"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/01/2021

Jurisprudência 2020 (127)


Processo executivo;
relação cambiária; relação subjacente*


1. O sumário de RP 15/6/2020 (2983/19.8T8PRT-A.P1) é o seguinte:

I - Uma livrança, enquanto título de crédito, pode ser dada à execução de per si, sem a alegação da relação jurídica subjacente, da qual o título cambiário se abstrai.

II - Porém, encontrando-se prescrita a respectiva obrigação cambiária, a livrança só poderá valer como título executivo desde que os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou estejam alegados no requerimento executivo.

III - Não terá, porém, essa força executiva a livrança, se o negócio causal for um negócio formal, pois, nesse caso, é o próprio documento mediante o qual foi celebrado o negócio que serve de título executivo e, não existindo esse documento, o negócio será nulo, sendo a nulidade de conhecimento oficioso.

IV - Contudo, no caso do mútuo nulo por violação da forma exigida no artigo 1143.º do CCivil, a força executiva do documento não fica inquinada, por se manter a obrigação de restituição do prestado, por imposição do artigo 289.º do mesmo diploma legal.

V - Não se verifica a excepção de caso julgado por inexistir identidade de causa de pedir, se numa execução se considerou prescrito o direito de acção cambiária de uma livrança e, mais tarde, se vem instaurar nova execução servindo agora a mesma livrança como quirógrafo e com a alegação, no requerimento executivo, dos factos correspondentes à relação subjacente.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Como supra se referiu é apenas uma a questão que importa apreciar:

a) - saber se se verifica, ou não, a excepção de caso julgado.

Como se evidencia da decisão recorrida aí se propendeu para o entendimento de que, no caso em apreço, ocorria a excepção de caso julgado por se verificar a tríplice identidade: sujeitos, pedido e causa de pedir.

Desse entendimento dissente a embargada recorrente referindo que a livrança foi aqui apresentada como quirógrafo de dívida da alegada a relação subjacente.

Quid iuris?

O artigo 703.º do CPCivil, que corresponde ao artigo 46.º do anterior Código, estabelece no seu nº 1 que à execução apenas podem servir de base:

a) As sentenças condenatórias;
b) Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;
c) Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo;
d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.

A exequibilidade dos títulos de crédito nunca foi posta em causa e a questão que na jurisprudência se suscitava era a de saber se os mesmos, depois de prescrito o respectivo direito de acção, poderiam ser dados à execução como meros quirógrafos.

Acontece que a corrente jurisprudencial mais significativa, acompanhando a generalidade da doutrina, entendia que estes documentos, mesmo depois de prescrito o direito de acção, poderiam ser dados à execução, desde que o exequente no requerimento executivo alegasse a respectiva relação subjacente.

Solução que ficou agora expressamente consagrada na alínea c) do nº 1 do artigo 703.º supra transcrito, sendo certo que, se assim não fosse, os títulos de crédito só poderiam ser apresentados à execução na sua vertente cartular, uma vez que os documentos particulares foram banidos do elenco dos títulos executivos. [Cfr. Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, “A Acção Executiva Anotada e Comentada”, Almedina, 2015, pág. 143; Lebre de Freitas, “A Acção Executiva–À Luz do Código do Processo Civil de 2013”, 7ª ed., págs. 76/7.]

No caso dos autos, não oferece dúvidas que a obrigação cambiária está prescrita, atendendo a que entre a data do vencimento aposta na decorreram muito mais do que os três anos previstos no artigo 70.º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (aplicável “ex vi” do artigo 77.º do mesmo diploma legal) para o exercício da acção cambiária.

Assim, prescrita a livrança, esta só poderá valer como título executivo desde que os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou estejam alegados no requerimento executivo.

Ora, entende o embargante/executado que, não constando da livrança os factos constitutivos da relação subjacente, nem se mostrando alegados no requerimento executivo e estando, por isso, o direito de acção prescrito, verifica-se a excepção de caso julgado face à decisão proferida no âmbito da execução que correu termos no J8 dos Juízos de Execução do Porto com o nº 20026/17.4T8PRT.

Asserção esta que o tribunal recorrido veio corroborar na sua decisão.

Todavia, salvo o devido respeito, não se pode sufragar este entendimento.

Analisando.

Por via do disposto no artigo 724.º, n.º 1, al. e), do CPCivil, no requerimento executivo o exequente deve expor sucintamente os factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo.

Portanto, o regime legal vigente traduz a afirmação de que, no âmbito da acção executiva, nem sempre a causa de pedir se consubstancia no título executivo.

Como se sabe era entendido e sustentado, à luz dos preceitos legais originários insertos no CPCivil nesta matéria e quando os títulos executivos eram maioritariamente de natureza cambiária e, por isso, abstractos (cheques, letras e livranças), que a causa de pedir numa acção executiva era consubstanciada pelo próprio título executivo. [Cfr. Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, vol. I, p. 98; Lopes Cardoso, Manual da Ação Executiva, p. 23 e 29]

Actualmente, porém, temos por certo que a causa de pedir na acção executiva assenta na obrigação exequenda, que constitui o seu fundamento substantivo, sendo o título executivo o instrumento documental privilegiado da sua demonstração. [...]

