penhora sobre este bem, a suspensão da execução, em consequência da dedução de oposição à execução, nenhum prejuízo acarreta ao exequente, pois não existe qualquer perigo de extravio, ocultação ou dissipação do bem, nem tão-pouco qualquer receio de constituição de outro ónus ou encargo que afete o direito do credor. E, sendo assim, não se justifica exigir ao devedor outras garantias, nomeadamente a prestação de caução.”], do Tribunal da Relação de Évora de 06NOV2014 [...] [“De modo que não podemos deixar de tomar posição no sentido de estar com aqueles que não vêem objecção legal a que uma hipoteca já prestada a favor do exequente como garantia da obrigação exequenda possa ser oferecida e considerada idónea em ordem a servir como caução tendo em vista a suspensão da execução”] e do Tribunal da Relação de Coimbra de 05MAI2015 [...] [“A hipoteca, mesmo que anteriormente constituída, cremos que não será abstractamente inidónea para servir de caução no caso em apreço”.].

E ao qual de igual modo aderimos."
 
[MTS]