"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/01/2021

Jurisprudência 2020 (123)


Processos urgentes;
contagem de prazos


1. O sumário de STJ 5/5/2020 (1855/13.4TBVRL-B.G1-B.S1é o seguinte:

  1. À prática de actos processuais no âmbito de processos qualificados legalmente como urgentes, como são os processos de insolvência incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos (arts. 9º, 1, 148º, CIRE), aplica-se a regra da continuidade da contagem dos prazos sem suspensão no período de férias judiciais, tal como resulta da injunção do art. 138º, 1, 2.ª parte, do CPC, com consequencial aplicação do art. 139º, 3, para os prazos peremptórios ou preclusivos (extinção do direito de praticar o acto).
     
  2. Essa aplicação não é paralisada pelo art. 137º, 2, em conjugação com o seu n.º 1, do CPC, uma vez que a excepção aí prevista para a não realização de actos processuais durante o período de férias judiciais quando estejam em causa «atos que se destinem a evitar dano irreparável» abrange, como actos com essa natureza, os actos a praticar em processos que a própria lei qualifica como urgentes.
     
  3. Esta interpretação, que obvia a que se paralise a aplicação dos arts. 138º, 1, e 139º, 3, do CPC pela indicação de inexistência de «dano irreparável» nos actos processuais realizados nos processos urgentes, não viola, em particular tendo em conta o amplo poder de conformação que assiste ao legislador na concreta modelação processual, princípios ou normas constitucionais, em especial o da tutela jurisdicional efectiva plasmado no art. 20º da CRP.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"B) Não existem motivos para afastar a fundamentação do despacho nem vício ou motivação que motive o seu falecimento.

Na verdade, o estabelecimento de prazos para a prática dos actos processuais serve não apenas os interesses das partes em que o processo seja célere, mas serve também um interesse geral de fluidez na administração da justiça. E tais interesses ainda mais se acentuam quando a lei indica prazos mais curtos para os processos qualificados como urgentes e, sendo urgentes os processos, a lei determina que não se suspende a contagem dos prazos dos seus actos em período de férias judiciais. Interpretar o art. 137º, 1 e 2, no sentido de permitir – a coberto de uma interpretação casuística de que determinados actos processuais não são “actos que se destinem a evitar dano irreparável” – que os arts. 138º, 1 («O prazo processual, estabelecido por lei ou fixado por despacho do juiz, é contínuo, suspendendo-se, no entanto, durante as férias judiciais, salvo se a sua duração for igual ou superior a seis meses ou se tratar de atos a praticar em processos que a lei considere urgentes.»), e 139º, 3, sempre do CPC, fossem precludidos, de modo a que a contagem dos prazos se fizesse com suspensão no período de férias judiciais a coberto dessa mesma interpretação, e desde que o interessado o fizesse no primeiro dia útil seguinte após se ter esgotado esse mesmo período, seria – reitere-se – abrir a porta a factores de inaceitável risco para a fluidez da tramitação processual, particularmente exigente quando se trata de processos objecto de consideração diferenciada pela lei pela qualificação de “urgentes”.

São estes, como se apontou no despacho reclamado, que merecem a previsão do art. 137º, 2, pois neles (entre outros [V. ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil anotado, Vol. I cit., sub art. 137º, pág. 160]) se concentra a ocorrência do «dano irreparável» que se visa prevenir. Por outras palavras, essa aplicação dos arts. 138º, 1, e 139º, 3, do CPC não é paralisada pelo art. 137º, 2, em conjugação com o seu n.º 1, do CPC, uma vez que a excepção aí prevista para a não realização de actos processuais durante o período de férias judiciais quando estejam em causa «atos que se destinem a evitar dano irreparável» abrange, como actos com essa natureza, os actos a praticar em processos que a própria lei qualifica como urgentes. Logo, o art. 137º, 2, não excepciona, antes confirma e traduz, a solução injuntiva que, em especial, o art. 138º, 1, 2.ª parte, confere aos processos urgentes.

CClaro que, optando (ou não) a recorrente por um caminho e por uma opção que se afigurava incerta e naturalmente discutível, o prazo tendente à inadmissibilidade do recurso não deixou de seguir o seu curso. Por isso, quando apresentou o requerimento de interposição do recurso de revista já estava esgotado o prazo legal para o efeito, conforme detalhado na decisão singular, merecendo a reacção das instâncias consistente no juízo de intempestividade.

