"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/01/2021

Jurisprudência 2020 (137)


Suspensão de deliberações sociais;
requisitos; "dano apreciável"


1. O sumário de RL 14/7/2020 (2253/20.9T8VNG.P1) é o seguinte:

I - O “dano apreciável” causado pela execução da deliberação – o “periculum in mora” do procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais – tem que ser alegado e provado, não sendo a sua existência de presumir; porém, tal concreta prova pode/deve resultar da apreciação que o tribunal deve fazer da globalidade dos concretos factos que estão alegados/provados.

II - Sendo o “dano apreciável” a prevenir um dano futuro, tal acontece, só por si, pelos efeitos duma deliberação de exclusão de sócio, já que, quando alguém é excluído de sócio, não perde apenas e só a sua participação social, mas também tudo que isso significa e representa, em termos de efeitos jurídicos, estando o “dano apreciável” nos direitos sociais que se retiram ao sócio excluído, em ver-se afastado da vida da sociedade, não podendo participar e influir nas decisões, passando os restantes sócios a poder deliberar, da forma como bem entenderem, sobre o destino da sociedade.

III - Nestas situações, tendo sido alegada a exclusão do sócio (requerente do procedimento cautelar) e a irregularidade dessa deliberação social, deve considerar-se que essa alegação, a ser provada, pode conduzir à conclusão de serem significativos os prejuízos decorrentes da perda de qualidade de sócio, ou seja, que a alegação pode preencher o perigo do “dano apreciável”, tanto mais que, no caso concreto, o requerente continua alegadamente a assumir responsabilidades bancárias/cambiárias de montante significativos, apesar de ter deixado de poder controlar o destino e a gestão da sociedade/requerida em face da referida exclusão de sócio.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Dispõe o artigo 380º do CPC, no seu nº 1, que “se alguma associação ou sociedade, seja qual for a sua espécie, tomar deliberações contrárias à lei, aos estatutos ou ao contrato, qualquer sócio pode requerer, no prazo de 10 dias, que a execução dessas deliberações seja suspensa, justificando a qualidade de sócio e mostrando que essa execução pode causar dano apreciável”.

O deferimento da providência cautelar de suspensão de deliberação social depende, portanto, da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:

a) O requerente tem que ser sócio da sociedade que a tomou;

b) A deliberação tem que ser contrária à lei ou ao pacto social; e

c) Há-de resultar da execução da deliberação dano apreciável.

O primeiro dos referidos requisitos é um pressuposto de legitimidade e o segundo satisfaz-se com um juízo de probabilidade e verosimilhança que é próprio das providências cautelares[...].

Porém, a alegação e prova do terceiro pressuposto – que é o que está aqui em causa - tem sido vista com maior exigência na doutrina e na jurisprudência, de molde a permitir a manutenção de um clima de equilíbrio no funcionamento da sociedade e no relacionamento dela com os sócios e daí o estatuído no nº 2 do artigo 381º, do CPC, ao permitir que o juiz deixe de suspender a deliberação social, ainda que ilegal ou contrária aos estatutos ou ao contrato se o prejuízo resultante da suspensão for superior ao que pode advir da respectiva execução.

Dúvidas, não existem de que a providência cautelar serve para obviar às consequências do periculum in mora, exigindo como requisito a alegação e prova de que resulte, antes da acção ser proposta ou na pendência dela, lesão grave ou dificilmente reparável ao direito do requerente.

O ónus da prova é do requerente (artigo 342.º, nº 1, do CC), e o zelo e cautela do seu direito pressupõe, desde logo, no requerimento da providência, a alegação de factos concretos reveladores do perigo de ocorrência de determinadas consequências danosas de relevo que se mostrem sérias e certas ou quase inevitáveis, muito fortemente prováveis[...].

Abrantes Geraldes [In “Temas do processo civil”, Vol. IV, págs. 96 e 97. No mesmo sentido, v. “CPC anotado”, Vol. I (A. Geraldes, Luís P. Sousa, Paulo Pimenta), págs. 450/1] explica que a expressão “dano apreciável” é um conceito indeterminado carecido de densificação através de alegação e prova de factos dos quais se possa extrair que a execução da deliberação no seio da pessoa colectiva (ou dos seus sócios) acarretará um prejuízo significativo, de importância relevante, mas sem ser uma situação de irrecuperabilidade ou de grave danosidade.

