"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/12/2018

Jurisprudência 2018 (135)


Petição da herança;
litisconsórcio conjugal


1. O sumário de RP 11/7/2018 (357/17.4T8VGS.P1) é o seguinte:

I - A ação em que o autor, na qualidade de herdeiro dos seus falecidos pais, pede que se declare sem efeito uma escritura de justificação notarial e que se declare também que os prédios nela descritos não pertencem à ré, sua irmã, mas sim à herança indivisa aberta por óbito dos pais, não carece de ser proposta igualmente pelo seu cônjuge ou com o consentimento deste.

II - É que nesta ação não está em causa a possibilidade de perda ou oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos, mas tão-somente o não ingresso desses bens no património hereditário.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O art. 34º do Cód. de Proc. Civil, onde estão previstos diversos casos de litisconsórcio necessário legal, resultantes do casamento [...], estabelece o seguinte no seu nº 1:

«Devem ser propostas por ambos os cônjuges, ou por um deles com consentimento do outro, as ações de que possa resultar a perda ou a oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos, incluindo as ações que tenham por objeto, direta ou indiretamente, a casa de morada de família.»

No caso dos autos, verifica-se que a ação intentada pelo autor se configura, num primeiro plano, como de impugnação judicial de escritura de justificação notarial, uma vez que este pretende que tal escritura, celebrada em 30.10.2017, seja declarada sem efeito, que se declarem como falsas as declarações dela constantes e que se declare ainda que os prédios nela descritos não pertencem à ré.

Ora, estas ações, em que se impugna o facto justificado notarialmente constituem ações de simples apreciação negativa, nas quais se pretende tão-só que se declare a inexistência de uma relação ou de um facto juridicamente relevante. Limita-se, pois, a atividade judicial a retirar de um estado de incerteza grave e objetiva o direito ou facto jurídico, verificando, em juízo, a sua inexistência. [...]

Porém, da leitura dos pedidos formulados pelo autor, mais concretamente do pedido b), constata-se que este não se limita a pedir que que seja declarado que os dois prédios descritos na escritura de justificação notarial não pertencem à ré. Pretende ainda que seja declarado que os mesmos pertencem à herança indivisa aberta por óbito dos pais de autor e ré.

Ou seja, o autor, para além dos pedidos próprios de uma ação de impugnação de justificação notarial, formula também pedido através do qual reivindica para a herança a propriedade de dois imóveis.

Acontece que, conforme decorre do atrás citado art. 34º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, devem ser propostas por ambos os cônjuges, ou por um deles com o consentimento do outro, as ações de que possa resultar perda ou oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos.

Mas esse, pese embora a posição assumida na decisão recorrida, não é o caso dos autos.

Com efeito, na presente ação não está em causa a possibilidade de perda ou oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos.

O que se pretende é tão-somente salvaguardar bens que pertencem à herança dos pais do autor e da ré e que não se integram no património do autor marido, sendo que este está a exercer um direito que lhe é conferido pelo nº 1 do art. 2078º do Cód. Civil.

Preceitua-se neste artigo que, existindo vários herdeiros qualquer deles tem legitimidade para pedir separadamente a totalidade dos bens em poder do demandado, sem que este lhe possa opor que tais bens não lhe pertencem por inteiro.

E se o pode fazer desacompanhado dos demais herdeiros, lógico é que também o possa fazer desacompanhado do seu cônjuge.

É que “in casu” não estão em apreciação bens imóveis pertencentes ao casal ou a um dos cônjuges e, por isso, a improcedência da ação proposta pelo autor não tem como efeito a perda ou a oneração de bens integrados no seu património, mas apenas o seu não ingresso no património hereditário.

Assim, a ação proposta pelo autor não se engloba no universo de ações a que se refere o art. 34º do Cód. de Proc. Civil, podendo intentá-la desacompanhado do seu cônjuge."

3. [Comentário] O decidido no acórdão está possivelmente correcto, porque, muito provavelmente, os cônjuges não estão casados num regime de comunhão que abranja os bens adquiridos mortis causa por qualquer dos cônjuges (cf. art. 1732.º CC). Em todo o caso, estranha-se a omissão de qualquer referência ao regime de bens do casamento do autor da acção.

Também há que colocar algumas reservas à afirmação de que "se [o cônjuge] o pode fazer desacompanhado dos demais herdeiros, lógico é que também o possa fazer desacompanhado do seu cônjuge". A verdade é que a razão pela qual a acção de petição da herança pode ser intentada por um único dos herdeiros (art. 2078.º, n.º 1, CC) nada tem a ver com a razão pela qual a acção pode ser proposta apenas por um dos cônjuges (art, 34.º, n.º 1, a contrario).

Se o regime de bens do casamento for um regime de comunhão que abranja igualmente os bens obtidos através de herança, a acção pode ser proposta por qualquer herdeiro, mas, se esse herdeiro for casado nesse regime de comunhão, a acção tem mesmo de ser proposta por esse herdeiro e pelo seu cônjuge, dado que a eventual improcedência da causa produz um efeito semelhante à alienação de bens que, por serem comuns, só podem ser alienados por ambos os cônjuges. Neste caso, preenche-se a previsão do art. 34.º, n.º 1, CPC, o que demonstra que a afirmação acima transcrita não pode ser considerada correcta.

MTS