A Reclamante aduz agora, em seu abono, que se deve desaplicar a norma do art. 137º, 2 (em conjugação com o seu n.º 1), do CPC, por ela enfermar de inconstitucionalidade material quando interpretada no sentido que fundou o despacho reclamado. Em causa estaria a violação dos princípios do Estado de Direito, da conformidade com a Constituição e da tutela jurisdicional efectiva e “pro actione”, tal como consagrados nos arts. 2º, 3º, 3, e 20º, 1 e 4, da CRP. Em palavras sumárias, a aqui Reclamante veio trazer ao processo a compreensão de que o despacho reclamado enferma de uma interpretação formalista que inviabiliza o direito a uma justiça efectiva, desconforme com a “verdade material” e com a ultrapassagem de argumentos ritualistas que impeçam a apreciação do mérito ou fundo das causas.

Apreciando a inconstitucionalidade invocada: não cremos.

Como é entendimento aceite na doutrina e na jurisprudência constitucional, o legislador tem um amplo poder de conformação na concreta modelação processual, neste caso aplicado aos regimes de prática dos actos e da contagem dos seus prazos de realização, assim como da qualificação de processos como urgentes (também) para esse efeito, desde que não se estabeleçam mecanismos arbitrários ou desproporcionados de compressão ou negação do direito à prática desses actos (incidente aqui na impugnação recursiva) [V., por ex., o Ac. do TC n.º 460/2011, de 11/10/2011, processo n.º 517/11, Rel. JOÃO CURA MARIANO [...], e, para a específica matéria do direito ao recurso em processo civil, o Ac. do TC n.º 361/2018, de 28/6/2018, Rel. CATARINA SARMENTO E CASTRO (tal direito “não encontra previsão expressa no artigo 20.º da Constituição, não resultando como uma imposição constitucional dirigida ao legislador, que, neste âmbito, dispõe de uma ampla margem de liberdade”)]. Não é aqui o caso. Antes é o caso de enfatizar que, no fito de tal tutela se concretizar efectiva e plenamente, também as partes devem seguir a aparelhagem legalmente constituída com a auto-responsabilidade exigível para a concretização dos seus direitos, nomeadamente quando estamos perante normas imperativas quanto ao condicionamento ou balizamento do exercício de direitos processuais. De facto, como se salientou recentemente neste tribunal, “[e]xistem normas cuja injuntividade paralisam as pretensões, e as que estipulam prazos judiciais peremptórios, são algumas delas (…)”[Ac. do STJ de 10/12/2019, Rel. ANA PAULA BOULAROT, processo n.º 392/185T8STR-C.E1-A.S1, in www.dgsi.pt (acrescentando a essas as que regem a “operância do caso julgado”)] – e é nelas que, sem se precludir o direito de apreciação jurisdicional, se deve mobilizar com acréscimo de diligência a atenção das partes e dos seus mandatários, sob pena de – essa sim – a ausência de diligência frustrar a pretendida tutela assegurada pelo poder judicial de um Estado de Direito (art. 20º da CRP).

Se tais normas reguladoras não fossem previamente estabelecidas e conhecidas – tanto mais que, no que vem discutido, manifestamente se enquadram na exigência constitucional do art. 20º, 5, da CRP («Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.») – e se tais regimes conexos não forem objecto de uma racionalidade intelegível e aceite, aí sim estaríamos a promover um arbítrio intolerável e um afastamento casuístico que afrontaria a equidade e a efectividade da tutela jurisdicional. Não é de todo o que aqui enfrentamos quando se integram os actos a praticar em processos qualificados pela lei como urgentes – como ocorre com o processo de insolvência, incluindo os seus incidentes, apensos e recursos – no âmbito dos actos destinados a evitar dano irreparável que, como tal, correm sem suspensão durante o período de férias judiciais. Pelo que, também por esta via, não se vislumbra que tal interpretação se mostre censurável à luz do art. 3º, 3, da CRP, uma vez que se demonstra que está suficientemente justificada em fundamentos objectivos e materialmente fundados, precludindo-se ver nela algo de desadequado, desnecessário, desproporcionado ou excessivamente oneroso no intuito de efectivação dos direitos processuais, não comprometendo de todo as expectativas legítimas dos cidadãos nem a segurança jurídica.

Em conclusão: não se configura qualquer ablação ou limitação do direito da Recorrente com a interpretação das normas jurídicas do Código de Processo Civil adoptada, não existindo desconformidade com os parâmetros e preceitos constitucionais invocados (arts. 2º, 3º, 3, e 20º da CRP) que justifique a pretendida desaplicação ao caso do art. 137º, 1 e 2, do CPC, no sentido justificadamente seguido pelo despacho reclamado, que ora se confirma."


MTS