O legislador pretende, pois, compatibilizar os interesses do requerente e da sociedade ou associação, procurando uma menor interferência na vida da sociedade ou associação, procurando suspender deliberações quando apesar de feridas de alguns vícios atendíveis, os efeitos da suspensão sejam superiores aos da execução.

Assim, refere aquele autor que “o modo como está arquitectada a suspensão de deliberações sociais revela que o legislador pretendeu compatibilizar os interesses contrapostos do requerente e da sociedade requerida: aquele a exigir a suspensão da deliberação invocando o risco de ocorrência de dano apreciável; e esta a reclamar a menor interferência jurisdicional na sua actividade, de modo a evitar a suspensão de deliberações quando, apesar das feridas de alguns dos vícios atendíveis, os efeitos da suspensão sejam superiores aos da execução”.

Como se refere no acórdão da Relação de Lisboa de 28.02.2008[...], “o dano apreciável é o dano significativo que pode resultar da execução da deliberação social ilegal, que a própria providência visa esconjurar reconhecendo o periculum in mora na obtenção de uma decisão através da acção judicial de oposição a uma determinada deliberação”.

Exige-se, portanto, um juízo de forte probabilidade de dano iminente, bem como da medida e extensão do mesmo, que permitam tomá-lo por considerável, não sendo suficiente a alegação de mera possibilidade de prejuízo cujo volume não possa aquilatar-se [Como escreve Lobo Xavier, in Revista de Direito e Estudos Sociais, XXII, pág. 215 “não é toda e qualquer possibilidade de prejuízo que a deliberação, ou a sua execução, em si mesmas comportem, mas sim a possibilidade de prejuízos imputáveis à demora no processo de anulação. Não faria sentido que o legislador desse relevo, para efeitos de concessão de providência à eventualidade de danos diferentes dos originados pelo retardamento da sentença naquela acção preferida”. No mesmo sentido, v. Marco Gonçalves, in “Providências cautelares” (e-book), notas 903 e 904.].

“O dano patrimonial ou não, de sócio(s) e/ou da sociedade, é apreciável quando significativo (não insignificante). Não tem de ser julgado irreparável para que a suspensão seja decretada. Mas, porque o dano apreciável aqui relevante é o que pode resultar da demora do processo principal, há-de ser dificilmente reparável sem a suspensão. Se a tutela conferida pela acção principal (procedente) é suficiente para a reparação dos danos, não há razões para decretar a suspensão de deliberação”[In “Cód. Sociedades Comerciais em comentário”, Vol. I, págs. 698 e 699 (anotação de J. M. Coutinho de Abreu)].

Neste âmbito, importa, pois, que não se olvide o que nos parece ser aqui de considerar da maior importância: enquanto a providência em causa visa apenas evitar o dano resultante da deliberação tomada, quando imputável à demora na resolução do litígio, a acção de anulação ou declaração de nulidade (a acção principal de que aquela é dependente), é que se destina, verdadeiramente, a apreciar da própria legalidade do acto. Não pode, portanto, entender-se a providência como uma mera antecipação provisória da sentença de anulação [Cfr. Palma Carlos, in Revista dos Tribunais, 62/212 e Vasco Xavier Rev. Dir. Est. Sociais, pág. 268].

“A lei criou um expediente que, em regra, precede esta acção (de anulação ou de declaração da nulidade) e que permite uma apreciação tão rápida quanto possível da eventual desconformidade da deliberação social. Esse expediente – que pretende assegurar um conteúdo útil e imediato e relevante à impugnação a propor – é um procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais e contra-se regulado no CPC, nos arts. 380º a 382º, tendo como finalidade paralisar com celeridade a deliberação social viciada, de modo a evitar que seja concretizada a deliberação social (inválida) que se pretende impugnar e a assegurar que num futuro próximo não se vão perdurar ou alicerçar na mesma outras deliberações, com natural e óbvio prejuízo para a própria sociedade” [Paulo Olavo da Cunha, in “Impugnação de deliberações sociais”, pág. 204].

Neste contexto, a simples aparência de invalidade da deliberação social deverá ser tida como suficiente ao decretamento da suspensão dos efeitos dessa deliberação se o dano necessário estiver devidamente configurado."

[MTS]