"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/01/2021

Jurisprudência 2020 (136)


Acção de reivindicação;
aquisição originária; ónus da prova*


1. O sumário de RL 21/5/2020 (12917/17.9T8SNT.L1-2) é o seguinte:

I - Nas máximas da experiência parte-se do pressuposto de que, em casos semelhantes, existe um idêntico comportamento humano e este relacionamento permite afirmar um facto histórico, não com plena certeza mas como uma possibilidade mais ou menos ampla.

II - Não é de todo uma regra da experiência comum que as partes formulam pedidos bem fundados para não incorrerem em despesas judiciais em vão.

III - O uso de uma presunção judicial não pode servir de desvio às regras de distribuição do ónus de prova.

IV - Na ação de reivindicação prevista no artigo 1311.º do CC, a pretensão não se poderá fundar exclusivamente na invocação de um título de aquisição derivada do direito peticionado.

V - Nesse domínio, em consonância com a teoria da substanciação subjacente ao disposto no artigo 581.º, n.º 4, do CPC, torna-se necessário que o adquirente demonstre que o direito existia na esfera do alienante, alegando e provando os factos que consubstanciam a sua causa genética - usucapião, ocupação ou acessão.

VI - Contudo, num caso em que ambas as partes admitem inequivocamente o direito de propriedade do transmitente, não é exigível que o Autor alegue e prove a aquisição originária daquele direito.

VII - A admissão pelas partes da existência desse direito de propriedade na esfera do transmitente reconduz-se a uma situação jurídica consolidada, face à qual restará provar a subsequente celebração do acordo de partilha com o Autor.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"c) Estamos perante uma ação de reivindicação, tal como é definida no artigo 1311.º do Código Civil, segundo o qual o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade (ou outro) e a consequente restituição do que lhe pertence.

Quanto à questão da prova do direito de propriedade na ação de reivindicação, a jurisprudência maioritária tem-se pronunciado no sentido de que cabe ao demandante a prova daquele direito, a qual terá de ser feita através de factos dos quais resulte demonstrada a aquisição originária do domínio, por sua parte ou por qualquer dos antepossuidores. Quando a aquisição for derivada, têm de ser provadas as sucessivas aquisições dos antecessores até à aquisição originária, exceto nos casos em que se verifique a presunção legal da propriedade, como a que resulta da posse ou do registo (artigos 1268.º do Código Civil e 7.º do Código de Registo Predial) - cf., a título exemplificativo, o acórdão do TRL de 21.6.2012 (p. 7213/11.8TBOER.L1-2) e o acórdão do TRC de 14.1.2014 (p. 224/12.8TBCTB-C.C1), ambos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt. 

Quanto aos bens móveis sujeitos a registo, como os veículos automóveis, de acordo com o artigo 7.º do Código de Registo Predial, ex vi do artigo 29.º do Código do Registo da Propriedade Automóvel, o registo definitivo faz presumir a existência do direito e a sua pertença ao titular inscrito.

O registo não surte eficácia constitutiva, pois destina-se a dar publicidade ao ato registado, funcionando como mera presunção ilidível (presunção juris tantum) da existência do direito (artigos 1.º, n.º 1, e 7.º do Código do Registo Predial e 350.º, n.º 2, do Código Civil), bem como da respetiva titularidade.

Acresce que o contrato de compra e venda de veículo automóvel é meramente consensual (artigo 219.º do Código Civil) e quoad effectum (artigos 408.º e 874.º, alínea a), do mesmo diploma), sendo a obrigatoriedade do registo declarativa ou funcional.

Compulsada a factualidade apurada, sob o ponto 20 dos factos provados, ficou provado que «O veículo Peugeot a que o autor faz referência na sua p.i. foi adquirido pelo mesmo antes de se juntar com a ré, em data não concretamente apurada.»

Da análise conjugada dos artigos 5.º, l), e 7.º da petição inicial com o artigo 22.º da contestação, retira-se que esta factualidade está provada por acordo das partes, ao abrigo dos artigos 574.º, n.º 2, e 607.º, n.º 4, do CPC.

