"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/01/2021

Jurisprudência 2020 (118)


Convenção arbitral;
insuficiência económica*


1. O sumário de RL 18/6/2020 (3504/19.8T8FNC.L1-6) é o seguinte:

Litigando o Autor com o benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido pela Segurança Social, depois de comprovada a sua situação de insuficiência económica, poderá o Autor afastar a eficácia da convenção de arbitragem propondo a acção no tribunal judicial, sem que lhe seja oponível a excepção dilatória da preterição do tribunal arbitral.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Tendo em conta as conclusões de recurso formuladas que delimitam o respectivo âmbito de cognição deste Tribunal, a única questão a apreciar consiste em saber se, perante a situação de insuficiência económica superveniente, poderá o Autor afastar a eficácia da convenção de arbitragem propondo a acção no tribunal judicial.

O Autor e ora Apelante alega que a sua situação de insuficiência económica prende-se com o objecto do litígio, mormente com o incumprimento contratual que é imputado à Ré. Invoca, assim, que as circunstâncias com base nas quais as partes convencionaram o recurso à arbitragem se alteraram, designadamente devido ao incumprimento da Ré, ficando numa situação de carência económica que o impossibilita de fazer face aos elevados custos inerentes à constituição e funcionamento do tribunal arbitral.

Ora, argumenta, garantindo a Constituição da República Portuguesa que o acesso ao direito não pode ser denegado por insuficiência de meios económicos, mas sendo o benefício do apoio judiciário limitado aos tribunais estaduais, só a estes pode recorrer para fazer valer o seu direito.

Por esta razão, no seu entender, tem de se considerar como competente o tribunal judicial, sob pena de efectiva denegação de justiça por razões de insuficiência económica.

Quid juris?

Na verdade, da análise dos autos resulta que, nos termos da legislação aplicável, foi concedido pela Segurança Social ao Autor o benefício do apoio judiciário, na modalidade de dispensa da taxa de justiça e demais encargos com o processo. O Autor alegou, precisamente, que só dessa forma teve possibilidade de instaurar a acção, uma vez que, tendo 79 anos de idade, apenas vive de uma pensão de sobrevivência no valor de € 170,28 mensais. O rendimento que lhe advinha do contrato celebrado com a Ré, deixou de o receber, em consequência do incumprimento desta. Deste modo, ficou numa situação de carência económica que o impossibilita de fazer face aos elevados custos inerentes à constituição e funcionamento do tribunal arbitral.

Como é sabido, a convenção arbitral é um negócio jurídico bilateral, através do qual as partes acordam submeter à decisão de árbitros, a resolução de um eventual litígio.

Desta convenção nasce um direito potestativo para as partes, que as vincula à constituição de um tribunal arbitral para o julgamento de litígios nela previstos.

Recorrendo uma das partes ao tribunal judicial para a resolução de um litígio objecto da convenção arbitral, em vez de se socorrer do tribunal arbitral, a outra parte deve arguir a excepção dilatória de preterição do tribunal arbitral. Arguida a respectiva excepção, o tribunal judicial não goza de qualquer poder discricionário na sua apreciação, antes verificados os respectivos pressupostos, deve julgar a excepção procedente e absolver da instância.

Contudo, este regime jurídico tem de ser compaginado com o princípio constitucional consagrado no art.º 20.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa através do qual a “todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”.

E em cumprimento deste imperativo constitucional, o artigo 1.º da Lei n.º 34/2004 de 29 de Julho (acesso ao direito e aos tribunais) estabelece que:

“1-O sistema de acesso ao direito e aos tribunais destina-se a assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos.

2-Para concretizar os objectivos referidos no número anterior, desenvolver-se-ão acções e mecanismos sistematizados de informação jurídica e de protecção jurídica.”

Cabe assinalar, porém, que estes mecanismos de protecção jurídica estão previstos apenas para os casos de acesso aos tribunais estaduais e não nas situações de acesso aos tribunais arbitrais.