Tratando-se, no entanto, de títulos que valham como títulos de crédito, verificando-se a unidade entre a relação jurídica cambiária e a relação jurídica subjacente (princípio da incorporação) e valendo a relação cambiária independentemente da causa que lhe deu origem (princípio da abstracção), atento ainda o regime conjugado decorrente dos arts. 703.º, n.º 1, al. c) e 724.º, n.º 1, al. e), do CPC, cabe concluir que uma livrança, enquanto título de crédito, pode ser dada à execução de per si, sem a alegação da relação jurídica subjacente, da qual o título cambiário se abstrai. [...]

Ora, no âmbito da execução que correu termos no J8 dos Juízos de Execução do Porto com o nº 20026/17.4T8PRT, a embargada/exequente veio dar à execução o título de crédito “tout court”, ou seja, a livrança, e onde não foi alegada a relação subjacente que a mesma titulava.
Aliás, se aí tivesse sido alegada a referida relação subjacente nunca se poderia ter concluído pela extinção da execução com base na excepção da prescrição.

Acontece que, no caso em apreço a embargada exequente além de apresentar como título executivo a livrança enquanto mero quirógrafo, veio também alegar no requerimento executivo e, ao contrário do que refere o embargante/executado, os factos constitutivos da relação subjacente.

Na verdade, como decorre da transcrição da alegação constante da fundamentação factual, a embargada/exequente veio dizer que no exercício da sua actividade celebrou com o executado um contrato de mútuo com o nº ……, no âmbito do qual lhe concedeu um empréstimo no montante de 3.242,40€, empréstimo esse que o executado ficou obrigado a reembolsar aquela quantia em 60 prestações mensais de 54,04€, com início em 05-01-2010.

Alegou ainda que, como executado não pagou as prestações a que estava obrigado, apesar das várias diligências efectuadas nesse sentido, em 12-08-2014 enviou-lhe uma carta registada com aviso de recepção a informar que o contrato chegara a seu termo sem terem sido cumpridas todas as prestações.

Mais o informando que iria ser preenchida a respectiva livrança em 10-09-2014 pelo valor em divida à data, 1.359,48€, ao abrigo do pacto de preenchimento previsto na cláusula nº 11 do contrato.

Perante esta alegação cremos, salvo o devido respeito, por entendimento diverso, que a relação subjacente entre a embargada/exequente e o executado/embargante foi devidamente alegada e identificada no requerimento executivo.

Como assim, servindo de título executivo a livrança como mero quirógrafo e tendo sido vertidos no requerimento executivo os factos constitutivos da relação subjacente, torna-se evidente que a causa de pedir nesta execução não é a mesma que foi invocada na execução que correu no âmbito da execução que correu termos no J8 dos Juízos de Execução do Porto com o nº 20026/17.4T8PRT.

E não havendo identidade de causa de pedir não se pode dar como verificada a excepção de caso julgado.

*3. [Comentário] a) A RP decidiu bem.

Se há duas relações (a relação cambiária e a relação subjacente), é claro que há duas causas de pedir distintas. A esta conclusão não obsta a circunstância de a relação cambiária ser abstracta e dispensar a alegação de qualquer causa petendi.

b) O sumariado nos n.º III e IV do sumário talvez não reflicta a verdadeira orientação do RP.

Ainda assim, o problema deveria ter sido visto à luz do Ac. STJ 3/2018, de 19/2, que, apesar disso, não é citado. Supõe-se que a RP pretende seguir a orientação uniformizada neste acórdão ao referir o seguinte:

Não estamos perante um título de crédito válido como tal (como acontecia no acórdão do STJ de 13/11/2003), nem perante um escrito particular em sentido estrito (como acontecia no acórdão do STJ de 19/02/2009); mas estamos perante um título que, não tendo validade como título de crédito, é equivalente a um escrito particular de reconhecimento de dívida e, sendo esta dívida constituída por um mútuo, se nulo fosse, a obrigação de restituição do capital ainda subsistiria por força do artigo 289.º do CCivil e, por isso, não inquinaria a validade do documento enquanto título executivo.

Trata-se de uma afirmação que não é de fácil interpretação, pois parece que transpõe para o título de crédito a invalidade formal do mútuo subjacente. A única coisa que se poderia discutir era se o documento que titula o mútuo, apesar de não ser suficiente para assegurar a validade do contrato, poderia servir de título de executivo para a restituição do capital.

Pode ser que, em virtude da infeliz orientação que acabou por prevalecer sobre a aplicação da lei no tempo do disposto no art. 703.º CPC, o documento particular que titulou o mútuo (possivelmente constituído antes de 1/1/2014) pudesse ser considerado título executivo para a restituição do capital. Mas -- note-se --, está-se a falar do documento particular que constitui o mútuo, não do título de crédito.

Seja com for, a doutrina do Ac. STJ 3/2018 não é aplicável a situações constituídas depois de 1/9/2013, dado que a generalidade dos documentos particulares não é, actualmente, título executivo, pelo que o documento particular que não é formalmente suficiente para titular o mútuo nunca pode ser título executivo para a restituição do capital. Talvez se possa dizer que ainda bem que assim é, porque a doutrina daquele acórdão uniformizador é mais do que discutível.

MTS