"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/01/2021

Jurisprudência 2020 (120)


Suspensão de deliberações sociais;
legitimidade*


1. O sumário de RE 21/5/2020 (218/20.0T8STR.E1) é o seguinte:

I - Para a instauração do procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais, previsto no artigo 380.º do Código de Processo Civil, a lei impõe que o requerente tenha a qualidade de sócio.

II – Quem não detenha essa qualidade e pretenda, ainda assim, impugnar a deliberação prejudicial, terá que recorrer ao procedimento cautelar comum, verificados que sejam os respectivos requisitos (sumário do relator).

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"1. A primeira questão que se coloca consiste em saber se o requerente, que não é sócio da requerida sociedade, pode lançar mão do procedimento cautelar especificado de “suspensão de deliberações sociais”, regulado nos artigos 380º a 382º do Código de Processo Civil.
Vejamos:

2. Nos termos do disposto no artigo 380º do Código de Processo Civil (sob a epígrafe “Pressupostos e formalidades):

1 - Se alguma associação ou sociedade, seja qual for a sua espécie, tomar deliberações contrárias à lei, aos estatutos ou ao contrato, qualquer sócio pode requerer, no prazo de 10 dias, que a execução dessas deliberações seja suspensa, justificando a qualidade de sócio e mostrando que essa execução pode causar dano apreciável.
2 - O sócio instrui o requerimento com cópia da acta em que as deliberações foram tomadas e que a direcção deve fornecer ao requerente dentro de vinte e quatro horas; quando a lei dispense reunião de assembleia, a cópia da acta é substituída por documento comprovativo da deliberação.
3 - O prazo fixado para o requerimento da suspensão conta-se da data da assembleia em que as deliberações foram tomadas ou, se o requerente não tiver sido regularmente convocado para a assembleia, da data em que ele teve conhecimento das deliberações. [...]

Como resulta do preceito, o procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos: (1) ser o requerente sócio da sociedade que a tomou; (2) ser essa deliberação contrária à lei ou ao pacto social e (3) resultar da sua execução dano apreciável.

No caso em apreço, interessa-nos o primeiro dos referidos requisitos, porquanto na decisão recorrida se entendeu que, não tendo o requerente a qualidade de sócio, não tinha legitimidade para instaurar o procedimento especificado, e o recorrente discorda deste entendimento, convocando entendimentos doutrinários que, advogando uma interpretação extensiva da expressão “qualquer sócio”, ínsita no n.º 1 do artigo 380º do Código de Processo Civil, ou uma interpretação analógica das normas que prevêem sobre as acções de nulidade e de anulação do C.S.C, que atribuem legitimidade activa a outros órgãos para as acções principais, apontam no sentido de quem tem legitimidade para a acção também tem que ter para o procedimento cautelar especificado.

3. É verdade que quanto a esta questão não há um entendimento unânime na doutrina, como aliás, dá conta o requerente, citando a tese de Ana Rita Nunes de Oliveira (A impugnação das Deliberações dos Sócios pelo Órgão de Fiscalização, 2017, disponível no repositório de teses da Universidade Católica e o link inserido no título da obra), que indica: – em prol da legitimidade activa do órgão de fiscalização para requerer a suspensão de deliberações sociais [“Coutinho de Abreu, defendendo que se deve usar duma interpretação teleológica ou fazer uma aplicação analógica das normas sobre as acções de nulidade e de anulação do C.S.C. que atribuem legitimidade activa a outros órgãos para as acções principais (ABREU, JORGE M. COUTINHO DE, «Impugnação de Deliberações Sociais (Teses e antíteses, sem sínteses)», cit. , p. 209; e ABREU, JORGE M. COUTINHO DE, «Artigo 60.º» in AA.VV., Código das Sociedades Comerciais em comentário, cit., pp.696-697), referindo como autores que acompanham esta posição, Pinto Furtado (FURTADO, J. PINTO, Deliberações de sociedades comerciais , Coimbra, Almedina, 2005, p.793) e Lebre de Freitas/Montalvão Machado/Rui Pinto (FREITAS, J. LEBRE DE,/MACHADO, A. MONTALVÃO/PINTO, RUI – Código de Processo Civil anotado, vol. 2.º, Coimbra, Coimbra Editora, 2001, p.90)”], e – no sentido de que os não sócios apenas poderão requerer um procedimento cautelar comum com esse intuito: [Taveira da Fonseca (FONSECA, J. TAVEIRA DA, «Deliberações Sociais - Suspensão e Anulação», em CEJ, Textos (Sociedades comerciais) , 1994/1995, pp.90-91), Abrantes Geraldes (GERALDES, A. ABRANTES, Temas da Reforma do processo civil , IV vol., Coimbra, Almedina, p.80), Soveral Martins (MARTINS, A. SOVERAL, «Suspensão de deliberações sociais de sociedades comerciais: alguns problemas», ROA, 2003, p.360) e Armando Triunfante (TRIUNFANTE, ARMANDO M., A tutela das minorias nas sociedades anónimas – Direitos individuais , Coimbra, Coimbra Editora, 2004, p.212)].