Na verdade, no artigo 22.º da sua contestação, a Ré admitia que «O veículo Peugeot a que o A faz referência na sua p.i. foi adquirido pelo mesmo apenas cerca de 6 meses antes de se juntar com a R (…).»

Do exposto ressalta que assiste razão ao Apelante quando afirma que a aquisição da propriedade do Peugeot em data anterior à vida em comum com a Ré está assente entre as partes.

Cumpre, pois, ponderar se, mesmo sem a certidão comprovativa da incrição no registo do veículo automóvel, tal documento seria desnecessário uma vez que ambas as partes admitem o direito de propriedade àquela data.

Na verdade, ou o Autor juntava tal documento, beneficiando da presunção registal, ou teria de demonstrar a aquisição originária do veículo ou toda a corrente do trato sucessivo na sequência de eventuais aquisições derivadas.

Entendemos que tal não seria necessário.

Neste sentido, respigamos aqui as palavras do acórdão do STJ de 9.11.2017 (p. 1964/14.2TCLRS.L1.S1, in www.dgsi.pt), ainda que a propósito de um bem não sujeito a registo, assim sumariado:

«I - Segundo a doutrina e jurisprudência dominantes, nas ações reais - maxime na ação de reivindicação prevista no artigo 1311.º do CC -, a pretensão não se poderá fundar exclusivamente na invocação de um título de aquisição derivada do direito peticionado.

II. Nesse domínio, em consonância com a teoria da substanciação subjacente ao disposto no atual artigo 581.º, n.º 4, do CPC, torna-se necessário que o adquirente demonstre que o direito existia na esfera do alienante, alegando e provando os factos que consubstanciam a sua causa genética - usucapião, ocupação ou acessão.

III. Todavia, num caso em que ambas as partes admitem, inequivocamente, o direito de propriedade do transmitente que interveio no contrato de compra e venda alegado pelo autor, estando apenas questionada a celebração deste contrato, não se mostra exigível que o autor alegue e prove a aquisição originária, por via usucapião, daquele direito por parte do transmitente.

IV. A admissão pelas partes da existência desse direito de propriedade na esfera do transmitente reconduz-se a uma situação jurídica consolidada, face à qual restará provar a subsequente celebração do contrato de compra e venda com o autor.»

Sem embargo, mesmo considerando que o Autor era o proprietário do referido veículo, também não se pode escamotear o acordo de partilha provado sob o ponto 22 da decisão sobre a matéria de facto.

Assim, ficou demonstrado que, aquando da separação, o Autor e a Ré acordaram que o Autor ficaria com o veículo da marca Ford, uma vez que é de cinco lugares e o mesmo tem dois filhos e que a Ré ficaria com o veículo Peugeot, que é de dois lugares, pois esta tem um filho, em comum com o Autor. [...]

Na situação em apreço, ficou demonstrada a celebração de um acordo de partilha relativamente aos veículos automóveis Ford e Peugeot, livremente acordado entre as partes, ao abrigo do artigo 405.º do Código Civil. Ressalta desse acordo que a propriedade do veículo Peugeot se transmitiu para a Ré por mero efeito do contrato (cf. artigo 408.º do Código Civil).

É certo que, como decorre do facto provado sob o ponto 26 da facturalidade provada, não foi assinada a declaração de venda por forma a permitir a transferência da propriedade do veículo Peugeot para a Ré.

Porém, como é sabido, um contrato que envolva a transmissão da propriedade de um veículo é consensual (artigo 219.º do Código Civil).

Logo, não estando demonstrada a propriedade atual do veículo Peugeot a favor do Autor, improcede também esta alegação do Recorrente."

*3. [Comentário] A RL decidiu bem.

b) Não se põe em causa que, quando não exista uma presunção de titularidade do direito, se exige habitualmente que, numa acção de reivindicação, o autor faça prova de um título de aquisição originária. O que não se pode aceitar é que isto possa colocar o autor perante a necessidade de realizar uma probatio diabolica.

A solução deve, por isso, ser repensada à luz dos parâmetros actuais do processo civil. Uma solução possível consiste em exigir a prova dessa aquisição originária apenas quando, através de uma contestação substanciada do réu, esta parte alegue factos que possam colocar em causa essa aquisição. 

MTS