Ora, é tendo presente este pano de fundo que se coloca a questão de saber se a superveniência de uma situação de insuficiência económica que impossibilite uma das partes na convenção arbitral de suportar as despesas com a constituição e funcionamento da arbitragem constitui ou não causa legítima de incumprimento dessa convenção, isto é, se nesse caso, a parte que se viu impossibilitada de custear as despesas de arbitragem pode ou não deixar de a ela recorrer e submeter o litígio que a oponha à outra parte aos tribunais estaduais.

“Esta questão não encontra resposta directa na lei. A lei contém, tão só no domínio das obrigações, uma norma – n.º 1 do artigo 790 do Código Civil - que estabelece que a obrigação se extingue quando se torna impossível por causa não imputável ao devedor.

No caso, porém, não se está no domínio das obrigações em sentido técnico, mas de uma vinculação, e a "prestação", ou seja, a obrigação de recorrer a tribunal arbitral, não se tornou impossível. O que se tornou impossível foi o pagamento das despesas da arbitragem, que o mesmo é dizer, de uma "obrigação" acessória da "obrigação" principal.

O que então pode perguntar-se é se esta ideia da extinção da obrigação fundada na impossibilidade do seu incumprimento por causa não imputável ao devedor, não deverá valer aqui também. Se uma tal ideia for transponível para o domínio da convenção arbitral, então haverá que concluir que, não podendo uma das partes custear as respectivas despesas, deve ela ficar desonerada da obrigação de recorrer à arbitragem, podendo, em tal caso, dirigir-se aos tribunais estaduais, não obstante a convenção que subscreveu e, nesse caso, não lhe será oponível a excepção dilatória de violação da convenção de arbitragem” [Vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-01-2000, Processo n.º 99ª1015, disponível em www.dgsi.pt].

Assim entendeu o Supremo Tribunal de Justiça, entendimento que já foi igualmente seguido por este Tribunal da Relação de Lisboa [Vide Acórdão do TRL de 2-11-2010, Processo 454/09, disponível em www.dgsi.pt.].

E prossegue aquela jurisprudência com um argumento a nosso ver decisivo, no sentido de dever ser permitido “o recurso aos tribunais estaduais, não obstante a existência de uma convenção arbitral, sempre que (…) por culpa não imputável à parte, esta se veja colocada, supervenientemente, na impossibilidade de custear as despesas da arbitragem a que se comprometeu submeter o caso. (…) pois se assim não for, face à impossibilidade de custear tais despesas, essa parte estará impossibilitada de obter justiça para o seu caso, isto é, ver-se-á impedida de ver satisfeito o seu direito de acesso à justiça para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos; melhor dizendo, num tal caso, a parte veria ser-lhe denegada justiça por insuficiência de meios económicos.[...]

Ora, é este resultado que a Constituição não aceita - cfr. citado n. 1 do artigo 20.º”.

Impõe-se concluir, tal como se concluiu no acórdão que vimos acompanhando de perto que “na hipótese que se figurou de a parte na convenção arbitral que, posteriormente à celebração desta, se viu, sem culpa sua, arrastada para uma situação de insuficiência económica que a impossibilitam de custear as despesas dessa arbitragem, possa deixar de cumprir tal convenção e recorrer aos tribunais estaduais, pedindo a resolução do caso, sem que seja possível opor-lhe a competente excepção dilatória”

Não podemos deixar de subscrever este entendimento, dando razão, por conseguinte, ao Apelante.

Nestas circunstâncias, litigando o Autor com o benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido pela Segurança Social depois de comprovada a sua situação de insuficiência económica poderá o Autor afastar a eficácia da convenção de arbitragem propondo a acção no tribunal judicial, sem que lhe seja oponível a excepção dilatória da preterição do tribunal arbitral." 

*3. [Comentário] Como fundamento jurídico da solução propugnada no acórdão pode invocar-se a resolução da convenção de arbitragem por alteração das circunstâncias (art. 437.º, n.º 1, CC).

MTS