4. Salvo o devido respeito, discordamos daquele primeiro entendimento, que é sufragado pelo recorrente, no sentido de que os não sócios podem recorrer ao procedimento cautelar especificado, porquanto não se nos afigura viável uma qualquer interpretação normativa que não tenha na letra da lei a mínima correspondência, nem nos parece ter sido aquela a interpretação querida pelo legislador.

Efectivamente, a lei não só apela no n.º 1 do artigo 380º do Código de Processo Civil, à qualidade de sócio, exigindo a prova dessa qualidade, como no n.º 2, diz quais os documentos com os quais o sócio deve instruir o requerimento inicial, donde deriva a intenção do legislador em restringir o procedimento a quem tenha aquela qualidade.

Também a jurisprudência aponta no sentido de que a legitimidade para requerer a providência especificada é restrita ao sócio. [Nesse sentido, inter alia, cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/05/2000 (proc. n.º 00B337), relator FERREIRA DE ALMEIDA; Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, 12/07/2012 (proc. n.º 459/12.3TBSLV), relator PAULO AMARAL; e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11/10/2012 (proc. n.º 255/12.8TVLSB-A.L1-6), relator TOMÉ RAMIÃO; bem como o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08/11/2011 (proc. n.º 158/10.0T2AVR-A.C2), relator CARVALHO MARTINS; e o acórdão Tribunal da Relação de Lisboa, de 28/06/2018 (proc. n.º 78/18.0T8AGH-A.L1-6), relator ANTÓNIO SANTOS, todos acessíveis, como os demais citados sem outra referência, em www.dgsi.pt, os dois últimos, com o entendimento de que a legitimidade activa para a providência apenas se verifica em relação ao sócio que já o era ao momento da deliberação impugnada e que conserva essa qualidade ao tempo da impugnação].

De facto, como diz Abrantes Geraldes, «… para a instauração do procedimento cautelar de suspensão da deliberação a lei impõe que o requerente tenha a qualidade de sócio (…). Para quem não detenha essa qualidade e pretenda, ainda assim, impugnar a deliberação prejudicial, restará o recurso ao procedimento cautelar comum, verificados que sejam os respectivos requisitos [assim sucederá quando o gerente ou o administrador, que não detenha a qualidade de sócio, pretenda atacar a deliberação da sua destituição, como refere Taveira da Fonseca, Deliberações Sociais – Suspensão e Anulação, em Textos – Sociedades Comerciais, ed. CEJ, 1995/1995, pág. 91]» (Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. IV, 4ª edição revista e actualizada, págs. 89 e 90, com referências doutrinárias).

Deste modo, quem não possa recorrer ao procedimento cautelar especificado, mas tenha legitimidade para intentar a acção de anulação, pode, se nisso tiver interesse, lançar mão do procedimento cautelar comum, alegando e provando os requisitos de que depende este procedimento, previstos no artigo 362º do Código de Processo Civil, pelo que não é correcta a conclusão de que o não sócio fica sem tutela cautelar."

*3. [Comentário] A solução do problema não é certamente indiscutível, mas talvez seja preferível a solução contrária àquela que fez vencimento no acórdão da RE. A solução pode ser fundamentada no seguinte:

-- Dado que é importante manter os efeitos específicos da providência de suspensão de deliberações sociais, então o mais razoável é aceitar a utilização dessa providência por um não sócio;

-- Até porque, se, para manter esses efeitos, a providência cautelar não especificada requerida por um não sócio for copiada da providência de suspensão de deliberações sociais, então o afastamento da aplicação desta providência é apenas nominal.

MTS